Terra
de ninguém?!
Por
Alessandra Leles Rocha
Muita coisa mudou na vida
cotidiana desde a terceira Revolução Industrial, que marcou a substituição da mecânica
analógica para a digital e o surgimento dos microcomputadores e da criação da
internet. Tanto que, em 2011, a humanidade alcançou o patamar da quarta
Revolução Industrial ou Revolução 4.0, trazendo a possibilidade de novas
tecnologias para automação e armazenamento de dados, a partir dos conceitos de
sistemas ciber-físicos, da internet das coisas e da computação em nuvem.
Entretanto, apesar desse
movimento que nos colocou existindo entre dois mundos, um real e outro virtual,
a vida humana permanece condicionada a um conjunto de regras, princípios e
valores que existem para garantir o equilíbrio das relações. De modo que a
expressão “terra de ninguém”, comumente
atribuída ao mundo virtual, não condiz com a verdade.
Da mesma maneira que você está
sujeito às leis do seu país de origem, você se torna sujeito às leis de
qualquer outro para o qual você viaje ou se mude. Isso significa que nenhum espaço
ocupado pelo ser humano está desvencilhado das obrigações jurídicas e
institucionais estabelecidas pelos países onde as relações sociais acontecem; mesmo
se tratando de um espaço virtual.
Assim, o fato da existência de
dois mundos não impediu que tanto os aspectos positivos quanto negativos que
antes existiam apenas no mundo real deixassem de migrar, também, para o
virtual. Não é à toa, que tantas fraudes e crimes venham se disseminando pelos
ambientes tecnológicos, em razão das pessoas buscarem mecanismos que as ajudem
a transitar despercebidas e, dessa forma, poderem burlar as obrigações jurídicas
e institucionais existentes. Nessa tentativa de criar um submundo para os delitos
e crimes cibernéticos, as pessoas visam obstaculizar os trâmites jurídicos e
dificultar a sua punição.
Portanto, esse é o ponto nevrálgico
a ser considerado sobre o assunto, na medida em que se trata de uma questão de
anticidadania. Se uma pessoa busca uma ferramenta que foi desenvolvida para
agir na contramão da legislação vigente, em um certo país, de antemão ela tem
por intenção natural descumprir a lei. É uma forma desse indivíduo se colocar
em distinção em relação aos demais, não aceitando se submeter às regras coletivas
do país.
Além disso, qualquer um que faça
uso das ferramentas tecnológicas dispõe de informações básicas sobre quais princípios
elas funcionam, como se dá o processo de adesão e acesso, ... enfim. Então, a
escolha não se dá ao acaso, ou inadvertidamente. A escolha se dá com base nos
interesses, nas vantagens, nas facilidades que tais ferramentas possam
propiciar ao usuário.
Se esse comportamento, então, não
é rechaçado, começando das próprias esferas jurídicas do país, ele abre precedente
à legitimação do descumprimento das obrigações jurídicas e institucionais por
qualquer um, em quaisquer situações.
O que resultaria em um tipo de
ovação silenciosa à manifestação anticidadã, enviesando e aprofundando cada vez
mais a desigualdade entre os cidadãos, ou seja, estabelecendo parâmetros de análise
diferenciados para um coletivo que deveria estar sujeito ao mesmo princípio jurídico.
Iguais, “pero no mucho”!
Se algo fere, contraria ou renega
as obrigações jurídicas e institucionais estabelecidas, ele claramente faz
oposição ao exercício cidadão. Ele se coloca à margem do que propõe a cidadania
local.
Ora, leis, códigos, doutrinas,
estatutos e outros instrumentos normativos existem para compor um consenso
coletivo capaz de garantir o equilíbrio e a equidade entre os seres humanos. Quando
a ideia é colocar tudo isso em xeque e agir segundo a própria cabeça, os próprios
interesses e desejos, significa uma ruptura para institucionalização do
primitivismo humano, na base do “cada um
por si”.
O que me faz pensar que esse
movimento no campo virtual, de certa forma, acaba por promover a legitimação de
quaisquer delitos ou crimes praticados no mundo real. Ora, uma ameaça no mundo
real, por exemplo, não pode ser considerada um crime menor ou diferente no
mundo virtual. Isso seria tentar criar “dois
pesos e duas medidas”, julgando atos semelhantes de acordo com critérios
distintos, tendo em vista o grau de simpatia que se nutre pelos seus autores.
Então, quando a sociedade
questiona a manifestação das esferas do judiciário, em relação a tais
comportamentos no mundo virtual, imputando-lhe uma característica censora e
arbitrária, fica subentendida a sua predisposição ao descumprimento das obrigações
jurídicas e institucionais estabelecidas. Como se parte da sociedade se
recusasse a reconhecer que as atitudes de tais ferramentas tecnológicas desrespeitam
o seu país; mas, apesar disso, a Justiça não deveria agir com severidade a
respeito.
Seria esse mais um ranço da nossa
herança colonial? Permanecer curvando-se aos desrespeitos estrangeiros, como se
o Brasil fosse mesmo, a “Casa da mãe
Joana”. Como cobrar qualquer respeito, ao admitir abdicar da dignidade
cidadã? Qualquer um que queira visitar, viver, trabalhar, produzir, nesse país,
tem que fazê-lo de acordo com as obrigações jurídicas e institucionais
estabelecidas.
Se não for assim, o certo é orientá-lo que “a porta da rua é serventia da casa”. Não há quaisquer razões para abrir precedentes ao descumprimento das normas do país. Se outros não pensam assim, problema dos outros. Nós não somos os outros, ou será que somos?