Dois
pesos e duas medidas...
Por
Alessandra Leles Rocha
O (a) brasileiro (a) tem por
hábito histórico considerar normal a prática de “dois pesos e duas medidas”. Pois bem, o atual Presidente da
República foi intimado a depor na Polícia Federal (PF), pelo Supremo Tribunal
Federal (STF); mas, não compareceu e, até o momento, ainda não se sabe quais
serão as reais consequências desse crime de desobediência.
No entanto, em 2016, quando o
ex-presidente Lula foi levado a prestar depoimento à PF, não só ele foi
conduzido de maneira coercitiva, como houve um aparato de vários policiais no
cumprimento da ação, como se houvesse iminência de fuga ou de resistência.
Esse é só um exemplo. O importante
nessa reflexão é descortinar a que ponto as desigualdades no Brasil são
flagrantes e contrariam de maneira absoluta a igualdade entre os indivíduos. Basta
subir no tijolinho, por aqui, para se acreditar que é mais e melhor do que os
outros. Que determinadas condições, tais como status, poderes, riqueza, gênero,
raça, escolaridade, crença, são suficientes para justificar a execução dos “dois pesos e duas medidas”.
Nesse caso, a própria lei se fez
desigual. O que faz lembrar as palavras de Rui Barbosa, “[...]O povo sabe que não tem justiça; o povo tem certeza de que não
pode contar com os tribunais; o povo vê que todas as leis lhe falham como
abrigo no momento em que delas precise, porque os governos seduzem os
magistrados, os governos os corrompem, e, quando não podem dominar ou seduzir,
os desrespeitam, zombam das suas sentenças, e as mandam declarar inaplicáveis,
constituindo-se desta arte no juiz supremo, no tribunal de última instância, na
última corte de revisão das decisões da justiça brasileira” 1.
O que a maioria das pessoas não
percebe é que sempre existirá alguém se baseando nesses parâmetros para colocar
em franca posição a desigualdade, ou seja, todo mundo vive sob um imenso
telhado de vidro. A afronta a igualdade humana é uma eterna dança de cadeiras,
onde sempre alguém vai sobrar no desalento, na desassistência, na indiferença,
na humilhação. De modo que, mais dia menos dia, chega a vez de experimentar o
gosto amargo da desigualdade, com todo o peso de uma justiça tendenciosa que
ela vangloria em ostentar.
A questão é que não há fundamento
consistente, ou argumentação robusta, capaz de sustentar a existência de “dois pesos e duas medidas” no contexto da
convivência e da coexistência humana. Seres humanos são seres humanos. Se foram
estabelecidas leis, códigos, doutrinas, diretrizes e protocolos para criar um
ambiente equitativo, isso ocorreu justamente para combater e distensionar as divergências
que poderiam emergir, a partir de eventuais desalinhos nos pontos de vista. Assim, sob o abrigo desses mantos comuns, não
há motivos para enxergá-los ou entendê-los diferentes.
Pena que o ranço colonial histórico
brasileiro persiste em reafirmar uma gradação analítica aos fatos, às práticas
cotidianas. Tudo o que acontece é enviesado, manipulado, ajustado, reelaborado,
para caber nesse ou naquele interesse. Como se os dias ganhassem uma mão de
verniz para esconder as imperfeições e fazer parecer tudo bem, tudo em plena
harmonia e equilíbrio, quando na verdade está longe de ser.
Não é à toa que, em pleno século
XXI, ainda há quem pense que no Brasil não há racismo, nem misoginia, nem
sexismo, nem aporofobia, nem homofobia, nem quaisquer outros extremismos e
radicalismos. Confesso que não acredito nessa pseudoingenuidade. Particularmente,
penso que tudo não passa de um jeito sutil de não cruzar as zonas de confortos sociais
instituídas, porque é trabalhoso desconstruir, romper com paradigmas tão
cristalizados nas relações humanas.
Mas, a verdade é que todas essas
manifestações estão aí, presentes em cada esquina, em canto do país, sob o véu
de um conservadorismo de fachada. E é esse véu que vem garantindo “dois pesos e duas medidas”. O véu de uma
permissividade velada, estabelecida de comum acordo entre certos pares sociais
que se unem para impedir que seus poderes sejam ameaçados, ou afrontados, ou
questionados.
Por isso ele é tão curto, tão
estreito, tão limitado. Afinal de contas, na concepção dessas pessoas têm que
ser assim, para poder deixar os outros de fora. Os outros que eles consideram socialmente
desimportantes. Na mais completa parcialidade e injustiça.
Acontece que, quanto mais esse
movimento se recrudesce, mais ele fomenta uma corrida de fins justificando os
meios, ou seja, cria-se uma consciência coletiva em torno da necessidade de fazer
qualquer coisa para obter a ascensão social e desse modo tornar os tais “dois pesos e duas medidas” ao seu
alcance para favorecê-los também.
De algum modo, isso explica os
caminhos de certas práticas sociais historicamente comuns como, por exemplo, a
corrupção, o peculato, a concussão, a prevaricação, que se disseminam pelas
entranhas das instituições e esferas de poder público ou privado. Trata-se de
um jeito torto, equivocado, de tentar equilibrar ou mitigar as desigualdades,
porque sabidamente esses movimentos não alcançam a sociedade como um todo.
Então, elas acabam se tornando um
instrumento de desigualdade dentro da própria desigualdade; bem como,
prejudicando ainda mais os vulneráveis e desassistidos, lançando-os à condição
de eternos requerentes das sobras e restos que os demais venham lhes conceder. Na
mira das injustiças que lhes sejam lançadas indistintamente.
Por isso, enquanto não houver uma
análise e reflexão crítica profunda em relação a isso, não haverá transformação
social que realmente satisfaça a insatisfação pública diante da atual
conjuntura.
Hoje, o Brasil não tem só “dois pesos e duas medidas”. Depois de
mais de 500 anos de história, ele conseguiu o feito de dispor de milhares de
pesos para milhares de medidas, segundo os seus interesses e demandas.
Haja vista a quantidade de
emendas constitucionais e outras leis, criadas nesses 34 anos da Constituição
Federal vigente, que fogem, na maioria das vezes, do interesse coletivo da
população, a partir do desvirtuamento dos seus próprios fundamentos.
Como dizia Rui Barbosa, “Saudade da justiça imparcial, exata,
precisa. Que estava ao lado da direita, da esquerda, centro ou fundos. Porque o
que faz a justiça é o ‘ser justo’. Tão simples e tão banal. Tão puro. Saudade da
justiça pura, imaculada. Aquela que não olha a quem nem o rabo de ninguém. Aquela
que não olha o bolso também. Que tanto faz quem dá mais, pode mais, fala mais. Saudade
da justiça capaz” 2.
Porque sem essa justiça, muitos continuarão
insistindo em fazer a mesma pergunta, “O
que são pessoas de carne e osso? Para os mais notórios economistas, números. Para
os mais poderosos banqueiros, devedores. Para os mais influentes tecnocratas, incômodos.
E para os mais exitosos políticos, votos” (Eduardo Galeano – escritor uruguaio), ou seja,
mantendo a desigualdade cada vez mais passível de justificativa e os “dois pesos e duas medidas” cada vez
mais aceitáveis.