Nem
tudo é beleza na tropicalidade brasileira...
Por
Alessandra Leles Rocha
Quer saber? A estupidez cansa. A
ignorância cansa. A alienação cansa. ... Enquanto, uma significativa parcela da
sociedade brasileira se permite discutir a vida na espuma da superficialidade,
do não essencial, do absurdo, a realidade continua a seguir o seu caminho
natural e a nos trazer situações que já deveríamos ter virado a página.
Não é possível, em pleno século
XXI, o Brasil “tropical e abençoado por
Deus”, permanecer alheio a certas coisas. Há quatro dias, o país perdeu uma
cidadã por falta de soro antiofídico 1.
É! Poderia ser eu, ou você, ou qualquer um.
Algo realmente estarrecedor!
Considerando que o país tem excelência (ou pelo menos tinha) nessa terapêutica.
Tanto na produção de imunobiológicos (soros e vacinas) quanto no trato dos
pacientes que sofreram acidentes por animais peçonhentos.
Afinal, por ser um país cuja
diversidade de fauna e flora, desde sempre, impôs riscos e necessidades nesse
sentido, estratégias precisaram emergir para dar o suporte necessário em
situações de urgência e emergência.
Sobretudo, em decorrência do
avanço sobre o uso e ocupação do espaço territorial brasileiro, aproximando as
fronteiras da urbanização daquelas ainda não urbanizadas ou naturais. Talvez,
tenha sido esse o grande estopim fomentador para o nosso caminho de sucesso
científico e tecnológico, no campo das ciências biomédicas brasileiras.
Marcado pela presença de grandes
nomes como Oswaldo Cruz (Sanitarista, Epidemiologista e Bacteriologista), Evandro
Chagas (Especialista em Medicina Tropical), Carlos Chagas (Biólogo,
Sanitarista, Infectologista e Bacteriologista), Adolpho Lutz (Especialista em
Medicina Tropical) e Vital Brazil (Sanitarista e Toxicologista), que deram o impulso
suficiente para o surgimento de grandes institutos de pesquisa 2 e conseguiram salvar tantas vidas
afetadas pelos impactos da coexistência nesse contexto tropical.
No entanto, essa não é uma
questão para ser analisada apenas do ponto de vista dos benefícios de tão
grandes descobertas e inovações. A grande verdade é que ela lança luz sobre
algo pouco difundido e conhecido pelos brasileiros.
Pois é, enquanto uns e outros
fazem o enviesamento e a distorção ideológica em relação à saúde, criando uma
linha divisória excludente e desigual, está no Sistema Único de Saúde (SUS) o
papel majoritário sobre certos aspectos, incluindo, por exemplo, as doenças
tropicais (especialmente, as negligenciadas 3)
e os acidentes por animais peçonhentos.
Então, o primeiro ponto a se
desmistificar diz respeito à saúde pública. Não, saúde pública não quer dizer “saúde para pobre”. A saúde pública tem
por premissa fundamental estabelecer todas as medidas necessárias, as quais
serão executadas pelo Estado, a fim de garantir indistintamente o bem-estar
físico, mental e social de todos os cidadãos.
Portanto, o SUS representa o
conjunto tanto das ações quanto dos serviços de saúde oferecidos pelos órgãos e
instituições públicas pertencentes aos diferentes entes da Federação, ou seja,
Municípios, Estados, União e Distrito Federal.
Assim, no caso dos acidentes por
peçonhentos, especialmente os acidentes ofídicos (por serpentes), eles “foram incluídos, pela Organização Mundial
da Saúde, na lista das doenças tropicais negligenciadas que, acometem, na
maioria dos casos, populações pobres que vivem em áreas rurais” 4; embora, possam acontecer em qualquer
espaço geográfico e com qualquer membro dos diferentes estratos da
população.
