No
fim das contas, a doença é o preconceito
Por
Alessandra Leles Rocha
Descrita em 1981, a Síndrome da Imunodeficiência
Adquirida (AIDS) vem sendo estudada desde então, em diversos países, a fim de
descobrir não só uma vacina preventiva; mas, também, novos fármacos que possam
melhorar a qualidade e expectativa de vida dos pacientes, visando desconstruir
a ideia da “sentença de morte”. Dados
do Programa das Nações Unidas sobre HIV/AIDS (UNAIDS) apontam que desde a década
de 80, quando se iniciou a epidemia, foram registrados 74,9 milhões de pessoas
infectadas, com 32 milhões de mortes. Em 2019, por exemplo, havia 37,9 milhões
de pessoas no mundo contaminadas pelo HIV, sendo que 23,3 milhões delas tinham
acesso à terapia retroviral, que é o tratamento disponível atualmente.
Assim, citando apenas alguns dos
filmes e documentários já produzidos a respeito desse assunto, tais como “Filadélfia” (1993), “Cazuza: O tempo não
para” (2004) ou “Clube de Compras
Dallas” (2013) é possível tecer uma reflexão bastante contundente do que
representa o Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) na sociedade mundial. Falar
sobre a AIDS, pensar sobre ela é fundamental porque diz respeito a descortinar
uma série de tabus e indiferenças que as pessoas cultuam de maneira inadvertida
e irresponsável, causando prejuízos de natureza objetiva e subjetiva incalculáveis.
De modo que a decisão de escrever
sobre isso veio depois de uma recente Fake
News, quando foi disseminado nas redes sociais que pessoas que tomaram duas
doses do imunizante contra o coronavírus no Reino Unido estariam desenvolvendo
AIDS. Um absurdo total, uma mentira sem nenhum respaldo tecnocientífico, que já
foi desmentida por cientistas em todo o mundo e pelas autoridades britânicas 1. Mas, que abre um gigantesco espaço para
se refletir a respeito de inúmeras questões subjacentes à própria AIDS e que
confrontam diretamente as tentativas de reafirmação conservadora da
extrema-direita em todo mundo.
Afinal, as descobertas e
informações construídas inicialmente sobre o vírus HIV trouxeram à tona que sua
transmissão era decorrente do contato sexual ou do contato com fluidos
corporais, principalmente, o sangue contaminado. De modo que se construiu uma
associação entre os casos de AIDS e grupos de risco, tais como os homossexuais,
as prostitutas, os dependentes químicos e os hemofílicos, os quais residiam em
grandes centros urbanos. O que significou um reforço aos preconceitos,
discriminações e estigmas já existentes contra essas minorias.
Acontece que o desenrolar da
história da epidemia de AIDS, ao longo desses mais de 40 anos, provou a inexistência
desses chamados “grupos de risco”,
mostrando que qualquer pessoa poderia adquirir o vírus pelo contato sexual sem
uso de preservativo ou pelo contato com sangue contaminado. Foi a partir desse
momento que a luta dos portadores do HIV se intensificou em todo o mundo.
Aqui no Brasil, a incessante
batalha do sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, que era de uma família de hemofílicos
(incluindo ele próprio) que haviam sido contaminados por transfusão de sangue
não testado durante seus tratamentos contra a hemofilia, é que levou a Constituição
de 1988 a definir a proibição da comercialização de quaisquer tecidos humanos,
incluindo o sangue e seus hemoderivados, iniciando uma obrigatoriedade da
testagem desses materiais.
No entanto, se houve esse grande
avanço social, no sentido da criação de uma série de regras para a doação, por
outro, o preconceito, a discriminação e a estigmatização do portador do HIV
ainda resiste e persiste na sociedade. Esse é o ponto de reflexão no caso da
tal Fake News, porque é de
conhecimento público a impossibilidade de qualquer imunobiológico promover o
desenvolvimento de uma doença. Especialmente quando ele não traz na sua
composição quaisquer vestígios ou traços da presença daquele agente etiológico.
Então, esse discurso teve a intenção subliminar de reacender os propósitos de
marginalização, de exclusão, de banimento das pessoas com AIDS. Uma forma
peculiar de intimidação social.
Além disso, ela contribui para o
fato de que ao não trazer a AIDS para o patamar das discussões, das
orientações, da educação populacional, se estabelece um modo de reafirmar os
valores conservadores da extrema-direita, repletos de tabus e indiferenças. Porém,
não adianta negar e invisibilizar a AIDS porque, por tabela, se promove a
invisibilização de outras doenças oportunistas, tais como hepatites virais,
tuberculose, pneumonia, toxoplasmose e alguns tipos de câncer; bem como, das já
conhecidas Doenças Sexualmente Transmissíveis (DSTs), com destaque para a
sífilis.
E essas doenças têm muito mais
facilidade de transitar entre as pessoas, do que a própria AIDS. Porque não é
necessário estar contaminado pelo HIV para desenvolver qualquer uma delas. Em diversos
casos tratam-se de diferentes vírus, bactérias, protozoários presentes no
ambiente em que circulam os seres humanos todos os dias. Em 2020, por exemplo,
segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), “mais pessoas morreram de
tuberculose, com muito menos pessoas sendo diagnosticadas e tratadas ou
recebendo tratamento preventivo em comparação com 2019. Os gastos gerais com
serviços essenciais para a doença diminuíram” 2.
Portanto, essa estratégia de
lançar as questões, supostamente incômodas, para debaixo do tapete social é um
erro. Isso vulnerabiliza a sociedade como um todo e fomenta gastos muito
maiores com tratamento, do que seriam com a prevenção. Além disso, criam contingentes
insalubres; sobretudo, dentro da população economicamente ativa, prejudicando
desde a oferta de mão-de-obra até os níveis de produção e consumo. Sem contar
que visibilizam internacionalmente uma imagem de negligência, descompromisso e
irresponsabilidade do governo para com o cidadão.
É cada vez mais imperioso,
portanto, compreender que “todo conceito
que o homem não modifica com sua evolução torna-se um preconceito, e os
preconceitos acorrentam as almas à rocha da inércia mental e espiritual” (frase
atribuída à González Pecotche – escritor e pedagogista). O pesado fardo de
obrigar uma sociedade a viver estritamente dentro de protocolos e diretrizes rígidas,
tanto comportamentais quanto ideológicas, é que desencadeia a infinitude de desigualdades
e violências que se conhece, porque as pessoas desaprendem a conviver com o
óbvio da vida que são as diferenças e as individualidades.
Por isso, não sei se é a AIDS, a tuberculose
ou a sífilis, por exemplo, o que de fato querem ocultar. Para mim parece mais plausível
crer que o desconforto advenha de reconhecer a pobreza, a prostituição, o
desamparo, o consumo de drogas, a insegurança alimentar, ... que estão
estampadas nas figuras de muitos desses doentes. Entretanto, reconhecer implica
em agir, em tomar algum tipo providência, em criar políticas públicas, em disponibilizar
recursos, em cuidar, em amparar, e isso não parece ser de interesse de
conservadores da extrema-direita.
Diante disso, não se deixe
enganar pela superficialidade impactante das palavras ou das situações, como
manifestou o filósofo alemão Arthur Schopenhauer, “A descoberta da verdade é impedida de forma mais eficiente não pela aparência
falsa das coisas que iludem e induzem ao erro, nem diretamente pela fraqueza
dos poderes de raciocínio, mas pela opinião preconcebida e pelo preconceito”; afinal,
“Muitas pessoas pensam que estão a pensar
quando estão apenas a rearrumar os seus preconceitos” (William James – um dos
fundadores da psicologia moderna).