terça-feira, 1 de fevereiro de 2022

Mais um corpo negro no chão do Brasil


Mais um corpo negro no chão do Brasil

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O assassinato de um jovem congolês, no Rio de Janeiro, não é só mais um episódio de violência brutal 1. Não é só mais uma manifestação de extremismo racista e/ou xenofóbico. Ele é simplesmente o retrato de um Brasil ensimesmado na sua mais profunda ignorância e alienação, exacerbando a sua barbárie pela incapacidade dialógica e reflexiva para lidar com as discussões mais importantes da contemporaneidade.

Para início de conversa, quem sai de sua terra natal por livre e espontânea vontade é turista. Ele escolhe, ele decide, ele tem meios para desfrutar uma temporada em outro país. No entanto, essa não é a situação da maioria das pessoas que transitam pelo mundo nesse momento. Elas se encontram enquadradas dentro de duas condições distintas, ou seja, a de migrantes ou a de refugiadas.

Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), “os migrantes escolhem se deslocar não por causa de uma ameaça direta de perseguição ou morte, mas principalmente para melhorar sua vida em busca de trabalho ou educação, por reunião familiar ou por outras razões”. Já os refugiados, “são pessoas que escaparam de conflitos armados ou perseguições” 2, que é o caso desse rapaz.

Além disso, há os “refugiados do clima”, que são pessoas levadas a se deslocar pelo planeta em decorrência de desastres ligados às mudanças climáticas, os quais tendem a agravar a situação de pobreza, fome, acesso aos recursos naturais, a instabilidade social e a violência. De acordo com dados da ACNUR, “desde 2010, as emergências climáticas obrigaram cerca de 21,5 milhões de pessoas a se mudarem em média por ano” 3.

O fundamental nesses casos é entender que os refugiados não podem voltar ao seu país, enquanto que os migrantes continuam recebendo a proteção do seu governo. Acontece que os refugiados são maioria. Como apontam os dados sobre refúgio, “no final de junho de 2021, o número de refugiados sob o mandato do ACNUR ultrapassou 20,8 milhões, ou seja, 172.000 pessoas a mais do que no final de 2020. Mais da metade dos novos reconhecimentos vieram de cinco países: República Centro-Africana (71.800), Sul Sudão (61.700), Síria (38.800), Afeganistão (25.200) e Nigéria (20.300). No mesmo período, havia 92.100 novos venezuelanos deslocados na América Latina e no Caribe. O número de solicitantes da condição de refugiado subiu para 4,4 milhões, em comparação com os 4,1 milhões no final de 2020” 4.

Então, tomando como ponto de partida para reflexão o caso do jovem congolês, a ideia de que a violência nasce da sua própria materialidade não é verdade. A violência começa a ser gestada no inconsciente individual a partir das expressões narrativas de um inconsciente coletivo estruturado por uma ideia de que “a ordem social é mantida por meio de oposições binárias, tais como a divisão entre “locais” (insiders) e “forasteiros” (outsiders). A produção de categorias pelas quais os indivíduos que transgridem são relegados ao status de “forasteiros”, de acordo com o sistema social vigente, garante um certo controle social” (Woodward, 2000 p.46) 5. Isso significa que a identidade nacional pode abrir caminho para a exasperação das violências, dos preconceitos, das intolerâncias, das discriminações.

Não necessariamente, a xenofobia é uma premissa para esse processo. A questão dos “locais” (insiders) e “forasteiros” (outsiders) não é só uma questão geográfica, ela diz respeito também ao status quo do indivíduo dentro da própria sociedade, ou seja, raça, gênero, credo ou idade, podem ser instrumentos para estabelecer as relações de poder e controle dentro do grupo social. Mas, no caso em questão, tudo isso se somatizou de uma maneira intensa, tendo em vista as narrativas tecidas no país.

É claro que “tudo seria mais fácil se os países de imigração aceitassem o fato de que os imigrantes não são como eles e que a chegada do ‘diferente’  apenas enriquece a cultura e a economia locais. Tolerância e esforço de inclusão são as palavras chave nesse mundo de deslocamento populacional maciço” (Bertonha, 2006) 6. Mas, quais as crenças e valores impregnaram as relações sociais brasileiras; sobretudo, em relação aos negros? Acima da xenofobia impera, por aqui, o racismo. Estruturado. Naturalizado. Legitimado a partir de parâmetros historicamente muito bem definidos.

Por isso, a fúria imposta a esse indivíduo causa tanta perplexidade. É como se um portal para o passado colonial brasileiro tivesse sido aberto e a prática dos castigos físicos letais fosse realizada diante dos olhos contemporâneos. Como se estivéssemos imobilizados a um passado de mais de 500 anos, sem ter evoluído um passo sequer em relação à civilidade, ao senso de humanidade, ao espírito coletivo. Como se a barbárie fosse a única linguagem conhecida e possível.

Ele foi morto por querer receber o pagamento que lhe era devido; afinal, diz a lei brasileira que não há mais escravidão no país desde 1888. Então, sem quaisquer possibilidades de se defender, eles o jogaram no chão, o socaram, o espancaram até a morte com um pedaço de madeira e amarram suas mãos e pernas. Morto, eles o largaram jogado no chão, como um objeto. Um ser desprezível, desimportante. Relembrando os tempos em que “os escravos que chegavam ao Brasil eram chamados de ‘peças’ e como mercadorias eram vendidos em leilões públicos onde pagava-se o melhor preço para quem tinha entre 12 e 30 anos”7.

Sejamos objetivos, o racismo no Brasil é histórico; mas, o que lhe garante se perpetuar são as contínuas ações da direita e suas ramificações extremistas, de geração em geração. Apesar de social e juridicamente reconhecidos como crimes imprescritíveis 8, o racismo e a injúria racial, permanecem sendo praticados à luz do dia, por indivíduos que resistem a se manterem ligados ao ranço secular. Porque, infelizmente, as pessoas ainda não se deram conta da ideia de que “você não pensa em anjos brancos ou negros. Eles são simplesmente anjos” (Clarence Thomas – jurista norte-americano).

Por isso, “Enquanto a filosofia que sustenta a existência de uma raça superior não for desacreditada e abandonada de uma vez por todas, em todas as partes haverá guerra” (Bob Marley – cantor jamaicano) 9. E as guerras começam assim, de grão em grão. De motivo torpe em motivo torpe. Primeiro pela violência verbal. Depois pela não verbal. Até que as estatísticas apontem a dimensão configurada do morticínio.

Afinal de contas, “é mais fácil mobilizar os homens para a guerra que para a paz. Ao longo da história, a Humanidade sempre foi levada a considerar a guerra como o meio mais eficaz de resolução de conflitos, e sempre os que governaram se serviram de breves intervalos de paz para a preparação das guerras futuras. Mas em nome da paz que todas as guerras foram declaradas” (José Saramago – Prêmio Nobel de Literatura 1998) 10. Resta saber, então, a quem interessa uma paz advinda dessa guerra racista, uma paz banhada de sangue, de dor, de sofrimento, de indignação, de vergonha. Essa é a pergunta que não vai calar.


5 SILVA, T. T. da (Org.). Identidade e diferençaA perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2000, 133p.

6 BERTONHA, J. F. Cidadania, nacionalidade e identidade num mundo de migração internacional. Revista Espaço Acadêmico, Maringá/PR, n.66, nov.2006.