Quando
atos, palavras e omissões são desnudados...
Por
Alessandra Leles Rocha
É certo que vivemos tempos que
insistem em nos roubar a paciência e nos preencher de indignação, de repulsa,
de raiva, de incompreensão, até o mais profundo da alma.
Mas, há certas questões que
precisamos nos abster desses sentimentos para olhá-las além do visível, com o
máximo de clareza e objetividade. É o caso, por exemplo, do ser humano.
Há uma quantidade de rótulos, estereotipizações,
preconceitos, que são constantemente lançados sobre ele a fim de denegrir,
macular, ilegitimar, constranger, punir, banir a sua existência do contexto
social.
Está no rol das fórmulas
perversas e cruéis de segregação para constituir um modelo padrão de sociedade,
preconcebido a partir de demandas e interesses oriundos de grupos dominantes.
Portanto, é assim que as minorias
sociais vão sendo estabelecidas e reafirmadas ao longo do tempo. É bom que se
esclareça que elas nem sempre estão em desvantagem numérica na sociedade; mas,
em desvantagem nos jogos de poder.
Daí o fato das mulheres, dos indígenas,
dos deficientes, dos idosos, dos obesos, da população negra, do grupo LGBTQIA+,
serem retratados como minorias.
Além disso, apesar das
particularidades de cada grupo, todos eles têm em comum a condição de
vulnerabilidade social, na medida em que não se encontram respaldados, muitas
vezes, nem em teoria e nem na prática jurídica do país em que vivem.
Afinal de contas, é preciso
considerar que muitos deles se encontram em processo de formação identitária,
em razão de toda uma deslegitimação da sua identidade sociocultural.
O que explica, de certo modo, a
razão pela qual vivem em constante movimento de questionamento e ruptura
paradigmática em relação aos privilégios e padrões estabelecidos pelos grupos
dominantes.
Mas, para que de fato consigam
afirmar a sua presença e a participação na sociedade é que eles têm se colocado
cada vez mais organizados discursivamente nos mais diferentes campos sociais,
ou seja, em debates étnico-raciais, religiosos, sobre questões de gênero e de sexualidade,
linguísticos, culturais, de acessibilidade e deficiência.
No entanto, apesar da constatação
da existência de tantos desafios sociais para essa diversidade humana, a existência
dos tais rótulos, estereotipizações e preconceitos impede de se analisar a
questão pelo único ponto de vista cabível, ou seja, o ser humano.
Nomeá-lo por mulher, ou indígena,
ou deficiente, ou idoso, ou obeso, ou negro, ou LGBTQIA+, não retira de nenhum
deles a condição fundamental de ter respeitada a sua dignidade humana e a sua identidade
cidadã.
Pena, que a realidade não venha
transitando por essa consciência. Infelizmente, os movimentos extremistas e ultraconservadores
ligados à direita política, em diversos países do mundo, incluindo o Brasil, estão
cada vez mais se apropriando desses discursos e narrativas que denigrem, maculam,
ilegitimam, constrangem, humilham, punem e banem as minorias, e ao contrário do
que seria de se esperar, a resistência dissonante tem se apresentado menos
efetiva.
De repente, despertamos do ideal
para a realidade, e constatamos que as minorias nem sempre são coesas e
coerentes como deveriam ser. De modo que muitos indivíduos desses grupos se
colocam na posição de apoiadores e defensores de seus próprios algozes.
O que não significa
necessariamente uma manifestação clara, direta e pública da sua opinião; mas,
pela via do silêncio voluntário e/ou do distanciamento social em relação a
determinadas pessoas.
Porém, isso é inócuo. Em médio ou
em longo prazo, esses apoios enviesados provam sua total ineficácia no sentido
de construir alguma blindagem, alguma proteção para essas pessoas.
Os algozes são muito perspicazes
e sabem ler as entrelinhas das linguagens humanas. Basta um leve descuido para
colocar o suposto simpatizante na linha de execração. Do céu ao inferno num
piscar de olhos.
O interessante nesse processo é o
fato de que os próprios “algozes”, de
certo modo, também se abstêm da sua condição humana, como se estivessem acima,
em patamar distinto e inatingível, quase como figuras, ou personagens,
mitológicos.
Deuses, ou semideuses, ou heróis,
que podem tudo, que têm nas mãos “o
destino dos homens e a regência do mundo”. Mas, onde está escrito que é
assim? Quem lhes outorgou esse direito?
Bom, o fato é que os poderes sociais
vão passando de geração a geração por diversas vias – comércio, agricultura, política,
religião, medicina, direito etc. – e se
reafirmando nas descendências, sem a existência de protocolos ou formalidades.
De modo que determinadas famílias
consolidavam a sua influência e poder sobre certos assuntos e interesses
coletivos de uma dada localidade.
Ora, é preciso, então, entender de
uma vez por todas que alguém capaz de atentar contra quaisquer minorias, seja
por qual motivo for, no fundo, é capaz de atentar contra qualquer ser humano.
Aliás, como dizia Nelson Mandela,
“Ninguém nasce odiando outra pessoa por
sua cor de pele, sua origem ou sua religião. As pessoas podem aprender a odiar
e, se podem aprender a odiar, pode-se ensiná-las a aprender a amar. O amor
chega mais naturalmente ao coração humano que o contrário”.
Mas, parece que o amor anda
desprestigiado ultimamente. Por isso, basta que alguém se sinta incomodado, ou demasiadamente
desconfortável, ou supostamente insultado nas suas convicções e princípios, para
sair em busca de pretextos ou de desculpas certas para agir odiosamente.
E de posse dessa narrativa, ele
busca conseguir as garantias da legitimação social necessária para o seu ato, o
seu comportamento, entre aqueles que compactuam com o seu modo de pensar e
agir. Por isso, não importa se são tempos de guerra ou de paz!
Não é à toa, então, que seja tão
fácil na contemporaneidade se deparar com alguém misógino, ou sexista, ou xenofóbico,
ou aporofóbico, ou racista, ou homofóbico/transfóbico, ou gordofóbico, ou
etarista, ou quaisquer outros tipos de preconceito e discriminação.
Segundo Martin Luther King Jr., “Se a história ensina alguma coisa é que o
mal é difícil de vencer, tem uma resistência fanática e jamais cede por vontade
própria”.
Portanto, como se pode perceber,
a conjuntura atual lhes faz crer que dispõem de plena licença para agir, para
exercer a sua intolerância sob diferentes formas e conteúdos, em todas as
direções e sentidos. Afinal, “O silêncio
responde até mesmo aquilo que não foi perguntado” (Caio Fernando Abreu).