A razão
do ódio e o ódio sem razão
Por
Alessandra Leles Rocha
Que o ódio sempre existiu, isso é fato! Talvez, muitas vezes,
encoberto por camadas de hipocrisia, de indiferença seletiva, de escárnio
inapropriado, da distribuição gratuita de constrangimentos. Até que, quando
menos se esperava, ele aparecia na sua forma genuína e brutal, a violência.
Verbal. Comportamental. Ideológica. Afinal, o ódio é um sentimento intrínseco
ao ser humano, o “lado b” do amor,
que pode se revelar ou não, de acordo com as conjunturas interiores e/ou
exteriores ao indivíduo.
Mas, eis que a contemporaneidade, através da expressão das suas
alas conservadoras, decidiu romper com a evolução social e, particularmente,
com o “politicamente correto”, exacerbando e disseminando as suas representações
de ódio sem qualquer pudor ou acanhamento. Tomando por base uma interpretação
muito particular e tendenciosa a respeito da liberdade de expressão, essa
significativa corrente social se coloca em uma posição de tamanho privilégio e
superioridade, que se considera “livre” para pensar, dizer e fazer, segundo
suas crenças, valores e princípios.
Porém, a questão não é tão rasa e simples quanto parece.
Considerando todos os esforços que a extrema direita e seus conservadores têm
produzido para ocuparem cada vez mais espaços de controle e poder no mundo, o
ódio saiu da posição de mera expressão psicoemocional para alçar voos como
instrumento político-ideológico. O que significa a existência de método na disseminação
social do ódio, ou seja, ele vai além de si mesmo, levando as pessoas ao medo,
ao silêncio, a intimidação, ao controle.
Trata-se, portanto, da construção de
uma rede de elementos que facilitam a manipulação do conservadorismo para
atender as suas demandas particulares. Afinal, “o pertencimento cria uma identidade no indivíduo que fará com que ele,
inserido dentro de uma comunidade e um contexto específico, se empenhe para que
coletivamente lute por uma sociedade mais justa” (MORICONI, 2014 1).
De modo que essa construção do
pertencimento pode ocorrer tanto pelo “sentimento
subjetivo (afetivo ou tradicional) de partícipes de constituição de um todo”,
quanto pela “compensação de interesses
por motivos racionais (de fins ou valores), ou então, numa união de interesses
com idêntica motivação” (WEBER, 1973 2).
Mas, se faz necessário destacar que esse “lutar
por uma sociedade mais justa”, dentro de um olhar contemporâneo está
profundamente relativizado. Daí a presença do ódio em cada canto do mundo,
desagregando para agregar com novos propósitos.
Dentre
os gatilhos utilizados para suas ações estão as Fake News. Se não há uma razão concreta para odiar, ela é fabricada
a partir de distorções da realidade, insinuações e/ou mentiras. Assim, cada vez
mais dependentes e absorvidas pelas tecnologias da informação e comunicação
(TICs), dentro de um cotidiano intenso e extenuante, as pessoas se tornam
vulneráveis aos mecanismos odiosos e seus desdobramentos. E acabam por se
render a girar na espiral tóxica do ódio, sem mesmo compreender exatamente as
razões que as levaram a nutrir esse sentimento.
Portanto,
a humanidade está caminhando na contramão da reflexão proposta por Nelson
Mandela, na qual ele dizia que “Ninguém
nasce a odiar outra pessoa devido à cor da sua pele, ao seu passado ou
religião. As pessoas aprendem a odiar, e, se o podem fazer, também podem ser
ensinadas a amar; porque o amor é mais natural no coração humano do que o seu
oposto”. E esse movimento equivocado e improducente reproduz o ódio além
das relações humanas, propriamente ditas, para ampliá-lo para outras fronteiras
da existência cotidiana. Ódio pela Natureza. Ódio pelas leis. Ódio pelas
vacinas. ... Ódio por tudo que esteja desalinhado ao meu modo de ver e
compreender o mundo. E das chamas desse ódio inflamado, incontrolável, se nutre
o autoritarismo nas esquinas da vida.
Porém,
“o mundo nunca foi redimido pelo ódio”
(Hermann Broch – Escritor austríaco). Nem será. Sobretudo na
contemporaneidade, quando alguns de seus vieses têm buscado, exaustivamente, reafirmar
e acentuar o caráter de conveniência na manifestação do ódio. A ideia desse
ódio despejado as toneladas, vendido por aí a partir de propagandas enganosas,
é construir uma crença nas impossibilidades de ser, de estar, de sonhar, de
construir, de transformar individual e coletivamente. Então, enquanto se
permitir deixar o ódio crescer e multiplicar, corpos irão morrer, almas irão
morrer, ideias irão morrer, até que a essência humana desaparecerá por
completo, sem que nada tenha feito algum sentido.
Por isso, não esqueça das palavras de Bertolt Brecht: “Nada é impossível de mudar. Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo. E examinai, sobretudo, o que parece habitual. Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar”.
1
MORICONI, L. V. Pertencimento e
Identidade. 2014. 52f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação),
Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2014.
2 WEBER, M. Comunidade e sociedade como estruturas de socialização. In: FERNANDES, F. (Org.). Comunidade e sociedade. São Paulo: Biblioteca Universitária, 1973.