sábado, 5 de março de 2022

Se não tem pão, que comam...


Se não tem pão, que comam...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Há quem atribua à Maria Antonieta, rainha consorte da França, no século XVIII, a frase “Se não tem pão, que comam brioches”. Uma maneira cruel de manifestar total desapreço aos súditos que passavam fome naquele país, durante o reinado de Luís XVI. Contudo, em pleno século XXI, essas palavras voltam a circular no imaginário coletivo motivadas pela mesma razão, a fome.

Infelizmente, a expressão, agora, fica pela metade, “Se não tem pão, que comam...”. Porque “o relatório O estado da Insegurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) 2021, construído através do esforço de várias agências das Nações Unidas, estima que cerca de um décimo da população global – até 811 milhões de pessoas – estava subalimentada em 2020” 1.

Acontece que, “desde bem antes da pandemia do COVID-19, vários fatores importantes colocaram o mundo fora do caminho para acabar com a fome e a desnutrição em todas as suas formas até 2030” 2. Dentre eles estão os conflitos geopolíticos, os eventos extremos do clima, o baixo desenvolvimento e as depressões econômicas ocorridas e a inexistência de dietas saudáveis em decorrência da pobreza e da desigualdade.

Em meados de 2010, ela já dava sinais de aumento; mas, “em 2020 a fome disparou em termos absolutos e proporcionais, ultrapassando o crescimento populacional” 3. Afinal, o mundo foi confrontado, também, com a elevação do preço dos alimentos puxado pela pandemia e a disparada no valor dos insumos; pois, “a variação de preços desses produtos segue ‘o mercado’, que é umbilicalmente vinculado ao modelo agrícola”, ou seja, “baseado no lucro e no ‘elevado uso de insumos, comprados dos oligopólios, alta produtividade e monocultivo’” 4.

Sendo assim, “embora haja fatores conjunturais influindo na variação de preços, como variações climáticas que afetam a produtividade das lavouras ou a variação da demanda de grandes importadores como a China e outros países asiáticos, a variação de preços segue, estruturalmente, a especulação financeira e os ganhos dos grandes oligopólios do chamado ‘Agronegócio’” 5.

Então, diante da guerra deflagrada no leste europeu, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, e todas as sanções já impostas pela diplomacia internacional ao país agressor, a tendência é que determinadas commodities, tais como cereais (arroz, trigo, milho, aveia), óleos vegetais (soja, girassol, canola, milho), leite e derivados, carnes, açúcar e café, tenham seus preços inflacionados pela escassez de produção e/ou distribuição no mercado internacional.

De modo que esse movimento tende a agravar a insegurança alimentar no planeta, particularmente, em relação às populações mais carentes e vulneráveis. Segundo o “Fundo Internacional para o Desenvolvimento Agrícola, Fida, a crise na Ucrânia pode causar aumento de preços e escalada da fome, porque a região é responsável por 12% das exportações de calorias alimentares globais, o que inclui alimentos básicos como trigo, milho e óleo de girassol, e 40% da produção ucraniana abastece países com graves problemas de fome, no Oriente Médio e na África” 6.

Em relação ao cenário brasileiro, as expectativas também não são nada boas. Primeiro, porque a elevada demanda mundial pressiona os custos de produção, com impactos sobre o preço das matérias-primas, dos insumos e da energia elétrica e derivados do petróleo. No que diz respeito às commodities agrícolas, elas tiveram seus valores inflacionados; assim como, o fato da insuficiência de resinas plásticas para a produção de embalagens ter elevado o custo desses produtos, também.

Portanto, “se não tivermos pão, comeremos...” o que houver disponível nos mercados, feiras e mercearias. O que couber no orçamento. Os tempos sisudos estão nos afastando do direito a acessibilidade e a segurança alimentar.

Estamos privados de escolher, de decidir, de adquirir qualitativa e quantitativamente o que irá compor as nossas refeições; bem como, satisfazer as nossas demandas nutricionais e eventuais gulodices. Estamos vulneráveis ao adoecimento de nossos corpos pela carência de alimentos. Quem diria que, no Terceiro Milênio, ainda não teríamos conseguido erradicar a fome!

De certa forma, tudo isso é uma consequência de como a humanidade, ou pelo menos parte dela, se posiciona diante da vida, do cotidiano, das relações socioeconômicas. Tanta indiferença. Tanta negligência. Tanto descaso. Tanta omissão.

Porque se acostumaram a satisfazer seus desejos e vontades sem maiores sacrifícios; muitas vezes, até sem se preocupar em repartir, em partilhar, em oferecer a quem se encontrava em posição menos favorável. Bastava a fome fazer doer o estômago e lá estavam os alimentos prontos para o seu deleite.

Mas, tendo em vista que, agora, tudo mudou ... Torna-se oportuno recordar as palavras de Dom Hélder Câmara, “A fome dos outros condena a civilização dos que não tem fome”. Afinal de contas, “Nos lugares em que homens e mulheres e crianças carregam o fardo da fome, um discurso sobre democracia e liberdade que não reconheça estes aspectos materiais pode soar falso e minar os valores que procuramos promover” (Nelson Mandela – Prêmio Nobel da Paz, em 1993). Seria, então, como repetir ao infinito “Se não tem pão, que comam brioches”.  

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