segunda-feira, 21 de março de 2022

Limites reais. Limites virtuais. Limites...


Limites reais. Limites virtuais. Limites...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Bom, se havia alguma dúvida em relação a todas as implicações oriundas da Pós-Verdade no mundo contemporâneo, a Pandemia foi precisa em desfazê-la pela presença maciça das Fake News destinadas a negar veementemente a Ciência e as vacinas e, por essa razão, contribuir para o número aterrorizante de óbitos pelo Sars-Cov-2 e suas variantes. 

Afinal de contas, criando e modelando a opinião pública, segundo interesses específicos, a Pós-Verdade se constitui em um dos mais importantes mecanismos de influência e ressignificação de crenças, valores e emoções na contemporaneidade.

Algo, que sob outras formas e contornos sempre existiu na humanidade; mas, que ganhou extrema visibilidade e capacidade de disseminação e capilarização a partir das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). Basta um celular nas mãos para a Pós-Verdade ganhar a estrutura de inúmeras Fake News disparadas simultaneamente para milhares de pessoas.

Considerando que o volume de informações por segundo é inevitavelmente superior à capacidade humana de ler, filtrar e refletir a respeito dos conteúdos, grande parte acaba sendo absorvido e reproduzido sem passar por quaisquer filtros de análise.

O resultado disso é o surgimento de uma relativização da verdade factual para que a Pós-Verdade possa prevalecer e constituir o substrato da formação de uma opinião tendenciosa, que transita pelos vieses que convêm aos seus disseminadores.

Assim, interferir no processo de elaboração do pensamento humano, para que cada indivíduo exerça a sua capacidade crítico-reflexiva, tornou-se cada vez mais difícil. Primeiro, porque os modos e comportamentos humanos estão demasiadamente relativizados. O que significa que a sociedade vem padecendo um eterno conflito entre a ética (a reflexão individual) e a moral (pautada no coletivo).

Segundo, porque a sociedade está imersa nas Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), a tal ponto que as relações sociais; bem como, as relações econômicas e culturais acontecem na dependência delas.

De modo que a própria fragmentação da ética encontra no espaço virtual um modo de agregação de novos núcleos, os quais passam a compor uma moral enviesada e estruturada a partir de pontos em comum, para interagir. É o que se vê, por exemplo, nos movimentos de polarização das mais diversas ideologias.

Nesse contexto, o simples fato da existência de uma gigantesca pluralidade moral associada à utilização indiscriminada das TICs vem abalando a sobrevivência de certos elementos fundamentais à convivência humana, tais como o respeito, a capacidade dialógico-argumentativa, a empatia e o senso de coletividade.

De modo que a resolução de dilemas, problemas e conflitos tem estado cada vez mais inacessível, desencadeando desdobramentos impensados tanto na ordem do objetivo quanto do subjetivo.

Assim, o X da questão não é a multiplicidade e/ou a diversidade do pensamento humano, como alguns podem pensar. Não. Opiniões diferentes, pontos de vista diferentes, foram e sempre serão bem-vindos ao desenvolvimento humano.

O que se coloca em discussão aqui é a necessidade de denominadores comuns, pontos de equilíbrios, que derivam da existência de limites intrínsecos ao ser humano e que promovem a construção de uma moral balizadora para o coletivo.

Afinal de contas, ninguém sabe tudo. Ninguém pode tudo. A importância de um, não anula a importância do outro no mundo.  Daí a necessidade do respeito, da empatia, da resiliência.

Mas, quando esse processo se torna, de certa forma, atropelado pela banalização das TICs, a sociedade perde e se perde. Porque a facilidade de aderir a uma ideia sem precisar pensar, falar, debater, ... a respeito, é muito cômoda.

E a Pós-Verdade tem sim, se valido dessa abdicação intelectual e cognitiva, manifesta por uma imensa parcela da população. De modo que o pensamento humano se tornou superficial, inconsistente, imediatista e, ao mesmo tempo, trouxe a falsa ilusão de aceitação, de pertencimento social.

Como disse Zygmunt Bauman 1, “Os grupos de amigos ou a comunidades de bairro não te aceitam sem dar razão, mas ser membro de um grupo no Facebook é facílimo. Você pode ter mais de 500 contatos sem sair de casa, você aperta um botão e pronto”.

Mas, o pior é que tanta facilidade está se tornando altamente perigosa e letal. Cyber Violências.  Negacionismos. Movimentos Extremistas. ... Interromper esse nível de desorganização e desestruturação linguístico-comportamental do ser humano não é uma questão simples e fácil de resolver, considerando as conjunturas da própria contemporaneidade.

Daí a necessidade de repensar o padrão moral de comportamento tecnológico e não tecnológico da sociedade, a fim de obstaculizar os efeitos tóxicos, deletérios, danosos que eles vêm promovendo nas relações sociais. Haja vista quanto o silêncio a esse respeito já matou e tende a matar muito mais gente, por aí.

Talvez, seja hora de colocar as relações humanas no topo das prioridades, na hora de consolidar as regras de utilização das ferramentas de comunicação cibernéticas, a fim de evitar, ou no mínimo mitigar, os primitivismos e as barbáries que têm se visto reverberar pela internet.

Discursos e narrativas que extrapolam a civilidade, a cidadania, a legislação, e transformam palavras em expressões que variam do delito ao crime, não podem permitir flexibilizar a ética a tal ponto de subtrair ou anular a moral existente. Pelo menos, assim, diria a lógica, o bom senso.

Mas, será que os seres humanos já tão absorvidos e condicionados a esse movimento estariam, de fato, dispostos a romper com certas comodidades, certas regalias, certos privilégios trazidos pelas TICs? Será que eles se dispõem a exercitar uma reflexão sobre os rumos da moral contemporânea, a fim de lapidar a sua ética? Será que se permitiriam reforçar os próprios limites a fim de impedi-los de invadir os espaços alheios?

Embora importantes, talvez, essas perguntas jamais sejam respondidas a contento. Entretanto, vale a pena colocá-las na roda, mais uma vez, para estimular a reflexão e quem sabe encontrar algum eco por aí.