Se
não tem pão, que comam...
Por
Alessandra Leles Rocha
Há quem atribua à Maria
Antonieta, rainha consorte da França, no século XVIII, a frase “Se não tem pão, que comam brioches”. Uma
maneira cruel de manifestar total desapreço aos súditos que passavam fome naquele
país, durante o reinado de Luís XVI. Contudo, em pleno século XXI, essas
palavras voltam a circular no imaginário coletivo motivadas pela mesma razão, a
fome.
Infelizmente, a expressão, agora,
fica pela metade, “Se não tem pão, que comam...”.
Porque “o relatório O estado da
Insegurança Alimentar e Nutrição no Mundo (SOFI) 2021, construído através do
esforço de várias agências das Nações Unidas, estima que cerca de um décimo da
população global – até 811 milhões de pessoas – estava subalimentada em 2020” 1.
Acontece que, “desde bem antes da pandemia do COVID-19,
vários fatores importantes colocaram o mundo fora do caminho para acabar com a
fome e a desnutrição em todas as suas formas até 2030” 2.
Dentre eles estão os conflitos geopolíticos, os eventos extremos do clima, o
baixo desenvolvimento e as depressões econômicas ocorridas e a inexistência de
dietas saudáveis em decorrência da pobreza e da desigualdade.
Em meados de 2010, ela já dava
sinais de aumento; mas, “em 2020 a fome
disparou em termos absolutos e proporcionais, ultrapassando o crescimento
populacional” 3. Afinal, o mundo foi
confrontado, também, com a elevação do preço dos alimentos puxado pela pandemia
e a disparada no valor dos insumos; pois, “a
variação de preços desses produtos segue ‘o mercado’, que é umbilicalmente
vinculado ao modelo agrícola”, ou seja, “baseado
no lucro e no ‘elevado uso de insumos, comprados dos oligopólios, alta
produtividade e monocultivo’” 4.
Sendo assim, “embora haja fatores conjunturais influindo na variação de preços, como
variações climáticas que afetam a produtividade das lavouras ou a variação da
demanda de grandes importadores como a China e outros países asiáticos, a
variação de preços segue, estruturalmente, a especulação financeira e os ganhos
dos grandes oligopólios do chamado ‘Agronegócio’” 5.
Então, diante da guerra
deflagrada no leste europeu, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, e todas as
sanções já impostas pela diplomacia internacional ao país agressor, a tendência
é que determinadas commodities, tais
como cereais (arroz, trigo, milho, aveia), óleos vegetais (soja, girassol,
canola, milho), leite e derivados, carnes, açúcar e café, tenham seus preços
inflacionados pela escassez de produção e/ou distribuição no mercado
internacional.
De modo que esse movimento tende
a agravar a insegurança alimentar no planeta, particularmente, em relação às populações
mais carentes e vulneráveis. Segundo o “Fundo
Internacional para o Desenvolvimento Agrícola, Fida, a crise na Ucrânia pode
causar aumento de preços e escalada da fome, porque a região é responsável por
12% das exportações de calorias alimentares globais, o que inclui alimentos
básicos como trigo, milho e óleo de girassol, e 40% da produção ucraniana
abastece países com graves problemas de fome, no Oriente Médio e na África” 6.
Em relação ao cenário brasileiro,
as expectativas também não são nada boas. Primeiro, porque a elevada demanda
mundial pressiona os custos de produção, com impactos sobre o preço das
matérias-primas, dos insumos e da energia elétrica e derivados do petróleo. No
que diz respeito às commodities agrícolas,
elas tiveram seus valores inflacionados; assim como, o fato da insuficiência de
resinas plásticas para a produção de embalagens ter elevado o custo desses
produtos, também.
Portanto, “se não tivermos pão, comeremos...” o que houver disponível nos
mercados, feiras e mercearias. O que couber no orçamento. Os tempos sisudos
estão nos afastando do direito a acessibilidade e a segurança alimentar.
Estamos privados de escolher, de
decidir, de adquirir qualitativa e quantitativamente o que irá compor as nossas
refeições; bem como, satisfazer as nossas demandas nutricionais e eventuais
gulodices. Estamos vulneráveis ao adoecimento de nossos corpos pela carência de
alimentos. Quem diria que, no Terceiro Milênio, ainda não teríamos conseguido
erradicar a fome!
De certa forma, tudo isso é uma consequência
de como a humanidade, ou pelo menos parte dela, se posiciona diante da vida, do
cotidiano, das relações socioeconômicas. Tanta indiferença. Tanta negligência. Tanto
descaso. Tanta omissão.
Porque se acostumaram a
satisfazer seus desejos e vontades sem maiores sacrifícios; muitas vezes, até sem
se preocupar em repartir, em partilhar, em oferecer a quem se encontrava em
posição menos favorável. Bastava a fome fazer doer o estômago e lá estavam os
alimentos prontos para o seu deleite.
Mas, tendo em vista que, agora,
tudo mudou ... Torna-se oportuno recordar as palavras de Dom Hélder Câmara, “A fome dos outros condena a civilização dos
que não tem fome”. Afinal de contas, “Nos
lugares em que homens e mulheres e crianças carregam o fardo da fome, um
discurso sobre democracia e liberdade que não reconheça estes aspectos
materiais pode soar falso e minar os valores que procuramos promover” (Nelson
Mandela – Prêmio Nobel da Paz, em 1993). Seria, então, como repetir ao
infinito “Se não tem pão, que comam
brioches”.