A
quem possa interessar...
Por
Alessandra Leles Rocha
Depois de dias horrendos,
frustrantes, constrangedores, a notícia de que uma jovem indígena brasileira
discursou no plenário principal da 26ª Conferência das Partes sobre Mudanças
Climáticas da Organização das Nações Unidas (COP26), em Glasgow, Escócia, além
de trazer profunda satisfação, representa um resgate importantíssimo para a
dignidade cidadã nacional.
Falando, em inglês, para uma
platéia de líderes mundiais, Walelasoetxeige Suruí (Txai Suruí) defendeu muito
mais do que as questões ambientais; mas, a importância do conhecimento dos
povos originários na busca por soluções que venham conter os impactos negativos;
mas, também, recuperem o planeta diante da escalada impiedosa de destruição pela
qual ele está submetido.
Entretanto, sua presença ali
disse, em total silêncio, algo muito mais relevante aos brasileiros nesse
momento. Tendo em vista as ausências do Presidente da República e do Ministro
do Meio Ambiente, foi ela quem representou o país nesse grande evento
internacional. E isso faz pensar, porque todas as vezes em que o Estado
brasileiro se abstém dos seus compromissos e responsabilidades, ele abre um
enorme flanco para que esse seja preenchido por alguém que possa se interessar.
Por sorte dessa vez, foi alguém com legitimidade e credibilidade suficientes
para dignificar o momento; mas, a questão é que nem sempre é assim.
De repente, tais situações de abstenção
governamental vão nos permitindo perceber como o voto no Brasil está longe,
anos luz, de realmente significar a representação popular. Porque, tão logo
eleitos, nossos representantes encontram nesse discreto subterfúgio, uma
maneira simples e fácil de se desvencilhar do próprio papel constitucional assumido.
De modo que eles constroem uma
governança paralela para atender aos seus interesses, enquanto, “a quem possa interessar” fica o ônus e
os desafios da realidade cotidiana do país. Se der certo, ótimo! Se der errado,
a culpa é do outro.
Quando a população se dá conta, o
país está repleto de mandatários que ela nunca nem ouviu falar. Gente que
transita tanto pelas sombras quanto pelos corredores do poder, sem quaisquer
legitimidades eleitorais ou legalidade funcional de cargo público. Gente que,
simplesmente, foi agregada a partir de alianças, conchavos, interesses,
indicações etc.etc.etc.; mas, que se apropriaram do “poder” para “fazer e
acontecer”, segundo suas vontades e quereres.
Mas, não se engane se tratar de
algo restrito a esfera federal. Esse fenômeno já percolou por estados, municípios
e Distrito Federal. Onde existe poder, ali ele emerge. Daí a dúvida sobre quem realmente
está à frente dos rumos do país; pois, pode ser qualquer um. Portanto, esse imbróglio
é altamente benéfico para a classe política.
Ao mergulhar a sociedade nessa
trama tão complexa, ele faz com que o cidadão acabe desistindo de procurar entender
e tomar alguma providência a respeito. Assim, ele é vencido por um cansaço
extenuante, desencadeado por tanta confusão, tanta ineficiência, tanta
corrupção, tanto descaso, tanto abandono, ... No fim das contas, ele não vê saída para quaisquer
mudanças de paradigmas. Como se o país não fosse governado; mas, dominado por
esse ou aquele grupo.
O que, de certa forma, explica
porque o subdesenvolvimento se arrasta por aqui. Qualquer perspectiva de
melhora, de avanço, de desenvolvimento é um risco iminente para essas pessoas
que controlam o poder. Justamente por isso, elas não trabalham em favor do
coletivo; mas, de suas próprias individualidades.
Assim, o país caminha sempre
dando um passo à frente e dez para trás, garantindo a permanência do seu status
de inação. Vivendo sem uma projeção consistente de futuro, sem ambições de
desenvolvimento, de autossuficiência, de inovação científica e tecnológica, ...
Preso as amarras do seu histórico colonialista.
Aliás, que ironia do destino!
Depois de tantos abusos, violências, atrocidades, desumanidades, vilanias
cometidas contra os povos originários do Brasil; sobretudo, nesses últimos três
anos, a arrogância governamental, ao abster-se dos seus compromissos e
responsabilidades na COP26, permitiu a quem de direito ocupar o protagonismo
nacional, contrariando os discursos intolerantes e preconceituosos lançados
sobre as minorias.
Afinal, Txai Suruí é mulher. É
jovem. É indígena. É estudante de Direito. É fundadora do Movimento da
Juventude Indígena. Ou seja, ela não busca permissão para ocupar o seu lugar na
sociedade, ela o faz de fato e de direito. Ela não se abstém, porque ela sabe
que se o fizer alguém pode ocupá-lo para fins inimagináveis. Ela exerce a sua
cidadania, como deveriam fazer todos os demais brasileiros.
Isso porque suas crenças, valores
e princípios humanos foram consolidados na compreensão de que “A prática da cidadania só adquire sentido
se em seu horizonte estão os direitos de todos, a igualdade perante a lei, a
defesa do bem comum” (João Batista Libanio – padre jesuíta, escritor e teólogo
brasileiro).
Somente quando se tem esses
elementos impregnados na alma é que o movimento em favor da construção democrática
e de um modelo de desenvolvimento sustentável pode emergir pelas próprias mãos
e não pelas dos outros.
Desse modo, tal entendimento possibilita trazer à tona a consciência de que “O mundo é formado não apenas pelo que já existe, mas pelo que pode existir”, e que “O tempo somente é porque algo acontece, e onde algo acontece o tempo está” (Milton Santos – Geógrafo brasileiro).