Por isso, foi criado o Sistema de
Informação de Agravos de Notificação (SINAN), cujos dados oferecem à vigilância
epidemiológica a possibilidade “de
identificar o quantitativo de soros antivenenos a serem distribuídos às
Unidades Federadas, além de determinar pontos estratégicos de vigilância,
estruturar as unidades de atendimento aos acidentados, elaborar estratégias de
controle desses animais, entre outros”.
Ora, então, como foi acontecer
esse acidente ofídico, citado lá no início? Simples. Uma junção de questões.
Primeiro, o desmantelamento e a precarização do SUS vem possibilitando esse
tipo de episódio. Faltam recursos humanos e materiais para oferecer o serviço
necessário com qualidade e eficiência. Portanto, os cortes de investimento na
área da saúde pública promovem o surgimento de tragédias anunciadas. Não, eles
não são mimimi.
Além disso, é fundamental
esclarecer que “a aplicação do soro no paciente picado pelo animal peçonhento é
gratuita, realizada somente em ambiente hospitalar, por pessoal devidamente
treinado, em unidades do Sistema Único de Saúde (SUS)” 5.
Isso porque é necessária “a avaliação correta do tratamento adequado
ao paciente, se é indicada a administração de soro e qual tipo de soro
recomendado” 6.
Depois, as recentes ações
antrópicas nos principais biomas brasileiros, incluindo o fogo e o desmatamento
criminosos, que favorecem o deslocamento das espécies sobreviventes para outras
áreas. Especialmente aquelas que fazem fronteiras com espaços já urbanizados
total ou parcialmente. Essas espécies estão, na maioria das vezes, feridas,
estressadas, famintas e, por essas razões, muito mais susceptíveis a
agressividade e ao ataque, como instinto de sobrevivência.
Também, não se pode deixar de
destacar o fato de que as mudanças climáticas podem atuar ativamente nesse
deslocamento das espécies selvagens. O calor, a escassez hídrica, a oscilação
térmica, os tornados, os redemoinhos de fogo, as inundações, as chuvas de
granizo, ... tudo isso, pode sim, representar uma alteração abrupta no padrão comportamental
de muitas espécies.
Assim, considerando o cenário
atual há uma visível tendência que esse tipo de interação entre a população e
as espécies selvagens e presentes no ecossistema brasileiro, se tornem cada vez
mais intensas e frequentes.
Sinal de que devemos nos
preocupar sim, com esses acontecimentos. Quem lhe garante que você não corre
esse tipo de risco, hein? Veja só o exemplo recente:“Morador de Ituiutaba encontra cascavel na rua de casa; cobra foi
capturada pelos bombeiros” 7.
No fim das contas, o brasileiro
não pratica apenas a insustentabilidade ambiental. Na verdade, ele pratica
diversas versões de uma insustentabilidade socioambiental, na medida em que ele
também destrói todos os seus sistemas de proteção. Ele não tem apreço por nada,
nem por si mesmo.
Essa é, portanto, a reflexão que
precisa ser feita. Que bicho terá lhe picado (ou mordido) para que o brasileiro
abrisse mão, tão displicentemente, do exercício da sua cidadania, dos seus
direitos, do seu bem-estar, da sua sobrevivência individual e coletiva?
Que prazer é esse que envolve uma liberdade insana, uma indiferença perversa, um descaso aviltante, uma negligência indigesta? Porque olhando de fora, a certa distância, só consigo ver a morte ganhando um status cada vez mais trivializado, cada vez mais indolor, cada vez mais impessoal, que não me faz qualquer sentido.
1 https://g1.globo.com/mt/mato-grosso/noticia/2022/04/26/policial-penal-morre-apos-ser-picada-por-jararaca-em-sitio-onde-morava-em-mt.ghtml
5 https://www.mg.gov.br/servico/obter-atendimento-caso-ocorra-um-acidente-com-animais-peconhentos#:~:text=A%20aplica%C3%A7%C3%A3o%20do%20soro%20no,soros%20pode%20ser%20acessada%20abaixo.