Pra
mim não dá. E pra você?
Por
Alessandra Leles Rocha
Por mais que se tente utilizar a
contemporaneidade como desculpa ou pretexto para justificar as inúmeras incongruências
que exalam das relações humanas, pra mim tanto absurdo realmente não dá.
Essa história de ficar em cima do
muro, se equilibrando desconfortavelmente para não assumir uma posição, é
surreal. É um jeito muito bizarro de fazer mistério sobre quem é você de
verdade. Afinal, uma hora se mostra do direito, outra do avesso, às vezes nem
aparece, enfim... Portanto, pra mim não dá.
Não dá pra defender a vida ao
mesmo tempo em que aceita com naturalidade as mais infinitas formas de violência
que podem levar à morte. Sim, porque a fome mata, a miséria mata, a falta de
saneamento básico mata, o desemprego mata, as doenças não tratadas matam, ... Sem
contar, que na vida se morre objetivamente; mas, também, subjetivamente. Morrem
os sonhos, as esperanças, os desejos, a criatividade, ... e quando isso
acontece, o ser humano realmente morre. ...
Não dá pra defender a postura de
boa pessoa, quando na primeira oportunidade sai da sombra para agir de má fé
com o outro, para usar de toda e qualquer estratégia de esperteza para se
sobrepor aos demais. Porque bondade boa mesmo, é bondade genuína. Que brota da
alma. Que não precisa e não quer nada em troca. Quer apenas ser. Ser transparente.
Ser pacífica. Ser generosa. ...
Não dá pra defender a igualdade,
olhando para tudo e para todos com uma seletividade ferinamente apurada que
possibilita ranquear ou categorizar pessoas e coisas, segundo critérios demasiadamente
cruéis e perversos. Porque essa é uma igualdade enviesada, distorcida, que
torna iguais apenas aqueles cuja igualdade se faz com base nas minhas crenças, nos
meus valores, nos meus princípios. ...
Não dá pra defender a liberdade,
desconsiderando a existência natural dos limites. Porque a liberdade não é
absoluta, como muitos querem acreditar. Não porque existem regras, códigos,
leis para estabelecer um padrão de comportamento; mas, porque a vida é feita
por ações e reações. Ao se escolher, ao se decidir, por isso ou por aquilo, as consequências,
os desdobramentos representam os freios, os contrapesos, o preço a se pagar. São
os limites que não podemos contestar. Então, a liberdade não é absoluta. ...
Não dá pra defender a
fraternidade, aceitando com passividade, e total indiferença, as desigualdades
no mundo. Ora, a fraternidade no seu sentido pleno impõe a empatia, a
capacidade de se colocar no lugar do outro. Enxergá-lo como seu semelhante, com
os mesmos direitos, os mesmos deveres, as mesmas necessidades. Então, não dá
para relativizar a fraternidade por meio de esmolas, de donativos, de um assistencialismo
que não busca mudar, transformar a realidade, tornando a cidadania acessível a
todos. ...
Não dá pra defender o meio
ambiente e viver sob os comandos de um consumismo desenfreado, de uma total inconsequência
quanto à produção e descarte de resíduos, da manutenção de hábitos e costumes cotidianos
contrários à sustentabilidade. Defender o meio ambiente é ser socioambientalmente
sustentável, a fim de criar condições favoráveis para que todos tenham acesso à
dignidade humana, à dignidade cidadã. Suas atitudes e comportamentos não
impactam negativamente apenas o meio ambiente, impactam a humanidade, um
coletivo que já padece de inúmeros infortúnios, desgraças, crises. ...
Não dá pra defender a educação,
acreditando que o desequilíbrio entre o público e o privado pode continuar
existindo. Agradecendo pelo seu privilégio de ter acesso a algo melhor, ao invés
de pensar que todos deveriam ter o mesmo. Fortalecendo a perspectiva de que as
inacessibilidades, as carências, as fragilidades, podem levar décadas para
serem solucionadas, como se o desenvolvimento e o progresso educacional
estivessem dissociados da sociedade, como se pudessem acontecer em tempos
distintos. ...
Não dá pra defender a
salubridade, acreditando que o desequilíbrio entre o público e o privado pode
continuar existindo. Agradecendo pelo seu privilégio de ter acesso a algo
melhor, ao invés de pensar que todos deveriam ter. Fortalecendo ideias estapafúrdias,
como por exemplo, a de que o Sistema Único de Saúde (SUS) é um gasto
desnecessário e pode facilmente ser substituído pela ampliação da rede privada.
...
Pois é, pra mim realmente não dá.
Tudo isso representa um verdadeiro baile de máscaras, onde as pessoas se
escondem por trás de discursos, politicamente corretos, para não deixar
transparecer o que se passa no mais profundo do seu íntimo. Na verdade, não
passa de uma exaltação da hipocrisia, do “faça
o que eu falo, mas não faça o que eu faço”, disseminada para servir aos
interesses de homogeneização do pensamento social.
Trata-se de uma verdadeira
cruzada contra as diferenças, contra as individualidades, contra as
identidades; mas, totalmente a favor da massificação. Os resultados, até aqui,
me parecem aquém das expectativas. Porque tudo o que foge da naturalidade se
torna caricato e facilmente perceptível, e nesse caso, os discursos e as ações estão
muito desalinhados. Basta uma passada de
olhos pelo cotidiano ou pelos veículos de comunicação e informação para comprovar.
Daí a convivência, a coexistência,
estarem tão pesadas, tão difíceis. O mundo caminha para uma imensa população de
lobos em peles de cordeiros que tentam dissimular suas intenções, suas
pretensões, suas verdades mais ocultas; para sobreviver as hostilidades
impostas. Por isso, tantas decepções, tantas frustrações, tantos
desapontamentos na busca de tecer relações com um mínimo de transparência.
Você vai conversando, vai
convivendo e, quando menos se espera, aquela aparência se desconstrói por
palavras e gestos avassaladores, comentários e ações brutais. Você se depara
com um outro que não existia, até então. Não é uma questão de idealização que
se possa fazer a respeito das pessoas, que comumente acaba malsucedida.
Trata-se, simplesmente, do comportamento
social vigente na contemporaneidade, no qual há uma dissimulação trivializada,
que relativiza a vida a tal ponto em que dissocia as opiniões dos indivíduos,
criando perspectivas de análise e de crítica diferentes. Como se no contexto
particular se pudesse pensar e agir de uma certa maneira, para atender aos próprios
interesses, as próprias vontades; mas, em relação ao coletivo se torna
imperioso pensar e agir de uma outra forma, ou seja, há uma ruptura total com o
senso empático da humanidade.
Assim, as más condutas buscam se
camuflar, se esconder, até que seja possível alcançar seus propósitos. A hipocrisia
reina. A maldade reina. A violência reina. Como diz uma canção, que eu amo, “[...] Palavras duras em voz de veludo [...]”
1, soam com uma naturalidade
desconcertante e incomodativa; mas, sem que ninguém tome a iniciativa de
rebater, de rechaçar, de confrontar.
Eu preciso de um pouco mais de verdade, de clareza, na convivência. Quero olhar nos olhos do outro sem qualquer traço de sombra, de desconfiança. Quero palavras ditas sem silêncios entrecortados, sem pausas pesadas. Quero gestos inteiros e não ensaiados. ... É por essas e por outras, então, que pra mim não dá. Do jeito que está já deu! E pra você, hein?!