sexta-feira, 29 de abril de 2022

Nem tudo é beleza na tropicalidade brasileira...


Nem tudo é beleza na tropicalidade brasileira...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Quer saber? A estupidez cansa. A ignorância cansa. A alienação cansa. ... Enquanto, uma significativa parcela da sociedade brasileira se permite discutir a vida na espuma da superficialidade, do não essencial, do absurdo, a realidade continua a seguir o seu caminho natural e a nos trazer situações que já deveríamos ter virado a página.

Não é possível, em pleno século XXI, o Brasil “tropical e abençoado por Deus”, permanecer alheio a certas coisas. Há quatro dias, o país perdeu uma cidadã por falta de soro antiofídico 1. É! Poderia ser eu, ou você, ou qualquer um.

Algo realmente estarrecedor! Considerando que o país tem excelência (ou pelo menos tinha) nessa terapêutica. Tanto na produção de imunobiológicos (soros e vacinas) quanto no trato dos pacientes que sofreram acidentes por animais peçonhentos.   

Afinal, por ser um país cuja diversidade de fauna e flora, desde sempre, impôs riscos e necessidades nesse sentido, estratégias precisaram emergir para dar o suporte necessário em situações de urgência e emergência.  

Sobretudo, em decorrência do avanço sobre o uso e ocupação do espaço territorial brasileiro, aproximando as fronteiras da urbanização daquelas ainda não urbanizadas ou naturais. Talvez, tenha sido esse o grande estopim fomentador para o nosso caminho de sucesso científico e tecnológico, no campo das ciências biomédicas brasileiras.

Marcado pela presença de grandes nomes como Oswaldo Cruz (Sanitarista, Epidemiologista e Bacteriologista), Evandro Chagas (Especialista em Medicina Tropical), Carlos Chagas (Biólogo, Sanitarista, Infectologista e Bacteriologista), Adolpho Lutz (Especialista em Medicina Tropical) e Vital Brazil (Sanitarista e Toxicologista), que deram o impulso suficiente para o surgimento de grandes institutos de pesquisa 2 e conseguiram salvar tantas vidas afetadas pelos impactos da coexistência nesse contexto tropical.

No entanto, essa não é uma questão para ser analisada apenas do ponto de vista dos benefícios de tão grandes descobertas e inovações. A grande verdade é que ela lança luz sobre algo pouco difundido e conhecido pelos brasileiros.

Pois é, enquanto uns e outros fazem o enviesamento e a distorção ideológica em relação à saúde, criando uma linha divisória excludente e desigual, está no Sistema Único de Saúde (SUS) o papel majoritário sobre certos aspectos, incluindo, por exemplo, as doenças tropicais (especialmente, as negligenciadas 3) e os acidentes por animais peçonhentos.

Então, o primeiro ponto a se desmistificar diz respeito à saúde pública. Não, saúde pública não quer dizer “saúde para pobre”. A saúde pública tem por premissa fundamental estabelecer todas as medidas necessárias, as quais serão executadas pelo Estado, a fim de garantir indistintamente o bem-estar físico, mental e social de todos os cidadãos.

Portanto, o SUS representa o conjunto tanto das ações quanto dos serviços de saúde oferecidos pelos órgãos e instituições públicas pertencentes aos diferentes entes da Federação, ou seja, Municípios, Estados, União e Distrito Federal.

Assim, no caso dos acidentes por peçonhentos, especialmente os acidentes ofídicos (por serpentes), eles “foram incluídos, pela Organização Mundial da Saúde, na lista das doenças tropicais negligenciadas que, acometem, na maioria dos casos, populações pobres que vivem em áreas rurais” 4; embora, possam acontecer em qualquer espaço geográfico e com qualquer membro dos diferentes estratos da população. 

Por isso, foi criado o Sistema de Informação de Agravos de Notificação (SINAN), cujos dados oferecem à vigilância epidemiológica a possibilidade “de identificar o quantitativo de soros antivenenos a serem distribuídos às Unidades Federadas, além de determinar pontos estratégicos de vigilância, estruturar as unidades de atendimento aos acidentados, elaborar estratégias de controle desses animais, entre outros”. 

Ora, então, como foi acontecer esse acidente ofídico, citado lá no início? Simples. Uma junção de questões. Primeiro, o desmantelamento e a precarização do SUS vem possibilitando esse tipo de episódio. Faltam recursos humanos e materiais para oferecer o serviço necessário com qualidade e eficiência. Portanto, os cortes de investimento na área da saúde pública promovem o surgimento de tragédias anunciadas. Não, eles não são mimimi.

Além disso, é fundamental esclarecer que “a aplicação do soro no paciente picado pelo animal peçonhento é gratuita, realizada somente em ambiente hospitalar, por pessoal devidamente treinado, em unidades do Sistema Único de Saúde (SUS)” 5. Isso porque é necessária “a avaliação correta do tratamento adequado ao paciente, se é indicada a administração de soro e qual tipo de soro recomendado” 6.

Depois, as recentes ações antrópicas nos principais biomas brasileiros, incluindo o fogo e o desmatamento criminosos, que favorecem o deslocamento das espécies sobreviventes para outras áreas. Especialmente aquelas que fazem fronteiras com espaços já urbanizados total ou parcialmente. Essas espécies estão, na maioria das vezes, feridas, estressadas, famintas e, por essas razões, muito mais susceptíveis a agressividade e ao ataque, como instinto de sobrevivência.

Também, não se pode deixar de destacar o fato de que as mudanças climáticas podem atuar ativamente nesse deslocamento das espécies selvagens. O calor, a escassez hídrica, a oscilação térmica, os tornados, os redemoinhos de fogo, as inundações, as chuvas de granizo, ... tudo isso, pode sim, representar uma alteração abrupta no padrão comportamental de muitas espécies.

Assim, considerando o cenário atual há uma visível tendência que esse tipo de interação entre a população e as espécies selvagens e presentes no ecossistema brasileiro, se tornem cada vez mais intensas e frequentes.

Sinal de que devemos nos preocupar sim, com esses acontecimentos. Quem lhe garante que você não corre esse tipo de risco, hein? Veja só o exemplo recente:“Morador de Ituiutaba encontra cascavel na rua de casa; cobra foi capturada pelos bombeiros” 7.

No fim das contas, o brasileiro não pratica apenas a insustentabilidade ambiental. Na verdade, ele pratica diversas versões de uma insustentabilidade socioambiental, na medida em que ele também destrói todos os seus sistemas de proteção. Ele não tem apreço por nada, nem por si mesmo.

Essa é, portanto, a reflexão que precisa ser feita. Que bicho terá lhe picado (ou mordido) para que o brasileiro abrisse mão, tão displicentemente, do exercício da sua cidadania, dos seus direitos, do seu bem-estar, da sua sobrevivência individual e coletiva?

Que prazer é esse que envolve uma liberdade insana, uma indiferença perversa, um descaso aviltante, uma negligência indigesta? Porque olhando de fora, a certa distância, só consigo ver a morte ganhando um status cada vez mais trivializado, cada vez mais indolor, cada vez mais impessoal, que não me faz qualquer sentido.