terça-feira, 15 de fevereiro de 2022

Muito além da segurança ou da liberdade


Muito além da segurança ou da liberdade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Por mais absurdo que possa parecer, considerando que a pandemia ainda vigora entre nós, o fato de muitas pessoas ostentarem uma franca resistência e oposição a vacinação não passa de uma mera questão da própria contemporaneidade. Os tempos em que vivemos têm desnivelado o equilíbrio que se buscou estabelecer, durante muito tempo, entre a segurança e a liberdade.

Acontece que nessa disputa, no contexto das intenções contemporâneas, a liberdade sai na dianteira. Porque ela gera nos indivíduos uma pseudoimpressão de um poder amplo, irrestrito, sobre a vida. De modo que eles se tornam capazes de burlar as regras, de desafiar as leis, de ultrapassar os limites, em nome da satisfação do seu desejo, da sua vontade, da sua decisão, como se dessa forma pudesse acenar ao mundo não só a sua presença; mas, uma superioridade que ele acredita possuir e desfrutar.

Isso significa que a contemporaneidade acabou colocando a liberdade acima de toda e qualquer circunstância da existência humana, na medida em que ela desconsidera o senso coletivo para acirrar um individualismo praticamente narcísico. Então, muitos enxergam o mundo na perspectiva de sua própria ótica, constituindo uma narrativa muito particular sobre a realidade, nas qual suas convicções equivocadas servem como pilares de sustentação para a defesa de opiniões bastante questionáveis.

Ao que parece, observando uns e outros por aí, isso não é um problema para essas pessoas, mesmo que lhes custe algum tipo de perda socioeconômica. Essa concepção de liberdade lhes representa algo bem mais valioso e significativo, capaz de nutrir as suas vaidades manifestas em diferentes formas e conteúdos. Manter-se preso a um ponto de vista, ou uma opinião, ou uma ideia, tornou-se uma maneira de exibição de força, que ressalta os limites até aonde se consegue resistir sem se render ao senso coletivo.

É importante destacar que tudo isso só é possível, graças a um outro elemento típico da contemporaneidade que é a Pós Verdade. Na medida em que os fatos objetivos da vida passaram a ter menos influência e relevância dos que os apelos às crenças, valores e princípios para uma boa parcela da população, a manipulação da opinião pública ajuda a fortalecer esse novo senso de liberdade.

Aliás, as novas tecnologias, também, têm contribuído, e muito, para esse movimento social, como ferramentas importantes na criação, na modelagem e na disseminação em massa das “pós verdades”, dada a sua ampla participação no cotidiano da população. Como disse Umberto Eco, ao jornal italiano La Stampa, “As redes sociais dão o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo direito de falar que um prêmio Nobel. É a invasão dos imbecis”.

Assim, a notícia publicada, hoje, nos veículos de informação e comunicação, de que “Novak Djokovic disse que prefere perder futuros torneios de tênis do que ser forçado a receber uma vacina contra a covid” 1, se encaixa nesse perfil social contemporâneo de aclamação à Pós Verdade. Tanto que, “ele disse que não está ligado ao movimento antivacinas, mas apoia o direito de escolha do indivíduo”. Sendo ele uma figura pública, um expoente esportivo, essa manifestação acaba por funcionar como um mecanismo de bloqueio crítico e reflexivo para muitos de seus seguidores.

A questão é que episódios assim vão muito além de uma distorção ou manipulação da realidade. Nesse caso, por exemplo, em que uma pandemia viral é o centro das discussões e as vacinas ocupam um papel de extrema relevância para a segurança da sobrevivência coletiva, tem-se a devida dimensão dos prejuízos que ainda se pode experimentar na contemporaneidade. Veja que diante do limiar extremo entre a vida e a morte há seres humanos considerando a sua liberdade individual como sendo muito mais importante. A que ponto chegamos! A liberdade acima da própria vida.

Tudo porque a engenhosidade social contemporânea tem levado as pessoas, cada vez mais, a um nível de susceptibilidade às investidas dos mecanismos de persuasão social, absurdo. É uma avalanche contínua de informações disseminadas que se torna incompatível ao tempo necessário para uma depuração analítica consistente e aprofundada. De modo que a pressa, a ansiedade, o imediatismo, a idealização, são algumas das condições subjetivas que compõem esse jogo perigoso.

Sem contar, a imensa necessidade humana de pertencer e ser aceito, ainda que, temporariamente, a partir da anuência e da condescendência a quaisquer absurdos que a contemporaneidade tente afirmar. Aliás, isso me faz lembrar uma citação de Albert Camus que diz, “O homem é a criatura que, para afirmar o seu ser e a sua diferença, nega”. Entretanto, no fim das contas, o resultado desse movimento é que “o homem moderno vive sob a ilusão de que sabe o que quer, quando na verdade ele deseja aquilo que se espera que ele queira” (Erich Fromm – filósofo e psicanalista alemão).

O que todo esse cabo de guerra estabelecido entre a liberdade e a segurança fez, então, no contexto da contemporaneidade, foi criar um mal-estar que consome a sociedade sem que se chegue a bom termo de nada. Nem livres. Nem seguros. Apenas negacionistas errantes sem mesmo conseguirem explicar porque o são. Gente que vive na ilusão das sombras que possam, de alguma forma, agigantar a sua imagem, a sua percepção identitária. 

Conclui-se, portanto, que toda essa dinâmica caótica da contemporaneidade; sobretudo, nesse século XXI, é só um modo estranho e, talvez, equivocado de dizer que “Sem identidade não se é. E a gente tem que ser, isso é que é importante. Mas a identidade obriga depois à dignidade. Sem identidade não há dignidade, sem dignidade não há identidade, sem estas duas não há liberdade. A liberdade impõe, logo de começo, o respeito pelo próximo. Isto pode explicar um pouco os limites da própria vida” (Manoel de Oliveira – cineasta português). Afinal, os fatos nos levam a crer que estamos sim, insistindo em caminhar na contramão do que é realmente necessário. Do que é realmente essencial para o equilíbrio individual e coletivo.