Muito
além da segurança ou da liberdade
Por
Alessandra Leles Rocha
Por mais absurdo que possa parecer,
considerando que a pandemia ainda vigora entre nós, o fato de muitas pessoas
ostentarem uma franca resistência e oposição a vacinação não passa de uma mera
questão da própria contemporaneidade. Os tempos em que vivemos têm desnivelado
o equilíbrio que se buscou estabelecer, durante muito tempo, entre a segurança
e a liberdade.
Acontece que nessa disputa, no
contexto das intenções contemporâneas, a liberdade sai na dianteira. Porque ela
gera nos indivíduos uma pseudoimpressão de um poder amplo, irrestrito, sobre a
vida. De modo que eles se tornam capazes de burlar as regras, de desafiar as
leis, de ultrapassar os limites, em nome da satisfação do seu desejo, da sua
vontade, da sua decisão, como se dessa forma pudesse acenar ao mundo não só a
sua presença; mas, uma superioridade que ele acredita possuir e desfrutar.
Isso significa que a
contemporaneidade acabou colocando a liberdade acima de toda e qualquer
circunstância da existência humana, na medida em que ela desconsidera o senso
coletivo para acirrar um individualismo praticamente narcísico. Então, muitos
enxergam o mundo na perspectiva de sua própria ótica, constituindo uma
narrativa muito particular sobre a realidade, nas qual suas convicções equivocadas
servem como pilares de sustentação para a defesa de opiniões bastante
questionáveis.
Ao que parece, observando uns e
outros por aí, isso não é um problema para essas pessoas, mesmo que lhes custe
algum tipo de perda socioeconômica. Essa concepção de liberdade lhes representa
algo bem mais valioso e significativo, capaz de nutrir as suas vaidades
manifestas em diferentes formas e conteúdos. Manter-se preso a um ponto de
vista, ou uma opinião, ou uma ideia, tornou-se uma maneira de exibição de
força, que ressalta os limites até aonde se consegue resistir sem se render ao
senso coletivo.
É importante destacar que tudo
isso só é possível, graças a um outro elemento típico da contemporaneidade que
é a Pós Verdade. Na medida em que os fatos objetivos da vida passaram a ter
menos influência e relevância dos que os apelos às crenças, valores e
princípios para uma boa parcela da população, a manipulação da opinião pública
ajuda a fortalecer esse novo senso de liberdade.
Aliás, as novas tecnologias,
também, têm contribuído, e muito, para esse movimento social, como ferramentas
importantes na criação, na modelagem e na disseminação em massa das “pós verdades”, dada a sua ampla
participação no cotidiano da população. Como disse Umberto Eco, ao jornal
italiano La Stampa, “As redes sociais dão
o direito de falar a uma legião de idiotas que antes só falavam em um bar
depois de uma taça de vinho, sem prejudicar a humanidade. Então, eram
rapidamente silenciados, mas, agora, têm o mesmo direito de falar que um prêmio
Nobel. É a invasão dos imbecis”.
Assim, a notícia publicada, hoje,
nos veículos de informação e comunicação, de que “Novak Djokovic disse que prefere perder futuros torneios de tênis do
que ser forçado a receber uma vacina contra a covid” 1,
se encaixa nesse perfil social contemporâneo de aclamação à Pós Verdade.
Tanto que, “ele disse que não está ligado
ao movimento antivacinas, mas apoia o direito de escolha do indivíduo”. Sendo
ele uma figura pública, um expoente esportivo, essa manifestação acaba por
funcionar como um mecanismo de bloqueio crítico e reflexivo para muitos de seus
seguidores.
A questão é que episódios assim
vão muito além de uma distorção ou manipulação da realidade. Nesse caso, por
exemplo, em que uma pandemia viral é o centro das discussões e as vacinas
ocupam um papel de extrema relevância para a segurança da sobrevivência
coletiva, tem-se a devida dimensão dos prejuízos que ainda se pode experimentar
na contemporaneidade. Veja que diante do limiar extremo entre a vida e a morte
há seres humanos considerando a sua liberdade individual como sendo muito mais
importante. A que ponto chegamos! A liberdade acima da própria vida.
Tudo porque a engenhosidade
social contemporânea tem levado as pessoas, cada vez mais, a um nível de
susceptibilidade às investidas dos mecanismos de persuasão social, absurdo. É
uma avalanche contínua de informações disseminadas que se torna incompatível ao
tempo necessário para uma depuração analítica consistente e aprofundada. De
modo que a pressa, a ansiedade, o imediatismo, a idealização, são algumas das
condições subjetivas que compõem esse jogo perigoso.
Sem contar, a imensa necessidade
humana de pertencer e ser aceito, ainda que, temporariamente, a partir da
anuência e da condescendência a quaisquer absurdos que a contemporaneidade tente
afirmar. Aliás, isso me faz lembrar uma citação de Albert Camus que diz, “O homem é a criatura que, para afirmar o
seu ser e a sua diferença, nega”. Entretanto, no fim das contas, o
resultado desse movimento é que “o homem
moderno vive sob a ilusão de que sabe o que quer, quando na verdade ele deseja
aquilo que se espera que ele queira” (Erich Fromm – filósofo e psicanalista
alemão).
O que todo esse cabo de guerra
estabelecido entre a liberdade e a segurança fez, então, no contexto da
contemporaneidade, foi criar um mal-estar que consome a sociedade sem que se
chegue a bom termo de nada. Nem livres. Nem seguros. Apenas negacionistas
errantes sem mesmo conseguirem explicar porque o são. Gente que vive na ilusão
das sombras que possam, de alguma forma, agigantar a sua imagem, a sua
percepção identitária.
Conclui-se, portanto, que toda
essa dinâmica caótica da contemporaneidade; sobretudo, nesse século XXI, é só
um modo estranho e, talvez, equivocado de dizer que “Sem identidade não se é. E a gente tem que ser, isso é que é
importante. Mas a identidade obriga depois à dignidade. Sem identidade não há
dignidade, sem dignidade não há identidade, sem estas duas não há liberdade. A
liberdade impõe, logo de começo, o respeito pelo próximo. Isto pode explicar um
pouco os limites da própria vida” (Manoel de Oliveira – cineasta português).
Afinal, os fatos nos levam a crer que estamos sim, insistindo em caminhar na
contramão do que é realmente necessário. Do que é realmente essencial para o equilíbrio
individual e coletivo.