Por
que devemos nos lembrar?
Por
Alessandra Leles Rocha
Em diversos espaços das redes
sociais, ontem, 27 de janeiro, estava manifesta uma campanha “#WeRemember” (#NósLembramos), em razão do Dia Internacional da Lembrança do Holocausto. De fato,
precisamos lembrar sim, os horrores da 2ª Guerra Mundial. Mas, não basta apenas
não esquecer, é preciso refletir e aprofundar o conhecimento até alcançar os
meandros mais sutis dos fatos.
Infelizmente, as marcas
produzidas pelo holocausto não se resumem aos acontecimentos mais brutais e
perversos, tais como os campos de concentração, as câmaras de gás, as experiências
médicas, a apropriação indébita de bens e riquezas, a separação de famílias
inteiras, a dizimação de pessoas.
Tudo isso ficou devidamente registrado
nas páginas materiais e imateriais da história, como um legado de profunda
consternação e perplexidade a respeito de tempos tão sombrios. A questão é que
a Guerra acabou; mas, essas ideias absurdas não. Esse é ponto. O ódio que
permanece se propagando entre os seres humanos. Que depois da 2ª Guerra trouxe
outras, e outras, e outras...
A razão disso está no fato de que
apesar da maldade conseguir eleger protagonistas, o que a sustenta é uma legião
de fiéis seguidores anônimos, quase invisíveis, que passam até certo ponto
despercebidos na população. Gente comum, sem grandes projeções sociais. Alguns com
alguma importância econômica; mas, não como elemento constituinte dos pilares
de poder.
Acontece que essas pessoas não são
massas de manobra, como muitos acreditam. Elas não foram necessariamente induzidas,
ou influenciadas, ou coagidas a se integrarem aos ideais desse movimento
destrutivo. Não. A sua concordância se deu com base nas afinidades ideológicas e
comportamentais. Elas encontraram eco nas narrativas e discursos disseminados. Não
é à toa que houve quem se manteve à distância disso e trabalhasse na contramão
do holocausto, lutando pelas vidas de quem estava sendo perseguido e
massacrado.
Daí a necessidade de se lembrar.
A Xenofobia, o Racismo, o Sexismo, a Misoginia, a Homofobia, a Transfobia, a Intolerância
Religiosa, a Aporofobia, a Escravização, a Eugenia, a Supremacia branca, sempre
esteve presente na história da humanidade. Em pensamentos, palavras e ações, essas
manifestações tomam conta do cotidiano, diariamente, em todo o planeta.
O que significa se tratar de uma
ameaça real, não necessariamente uma ameaça que aguarda pela deflagração de
guerra para se firmar. Considerando a consciência de que esse perfil não se
sustenta majoritariamente na sociedade, seus simpatizantes apenas aguardam,
sempre à espreita, por condições favoráveis, por legitimações governamentais, por
exemplo, para o extravasarem com vistas à sua consolidação como pautas de
comportamento.
Um exemplo disso pode ser
observado, neste que é o Dia do Combate ao Trabalho Escravo (28/01), no Brasil,
quando o Vice-Coordenador Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e Enfrentamento
do Tráfico de Pessoas (Conaete), afirmou em entrevista que “houve um aumento da quantidade de pessoas em situação de
miserabilidade e de vulnerabilidade social. Esse tipo de situação as torna mais
propensas a serem aliciadas e submetidas a ações de exploração extrema” 1.
Mas, além disso, a matéria acrescentou
que o “[Aumento está relacionado com] a
falta efetiva de fiscalização e da política de afrouxamento da mesma pelo
governo federal, que continua o desmonte do Ministério do Trabalho e Previdência
e da retirada de direitos dos trabalhadores”.
Portanto, é preciso entender que
as atrocidades promovidas por governos mundo afora se sustentam e se
retroalimentam dentro da própria população, por gente que aplaude, que aceita,
que concorda integralmente com elas. Começando pela trivialização, pela
banalização, dos episódios envolvendo Xenofobia, Racismo, Sexismo, Misoginia, Homofobia/Transfobia,
Intolerância Religiosa, Aporofobia, Escravização, Eugenia, Supremacismo.
Utilizando de argumentos que
aviltam os direitos civis das vítimas, tornando-as, inclusive, responsáveis por
essas violências, esse movimento, liderado pela direita e suas ramificações
extremistas, tenta negar as estatísticas que comprovam essa barbárie, na
contemporaneidade. O que muitas vezes acaba favorecendo a construção de uma estatística
subnotificada, que colabora e muito, para a formação de um tabu que
invisibiliza essas discussões.
Bem, invisibiliza; mas, não
extingue. Independentemente de dia, hora, e lugar, é possível sentir a força
dessa aura extremista rondando. Pelas linguagens verbais e não verbais, ela é expressa
e disseminada amiúde, por qualquer classe social. De modo que as ideologias que
estiveram presentes no Holocausto, há mais de 80 anos, conseguem se perpetuar,
de geração em geração, através de pequenas células simpatizantes, no culto
dessas crenças, valores e comportamentos.
Apesar da importância da
criminalização desses atos, as leis ainda esbarram na dificuldade de
sobreposição à continua reafirmação dessas ideologias. Elas buscam frear os
arroubos, os instintos, as intenções; mas, nem sempre, conseguem o mais
importante que é a promoção de uma transformação crítica e reflexiva nos indivíduos.
Quem assistiu ao filme “A outra história
americana” (American History X), de 1998, entende isso de maneira muito
clara e objetiva.
Muitas vezes, as conjunturas
acabam capturando os protagonistas, as lideranças, as personalidades mais
importantes desses movimentos; mas, se esquecem de toda a estrutura popular que
os sustenta. Se esquecem de que eles não estavam sozinhos, não agiam sozinhos. Portanto,
ainda que percam as vozes mais expressivas, eles não perderam a sua própria voz.
A tendência natural é que eles sigam em frente, que assumam novos papéis dentro
do contexto, que se tornem figuras de notória importância.
Daí, mais uma vez, a necessidade
de se lembrar. De pensar. De refletir. De sair da superficialidade da história
e construir uma linha do tempo. Parar de considerar os acontecimentos do
cotidiano, como meros frames. Pontuais.
Desconectados. Pouco representativos.
Prestar mais atenção naquilo que
se ouve. Nem tudo é bobagem. Nem tudo é teatro. Nem tudo é para “causar”. Essa ideia de acreditar que as
pessoas falam sem pensar é tolice. Nem sempre é o consciente que diz; mas,
certamente é o inconsciente. E ele é o espelho da essência humana. A caixa que
guarda todos os segredos, todos os mistérios, todos os anjos e demônios que habitam
o ser.
Não se esqueça de que você escolhe
a roupa que vai vestir, a comida que vai comer, o caminho pelo qual vai transitar,
o programa de TV que vai assistir, o amigo que vai lhe acompanhar, ... ou seja,
você age por afinidade, o tempo todo. Aquilo que cabe ou não dentro da sua lógica
de crenças, valores, princípios, ideias.
Isso explica, então, porque a
maior ameaça para os seres humanos não são as pessoas “diferentes”; mas, as que são iguais ou semelhantes, porque unidas por
suas afinidades ideológicas e comportamentais, elas podem levar o mundo ao
caos, à penúria, a desestabilização e, até mesmo, a uma 3ª Guerra. Afinal, elas
acreditam que são melhores, superiores e mais importantes do que qualquer um
que não se enquadre ao seu check list
de exigências e padrões. É aí que mora o perigo! Em toda e qualquer tentativa
de homogeneização humana.