sábado, 23 de outubro de 2021

Debaixo da bandeira...


Debaixo da bandeira...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Aos que ainda querem creditar o seu patriotismo ao ato de se vestir de verde e amarelo e torcer pela seleção brasileira de futebol masculino, lamento informar que isso está longe de consolidar qualquer projeto de país. Afinal, como explica o sociólogo Stuart Hall, “A identidade nacional se refere ao sentimento de que pertencemos a uma nação, do ponto de vista político, bem como nos identificamos e compartilhamos a cultura nacional que constrói simbolicamente essa nação” 1.

Então, diante dos últimos acontecimentos econômicos, a total despreocupação em navegar por mares de notória instabilidade demonstra claramente como o senso de patriotismo, por aqui, não passa de retórica vazia e caricata. Há um sentimento visivelmente individualista conduzindo as ações dos poderes da República em detrimento de um espírito coletivo maior, como propõe a própria Carta Magna do país.

Por isso não há políticas públicas concretas. Não há projetos bem definidos. Não há planejamentos estratégicos delineados. Não há recursos provisionados. Não há equipes organizadas. Não há... O método em vigência é o caos, a desordem, o atabalhoamento, a imprevisibilidade. Porquê, dessa maneira, se impede as pessoas de compreenderem os processos em curso e, portanto, poderem questioná-los. Tudo feito a toque de caixa, na instrução da operacionalização de interesses pessoais ou de certos grupos representativos.   

Haja vista todas as manobras de “economia criativa” que foram tecidas nos últimos dias pelo Executivo e Legislativo federal, para justificar a possibilidade de implementação do tal “Auxílio Brasil 2022”2, que não passa de uma transferência direta de recursos, com prazo definido até dezembro do próximo ano, para atender a população em situação de vulnerabilidade.

Simplesmente, as decisões que vêm sendo tomadas desconsideram a gravíssima realidade socioeconômica do país; tendo em vista de que “A estimativa do mercado, levantada pelo Banco Central (Relatório do Prisma Fiscal), é de um déficit de R$100,6 bilhões para 2022, mais que o dobro do projetado pelo Ministério da Economia” 3.

Se em algum momento eles estivessem mesmo preocupados com esses cidadãos teriam abdicado, de saída, do vultoso montante de R$3 bilhões em recursos destinados às chamadas “verbas do relator”. Ora, para quem não sabe, estas não passam de um subterfúgio para trocas de apoio entre o Executivo e o Legislativo federal. Pois, a destinação das mesmas é definida, sem qualquer transparência, a partir de acordos informais entre os parlamentares e o governo federal.

Cadê o patriotismo, hein? Sob o manto da independência dos poderes, o Judiciário também vem se abstendo de uma manifestação mais contundente diante do flagrante descompromisso constitucional que essa “economia criativa”, liderada pelo Executivo e legislativo, põe em curso. Em suma, nenhum deles enxerga o Brasil, além da sua própria perspectiva. Sentem-se acima dos acontecimentos e de suas consequências, blindados do infortúnio, das perdas, das privações, enfim...

De modo que os precedentes que se abrem na economia brasileira, nesse momento, não estão a serviço da população, dos seus interesses e demandas emergenciais. Não se engane, eles não estão a serviço de “construir uma sociedade livre, justa, solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação” 4.

Como bem manifestou o economista Simão Silber, “As medidas que o governo anunciou nessa semana têm um efeito desfavorável sobre aqueles que vão receber o Auxílio Brasil. Por quê? Porque ao aumentar a taxa de câmbio e ter um efeito sobre a inflação, isso corrói o valor dos R$400 [...] A vítima é sempre conhecida: é o cidadão brasileiro” 5. De um jeito ou de outro, todos acabarão pagando conjuntamente pelos erros, pelos tropeços, pelos absurdos, pelas irresponsabilidades casuísticas dos “patriotas de plantão”.

Não se trata de acaso, nem coincidência, nem destino, nos acontecimentos que se desenham nesse recorte da contemporaneidade brasileira. Como escreveu Umberto Eco, “Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico” (O Cemitério de Praga, 2010).

O que explica porque “na política, os ódios comuns são a base das alianças” (Alexis de Tocqueville – pensador político francês). De modo que “a pobreza não é um acidente. Assim como a escravização e o Apartheid, a pobreza foi criada pelo homem e pode ser removida pelas ações dos seres humanos” (Nelson Mandela).

A questão é saber se o brasileiro, aquele que tem o controle e o poder de decisão, quer essa mudança, quer romper com as desigualdades seculares. Mas, tendo em vista o agora, talvez, sejamos impactados pela consciência de que “A maior desgraça de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos” (Mia Couto – escritor e biólogo moçambicano).