sábado, 19 de março de 2022

Terra de ninguém?!


Terra de ninguém?!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Muita coisa mudou na vida cotidiana desde a terceira Revolução Industrial, que marcou a substituição da mecânica analógica para a digital e o surgimento dos microcomputadores e da criação da internet. Tanto que, em 2011, a humanidade alcançou o patamar da quarta Revolução Industrial ou Revolução 4.0, trazendo a possibilidade de novas tecnologias para automação e armazenamento de dados, a partir dos conceitos de sistemas ciber-físicos, da internet das coisas e da computação em nuvem.

Entretanto, apesar desse movimento que nos colocou existindo entre dois mundos, um real e outro virtual, a vida humana permanece condicionada a um conjunto de regras, princípios e valores que existem para garantir o equilíbrio das relações. De modo que a expressão “terra de ninguém”, comumente atribuída ao mundo virtual, não condiz com a verdade.

Da mesma maneira que você está sujeito às leis do seu país de origem, você se torna sujeito às leis de qualquer outro para o qual você viaje ou se mude. Isso significa que nenhum espaço ocupado pelo ser humano está desvencilhado das obrigações jurídicas e institucionais estabelecidas pelos países onde as relações sociais acontecem; mesmo se tratando de um espaço virtual.

Assim, o fato da existência de dois mundos não impediu que tanto os aspectos positivos quanto negativos que antes existiam apenas no mundo real deixassem de migrar, também, para o virtual. Não é à toa, que tantas fraudes e crimes venham se disseminando pelos ambientes tecnológicos, em razão das pessoas buscarem mecanismos que as ajudem a transitar despercebidas e, dessa forma, poderem burlar as obrigações jurídicas e institucionais existentes. Nessa tentativa de criar um submundo para os delitos e crimes cibernéticos, as pessoas visam obstaculizar os trâmites jurídicos e dificultar a sua punição.

Portanto, esse é o ponto nevrálgico a ser considerado sobre o assunto, na medida em que se trata de uma questão de anticidadania. Se uma pessoa busca uma ferramenta que foi desenvolvida para agir na contramão da legislação vigente, em um certo país, de antemão ela tem por intenção natural descumprir a lei. É uma forma desse indivíduo se colocar em distinção em relação aos demais, não aceitando se submeter às regras coletivas do país.

Além disso, qualquer um que faça uso das ferramentas tecnológicas dispõe de informações básicas sobre quais princípios elas funcionam, como se dá o processo de adesão e acesso, ... enfim. Então, a escolha não se dá ao acaso, ou inadvertidamente. A escolha se dá com base nos interesses, nas vantagens, nas facilidades que tais ferramentas possam propiciar ao usuário.

Se esse comportamento, então, não é rechaçado, começando das próprias esferas jurídicas do país, ele abre precedente à legitimação do descumprimento das obrigações jurídicas e institucionais por qualquer um, em quaisquer situações.

O que resultaria em um tipo de ovação silenciosa à manifestação anticidadã, enviesando e aprofundando cada vez mais a desigualdade entre os cidadãos, ou seja, estabelecendo parâmetros de análise diferenciados para um coletivo que deveria estar sujeito ao mesmo princípio jurídico. Iguais, “pero no mucho”!

Se algo fere, contraria ou renega as obrigações jurídicas e institucionais estabelecidas, ele claramente faz oposição ao exercício cidadão. Ele se coloca à margem do que propõe a cidadania local.

Ora, leis, códigos, doutrinas, estatutos e outros instrumentos normativos existem para compor um consenso coletivo capaz de garantir o equilíbrio e a equidade entre os seres humanos. Quando a ideia é colocar tudo isso em xeque e agir segundo a própria cabeça, os próprios interesses e desejos, significa uma ruptura para institucionalização do primitivismo humano, na base do “cada um por si”.

O que me faz pensar que esse movimento no campo virtual, de certa forma, acaba por promover a legitimação de quaisquer delitos ou crimes praticados no mundo real. Ora, uma ameaça no mundo real, por exemplo, não pode ser considerada um crime menor ou diferente no mundo virtual. Isso seria tentar criar “dois pesos e duas medidas”, julgando atos semelhantes de acordo com critérios distintos, tendo em vista o grau de simpatia que se nutre pelos seus autores.  

Então, quando a sociedade questiona a manifestação das esferas do judiciário, em relação a tais comportamentos no mundo virtual, imputando-lhe uma característica censora e arbitrária, fica subentendida a sua predisposição ao descumprimento das obrigações jurídicas e institucionais estabelecidas. Como se parte da sociedade se recusasse a reconhecer que as atitudes de tais ferramentas tecnológicas desrespeitam o seu país; mas, apesar disso, a Justiça não deveria agir com severidade a respeito.

Seria esse mais um ranço da nossa herança colonial? Permanecer curvando-se aos desrespeitos estrangeiros, como se o Brasil fosse mesmo, a “Casa da mãe Joana”. Como cobrar qualquer respeito, ao admitir abdicar da dignidade cidadã? Qualquer um que queira visitar, viver, trabalhar, produzir, nesse país, tem que fazê-lo de acordo com as obrigações jurídicas e institucionais estabelecidas.

Se não for assim, o certo é orientá-lo que “a porta da rua é serventia da casa”. Não há quaisquer razões para abrir precedentes ao descumprimento das normas do país. Se outros não pensam assim, problema dos outros. Nós não somos os outros, ou será que somos?