Debaixo
da bandeira...
Por
Alessandra Leles Rocha
Aos que ainda querem creditar o
seu patriotismo ao ato de se vestir de verde e amarelo e torcer pela seleção
brasileira de futebol masculino, lamento informar que isso está longe de
consolidar qualquer projeto de país. Afinal, como explica o sociólogo Stuart
Hall, “A identidade nacional se refere ao
sentimento de que pertencemos a uma nação, do ponto de vista político, bem como
nos identificamos e compartilhamos a cultura nacional que constrói simbolicamente
essa nação” 1.
Então, diante dos últimos
acontecimentos econômicos, a total despreocupação em navegar por mares de notória
instabilidade demonstra claramente como o senso de patriotismo, por aqui, não
passa de retórica vazia e caricata. Há um sentimento visivelmente
individualista conduzindo as ações dos poderes da República em detrimento de um
espírito coletivo maior, como propõe a própria Carta Magna do país.
Por isso não há políticas
públicas concretas. Não há projetos bem definidos. Não há planejamentos estratégicos
delineados. Não há recursos provisionados. Não há equipes organizadas. Não há...
O método em vigência é o caos, a desordem, o atabalhoamento, a imprevisibilidade.
Porquê, dessa maneira, se impede as pessoas de compreenderem os processos em
curso e, portanto, poderem questioná-los. Tudo feito a toque de caixa, na
instrução da operacionalização de interesses pessoais ou de certos grupos
representativos.
Haja vista todas as manobras de “economia criativa” que foram tecidas
nos últimos dias pelo Executivo e Legislativo federal, para justificar a
possibilidade de implementação do tal “Auxílio
Brasil 2022”2, que não passa de
uma transferência direta de recursos, com prazo definido até dezembro do
próximo ano, para atender a população em situação de vulnerabilidade.
Simplesmente, as decisões que vêm
sendo tomadas desconsideram a gravíssima realidade socioeconômica do país;
tendo em vista de que “A estimativa do
mercado, levantada pelo Banco Central
(Relatório do Prisma Fiscal), é de um déficit de R$100,6 bilhões para 2022,
mais que o dobro do projetado pelo Ministério da Economia” 3.
Se em algum momento eles estivessem
mesmo preocupados com esses cidadãos teriam abdicado, de saída, do vultoso
montante de R$3 bilhões em recursos destinados às chamadas “verbas do relator”. Ora, para quem não sabe, estas não passam de
um subterfúgio para trocas de apoio entre o Executivo e o Legislativo federal. Pois,
a destinação das mesmas é definida, sem qualquer transparência, a partir de
acordos informais entre os parlamentares e o governo federal.
Cadê o patriotismo, hein? Sob o
manto da independência dos poderes, o Judiciário também vem se abstendo de uma manifestação
mais contundente diante do flagrante descompromisso constitucional que essa “economia criativa”, liderada pelo
Executivo e legislativo, põe em curso. Em suma, nenhum deles enxerga o Brasil,
além da sua própria perspectiva. Sentem-se acima dos acontecimentos e de suas consequências,
blindados do infortúnio, das perdas, das privações, enfim...
De modo que os precedentes que se
abrem na economia brasileira, nesse momento, não estão a serviço da população,
dos seus interesses e demandas emergenciais. Não se engane, eles não estão a
serviço de “construir uma sociedade
livre, justa, solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a
pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação” 4.
Como bem manifestou o economista Simão
Silber, “As medidas que o governo
anunciou nessa semana têm um efeito desfavorável sobre aqueles que vão receber
o Auxílio Brasil. Por quê? Porque ao aumentar a taxa de câmbio e ter um efeito
sobre a inflação, isso corrói o valor dos R$400 [...] A vítima é sempre
conhecida: é o cidadão brasileiro” 5. De
um jeito ou de outro, todos acabarão pagando conjuntamente pelos erros, pelos
tropeços, pelos absurdos, pelas irresponsabilidades casuísticas dos “patriotas de plantão”.
Não se trata de acaso, nem coincidência,
nem destino, nos acontecimentos que se desenham nesse recorte da
contemporaneidade brasileira. Como escreveu Umberto Eco, “Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas:
quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os
bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o
último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no
ódio, no ódio por quem não é idêntico” (O Cemitério de Praga, 2010).
O que explica porque “na política, os ódios comuns são a base
das alianças” (Alexis de Tocqueville –
pensador político francês). De modo que “a
pobreza não é um acidente. Assim como a escravização e o Apartheid, a pobreza
foi criada pelo homem e pode ser removida pelas ações dos seres humanos”
(Nelson Mandela).
A questão é saber se o brasileiro,
aquele que tem o controle e o poder de decisão, quer essa mudança, quer romper com
as desigualdades seculares. Mas, tendo em vista o agora, talvez, sejamos impactados
pela consciência de que “A maior desgraça
de uma nação pobre é que em vez de produzir riqueza, produz ricos” (Mia Couto –
escritor e biólogo moçambicano).
1 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 4.ed.
Rio de Janeiro: DP&A, 2000.
2 https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2021/10/22/economistas-dizem-que-desrespeito-ao-teto-de-gastos-vai-anular-beneficio-de-auxilio-por-aumentar-inflacao.ghtml
3 https://www12.senado.leg.br/noticias/infomaterias/2021/10/orcamento-2022-chega-com-deficit-de-r-49-6-bi
4 Art. 3º, CF
de 1988.
5 Idem 2.