Mais
um corpo negro no chão do Brasil
Por
Alessandra Leles Rocha
O assassinato de um jovem
congolês, no Rio de Janeiro, não é só mais um episódio de violência brutal 1. Não é só mais uma manifestação de
extremismo racista e/ou xenofóbico. Ele é simplesmente o retrato de um Brasil
ensimesmado na sua mais profunda ignorância e alienação, exacerbando a sua
barbárie pela incapacidade dialógica e reflexiva para lidar com as discussões
mais importantes da contemporaneidade.
Para início de conversa, quem sai
de sua terra natal por livre e espontânea vontade é turista. Ele escolhe, ele
decide, ele tem meios para desfrutar uma temporada em outro país. No entanto,
essa não é a situação da maioria das pessoas que transitam pelo mundo nesse
momento. Elas se encontram enquadradas dentro de duas condições distintas, ou
seja, a de migrantes ou a de refugiadas.
Segundo o Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), “os
migrantes escolhem se deslocar não por causa de uma ameaça direta de
perseguição ou morte, mas principalmente para melhorar sua vida em busca de
trabalho ou educação, por reunião familiar ou por outras razões”. Já os
refugiados, “são pessoas que escaparam de
conflitos armados ou perseguições” 2, que
é o caso desse rapaz.
Além disso, há os “refugiados do clima”, que são pessoas
levadas a se deslocar pelo planeta em decorrência de desastres ligados às
mudanças climáticas, os quais tendem a agravar a situação de pobreza, fome,
acesso aos recursos naturais, a instabilidade social e a violência. De acordo
com dados da ACNUR, “desde 2010, as
emergências climáticas obrigaram cerca de 21,5 milhões de pessoas a se mudarem
em média por ano” 3.
O fundamental nesses casos é
entender que os refugiados não podem
voltar ao seu país, enquanto que os migrantes continuam recebendo a proteção do
seu governo. Acontece que os refugiados são maioria. Como apontam os dados
sobre refúgio, “no final de junho de
2021, o número de refugiados sob o mandato do ACNUR ultrapassou 20,8 milhões,
ou seja, 172.000 pessoas a mais do que no final de 2020. Mais da metade dos
novos reconhecimentos vieram de cinco países: República Centro-Africana
(71.800), Sul Sudão (61.700), Síria (38.800), Afeganistão (25.200) e Nigéria
(20.300). No mesmo período, havia 92.100 novos venezuelanos deslocados na
América Latina e no Caribe. O número de solicitantes da condição de refugiado
subiu para 4,4 milhões, em comparação com os 4,1 milhões no final de 2020” 4.
Então, tomando como ponto de
partida para reflexão o caso do jovem congolês, a ideia de que a violência
nasce da sua própria materialidade não é verdade. A violência começa a ser
gestada no inconsciente individual a partir das expressões narrativas de um
inconsciente coletivo estruturado por uma ideia de que “a ordem social é mantida por meio de oposições binárias, tais como a
divisão entre “locais” (insiders) e “forasteiros” (outsiders). A produção de
categorias pelas quais os indivíduos que transgridem são relegados ao status de “forasteiros”, de acordo com
o sistema social vigente, garante um certo controle social” (Woodward, 2000
p.46) 5. Isso significa que a identidade
nacional pode abrir caminho para a exasperação das violências, dos
preconceitos, das intolerâncias, das discriminações.
Não necessariamente, a xenofobia
é uma premissa para esse processo. A questão dos “locais” (insiders) e “forasteiros”
(outsiders) não é só uma questão geográfica, ela diz respeito também ao status quo do indivíduo dentro da
própria sociedade, ou seja, raça, gênero, credo ou idade, podem ser
instrumentos para estabelecer as relações de poder e controle dentro do grupo
social. Mas, no caso em questão, tudo isso se somatizou de uma maneira intensa,
tendo em vista as narrativas tecidas no país.
É claro que “tudo seria mais fácil se os países de imigração aceitassem o fato de
que os imigrantes não são como eles e que a chegada do ‘diferente’ apenas
enriquece a cultura e a economia locais. Tolerância e esforço de inclusão são
as palavras chave nesse mundo de deslocamento populacional maciço” (Bertonha,
2006) 6. Mas, quais as crenças e valores
impregnaram as relações sociais brasileiras; sobretudo, em relação aos negros?
