Muito
além do obituário em si
Por
Alessandra Leles Rocha
Pois é, damos muito pouca atenção
ao que a vida nos ensina; sobretudo, quando o assunto é a morte. Uma grande
maioria pensa que ela é simplesmente o fim. Morreu, acabou. Só que antes dessa derradeira
partida, eis que a sua grandeza nos nivela em pé de igualdade. Bons morrem. Maus
morrem. Gênios morrem. Ignorantes morrem. Enfim... É como diz a canção, “[...]Saiba / Todo mundo vai morrer /
Presidente, general ou rei / Anglo-saxão ou muçulmano / Todo e qualquer ser
humano [...]” 1.
Basta ser de carne e osso para
perecer, para cumprir o ciclo da existência. Virtudes, defeitos, aparências,
contas bancárias, poderes, status, ideologias, ... nada disso entra na conta na
hora de atender ao chamado de adeus. A morte é a única certeza que temos; já
que a vida foi apenas um golpe de sorte da biologia, uma travessura de algum espermatozoide
em um momento de puro encanto por um óvulo.
Daí a importância de se dar o
devido valor a cada instante da vida que se tem nas mãos. Pena, que muita gente
se equivoca e transita pelos minutos do relógio na contramão da história, da
lógica, do bom senso, da realidade, dos fatos, só para ter o gostinho de ser
diferente, de ser ousado na irreflexão, de sentir correr pelo corpo o
magnetismo da transgressão. Quase uma disposição surreal para não se importar
com os custos que advenham desse movimento.
Particularmente, vejo nisso um
traço de profunda frustração. Têm pessoas que teimam em acreditar em uma existência
idealizada, como se isso fosse possível. Então, quaisquer mínimos desalinhos
que surjam pelo caminho, tornam-se estopins para confrontar e guerrear com as
conjunturas, a fim de subjugá-las aos seus ditames, aos seus interesses, aos
seus sonhos. Uma luta inglória? Certamente.
Nosso poder de influência, de interferência,
de organização e de transformação na vida, só existe até a página dois. Todo o
resto é surpresa. É conjuntura. É a presença de milhares de outras personagens.
São os desdobramentos do ontem e do agora, acontecendo simultaneamente ou não. E nós, quem somos nós nesse gigantesco
tabuleiro? Uma peça, que entra e sai na dinâmica de cada jogada das circunstâncias.
A grande questão é que, quando
estamos em ação, somos tomados, invadidos por uma aura de importância, de
destaque, de superioridade, que não se deixa perceber o tamanho da sua
efemeridade. É; temos o péssimo hábito de acreditar que SOMOS ao invés de ESTAMOS.
Por mais devotados que sejamos a nossa construção humana, objetiva e subjetiva,
esse processo não nos garante a solidez da imortalidade, da eternidade. Os
egípcios e suas pirâmides mortuárias provaram essa questão muito bem.
Dentro desse contexto, pessoas
vêm e vão todos os dias. Deixando para trás um legado, um amontoado de coisas
materiais; mas, também, imateriais. Questões resolvidas e não resolvidas. Dívidas.
Pagamentos a receber. Pedidos de desculpas. Retratações. Projetos a cumprir. Viagens
a fazer. Sonhos a reformular. Coisas a dizer. Enfim...
E em meio a tudo isso, pessoas
que estiveram, direta ou indiretamente, presentes em seu caminho. Que podem ou
não sentir tristeza pela sua partida. Que podem ou não reverenciar sua memória.
Que podem ou não dar prosseguimento ao seu legado. Mas, que no fundo,
justificam de alguma forma que a existência nunca é de fato solitária, como
tantos querem crer.
Ainda que ninguém apareça no
funeral, que ninguém se manifeste publicamente a respeito, nenhuma viva alma
passa por esse mundo isenta da coexistência e convivência humana. Então, esse
tipo de decisão é só uma escolha, que traz em si a certeza de ter dispensado
alguma atenção, por mínima que seja, àquele (a) que acaba de partir.
Algo que a grande maioria nunca
saberá em detalhes como se deu. Aliás, nem mesmo, quem ou quantas são essas
pessoas. O que nos coloca milhares de indagações sobre o que acontecerá,
portanto, com o tal legado. Olhando para contemporaneidade, com todas as suas esquisitices
e bizarrices, não dá para descartar a possibilidade de uma briga por esse
espólio.
Afinal, não importa se o que
restou é muito ou pouco. O que importa é o que podem fazer dele. E sem nos
darmos conta, essas atitudes é que nos levam a entender as razões pelas quais
algumas pessoas parecem resistir ao ponto final da morte. O culto que parece se
fiar ao redor das reminiscências as mantêm se propagando pelo tempo.
Seja em termos bons ou ruins,
considerando que a existência humana não existe amparada pela unanimidade. Os dois
lados da moeda podem, assim, ser reverenciados indistintamente. De modo que até
as piores críticas podem trazer a benesse de manter preservada a lembrança de
quem já se foi.
Não é à toa que o poeta Mário
Quintana escreveu, “[Inscrição para um
portão de cemitério] A morte não melhora ninguém...”. A morte não nos
isenta, não nos absolve dos nossos erros, dos nossos equívocos, das nossas
maldades, da nossa estupidez, da nossa ignorância, da nossa pequenez. A morte, simplesmente,
nos interrompe o fluxo, a caminhada, o respirar, dentro de uma perspectiva que
não dava sinais de ser diferente do que era.
Talvez por isso, a cultura
ocidental tenha mais dificuldade em lidar com a morte, de falar sobre ela, de
estabelecer reflexões a respeito. Mas, esse é um exercício a ser praticado por
todo e qualquer ser humano. Não importa se homem ou mulher, jovem ou velho, preto
ou branco, rico ou pobre, ateu ou fiel, letrado ou ignorante. Sobretudo, quando
caem na tentação de se julgarem acima do Bem e do Mal, maiores e melhores do
que os outros.
Afinal de contas, como escreveu Ariano
Suassuna, diante da morte só nos resta dizer, “Cumpriu a sentença. Encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo
que é a marca do nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem
explicação que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque
tudo o que é vivo, morre” (O Auto da Compadecida, 1955).