Acima da xenofobia impera, por aqui, o racismo. Estruturado. Naturalizado.
Legitimado a partir de parâmetros historicamente muito bem definidos.
Por isso, a fúria imposta a esse
indivíduo causa tanta perplexidade. É como se um portal para o passado colonial
brasileiro tivesse sido aberto e a prática dos castigos físicos letais fosse
realizada diante dos olhos contemporâneos. Como se estivéssemos imobilizados a
um passado de mais de 500 anos, sem ter evoluído um passo sequer em relação à
civilidade, ao senso de humanidade, ao espírito coletivo. Como se a barbárie
fosse a única linguagem conhecida e possível.
Ele foi morto por querer receber
o pagamento que lhe era devido; afinal, diz a lei brasileira que não há mais
escravidão no país desde 1888. Então, sem quaisquer possibilidades de se
defender, eles o jogaram no chão, o socaram, o espancaram até a morte com um
pedaço de madeira e amarram suas mãos e pernas. Morto, eles o largaram jogado
no chão, como um objeto. Um ser desprezível, desimportante. Relembrando os
tempos em que “os escravos que chegavam ao Brasil eram chamados de ‘peças’ e como mercadorias eram
vendidos em leilões públicos onde pagava-se o melhor preço para quem tinha
entre 12 e 30 anos”7.
Sejamos objetivos, o racismo no
Brasil é histórico; mas, o que lhe garante se perpetuar são as contínuas ações
da direita e suas ramificações extremistas, de geração em geração. Apesar de
social e juridicamente reconhecidos como crimes imprescritíveis 8, o racismo e a injúria racial, permanecem
sendo praticados à luz do dia, por indivíduos que resistem a se manterem ligados
ao ranço secular. Porque, infelizmente, as pessoas ainda não se deram conta da
ideia de que “você não pensa em anjos
brancos ou negros. Eles são simplesmente anjos” (Clarence Thomas – jurista norte-americano).
Por isso, “Enquanto a filosofia que sustenta a existência de uma raça superior
não for desacreditada e abandonada de uma vez por todas, em todas as partes
haverá guerra” (Bob Marley – cantor jamaicano) 9.
E as guerras começam assim, de grão em grão. De motivo torpe em motivo torpe. Primeiro
pela violência verbal. Depois pela não verbal. Até que as estatísticas apontem
a dimensão configurada do morticínio.
Afinal de contas, “é mais fácil mobilizar os homens para a
guerra que para a paz. Ao longo da história, a Humanidade sempre foi levada a
considerar a guerra como o meio mais eficaz de resolução de conflitos, e sempre
os que governaram se serviram de breves intervalos de paz para a preparação das
guerras futuras. Mas em nome da paz que todas as guerras foram declaradas” (José
Saramago – Prêmio Nobel de Literatura 1998) 10.
Resta saber, então, a quem interessa uma paz advinda dessa guerra racista, uma
paz banhada de sangue, de dor, de sofrimento, de indignação, de vergonha.
1 https://extra.globo.com/casos-de-policia/congoles-morto-em-quiosque-na-barra-da-tijuca-apos-cobrar-pagamento-era-alegre-prestativo-25373773.html
2 https://www.acnur.org/portugues/2015/10/01/refugiado-ou-migrante-o-acnur-incentiva-a-usar-o-termo-correto/
3 https://brasil.un.org/pt-br/125639-acnur-deslocamentos-relacionados-ao-clima-sao-mais-que-o-dobro-dos-provocados-por-conflitos
5 SILVA, T. T. da (Org.). Identidade
e diferença – A
perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, 133p.
6 BERTONHA, J. F. Cidadania,
nacionalidade e identidade num mundo de migração internacional. Revista Espaço Acadêmico, Maringá/PR, n.66, nov.2006.
7 https://www.portaldasmissoes.com.br/noticias/view/id/1442/os-negros-e-a-escravidao-por-joao-antunes..html#:~:text=Os%20escravos%20que%20chegavam%20ao,p%C3%A9s%20e%20l%C3%ADnguas%20de%20porcos.
8 https://g1.globo.com/politica/noticia/2021/10/28/supremo-tem-maioria-para-considerar-que-injuria-racial-pode-ser-equiparada-ao-crime-de-racismo.ghtml
9
War (Bob Marley) - https://www.youtube.com/watch?v=m0PwWx2bv6Q