As
sombras e as escuridões coloniais em plena contemporaneidade
Por
Alessandra Leles Rocha
O silêncio é o maior inimigo da
transformação. Isso fica muito claro, no Brasil, quando se decide discutir e
revolver as sombras e as escuridões coloniais que nutrem questões importantes
como o racismo, as práticas escravocratas, as desigualdades e as violências sociais.
Na medida, então, em que se dá vez e voz para a história, a partir de novas
perspectivas, outras dimensões dos problemas se descortinam, revelando a
grandeza dos desafios a serem enfrentados.
Infelizmente, o Colonialismo enquanto
prática político-administrativa e econômica ficou no passado, em séculos
anteriores a esse; mas, as suas marcas e os seus desdobramentos resistem ao
tempo. Afinal, no campo da mobilidade social praticamente não houve mudanças. O
que significa que a pirâmide permanece organizada, estruturada da mesma forma,
legitimando o poder nas mãos de gerações em gerações abastadas que se sucedem.
Daí a importância da decisão do
Supremo Tribunal Federal (STF), na tarde de ontem, 28 de outubro de 2021, ao consagrar
a injúria racial como crime imprescritível e equiparando-o ao crime de racismo.
Esse foi um marco histórico, porque abre um precedente para ruptura com
valores, crenças e princípios, não apenas limitados e retrógrados; mas,
absurdamente contrários ao respeito à dignidade humana, a civilidade, ao senso
humanitário. Um grande passo, portanto, dentro de uma longa jornada a ser
cumprida.
E não pensem que essa observação
seja sinal de desânimo ou desesperança, porque não é. Mas, não se pode perder
de vista a realidade que nos rodeia, a qual está ainda muito impregnada pela constante
reafirmação dos valores coloniais, especialmente, por parte dos setores mais
conservadores da população. Amiúde podemos constatar que a dinâmica cotidiana
teima em fazer parecer que a distância entre o século XVI e o século XXI, na
prática, é menor do que na teoria.
Basta ver os resultados apontados
pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Previdência,
sobre trabalho análogo à escravidão no país. De janeiro a setembro deste ano
foram resgatadas 1015 pessoas nessa situação; mas, “os números desse ano superam o total de 2020, com 936 pessoas
resgatadas, e se aproxima do registrado em 2019, 1.131 casos”1. É importante ressaltar que a incidência
dessas ocorrências predomina no trabalho rural, conforme lista divulgada pelo
próprio Ministério 2.
Essa situação possibilita
entender que os preconceitos, as violências, o menosprezo pelas parcelas mais
vulneráveis da sociedade, vai muito além das ofensas e agressões verbais. Ela se
manifesta contundentemente materializada pelas propostas escravocratas presentes
nas relações de trabalho contemporâneas.
Trata-se de uma “’condição extremamente precária à qual esse
trabalhador é submetido. São alojamentos precários, falta de acesso a água
potável, a alimentação, a banheiros’, explicou o subsecretário de Inspeção do
Trabalho”. Sem contar que “’em muitos
casos, ainda se verificam também jornadas exaustivas, sem descanso, e
servidores por dívida’, completou ele” 3.
O pior é que a sociedade não se questiona, não reflete, a razão pela qual
isso continua acontecendo no país, em pleno século XXI.
Mas, como? Se esse quadro é fruto
do descaso, do abandono, das desigualdades que acirram a inacessibilidade de milhões
de pessoas aos direitos humanos fundamentais. Na medida em que são lançadas à
margem da sociedade, elas passam a constituir um contingente de mão-de-obra que
irá servir aos interesses de um trabalho precarizado, particularmente, no que
diz respeito aos direitos humanos e trabalhistas. Até que, vez por outra, a
intervenção do Estado promova o seu resgate diante de gravíssimas circunstâncias.
Pena, que isso seja um paliativo,
porque a ausência de políticas públicas que possam efetivamente propiciar-lhes
condições de mudar os paradigmas de sua existência, tende a devolvê-las a esse
cenário absurdo novamente. Ora, a fome não espera; a sobrevivência não espera. E
como elas não foram devidamente instrumentalizadas para sobreviver dignamente na
sociedade, elas só se reconhecem aptas a realizar esse tipo de trabalho,
aceitando o que dele resultar.
No fim das contas, essa legião de
pobres diabos, desalentados e esquecidos, não passa de um escudo humano dentro
da sociedade. Ora, não são eles os guardadores do enriquecimento de uma minoria,
que aceita vê-los trabalhar por raspas e por restos? Não é por eles que se
promete e nunca se cumprem as promessas retóricas vazias, de campanha em
campanha eleitoral? Não é em nome deles que se desenha uma pseudodignidade
assistencialista, que não se constrange em torná-los “bichos”4?
Não é sem razão, portanto, que mais
uma vez serão escudos para camuflar as más intenções que borbulham no “caldo”
da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Precatórios. Sim, porque tomando
como justificativa central a criação do “Auxílio Brasil”, programa temporário
de transferência de renda que vem a substituir o Bolsa Família, pretende-se
permitir o parcelamento das dívidas da União com pessoas físicas e jurídicas,
estados e municípios, reconhecidas em decisões judiciais definitivas. O que representa
uma estimativa de economia em torno de R$33,5 bilhões no próximo ano, podendo
ser aplicada também para outros gastos.
Acontece que o espaço fiscal
possibilitado pela PEC passa a ser de aproximadamente R$83 bilhões, segundo
cálculos do Ministério da Economia, um valor muito superior ao custo
operacional do “Auxílio Brasil”, que
gira em torno de R$51,1 bilhões. Considerando que esse novo programa
assistencial é de caráter temporário e que 2022 é ano eleitoral, não é difícil de
imaginar que esses recursos se diluam sem produzir efeitos práticos e permanentes.
Corre-se o risco, inclusive, de que parte deles se transforme em mais caminhos de
oportunismo para emendas parlamentares. De modo que, em médio e longo prazo, se
somatizariam aos desafios da economia brasileira já existentes.
Como é possível perceber através dessa
breve reflexão, os problemas seculares brasileiros tendem inevitavelmente a se convergir
para o ranço colonial. Daí a necessidade de compreender linearmente os caminhos
da história nacional. Quem manda. Quem obedece. Quem tem dinheiro. Quem não
tem. O que significa que o presente não é um fruto do “de repente”. Há sempre um elo se conectando a outro, a outro, a
outro, ... que ajudam a explicar a repetição e a reafirmação dos acontecimentos
ao longo do tempo, tanto na perspectiva do bom quanto do ruim.
Mas, talvez, seja hora de
compreender definitivamente que “não
importa de onde vim, mas sim aonde quero chegar” e isso, implica necessariamente
em olhar para a história de uma outra maneira. Porque “até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias
continuarão glorificando o caçador”. Logo, “a primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la”;
pois, “temos, há muito tempo, guardado
dentro de nós um silêncio bastante parecido com estupidez”.
A partir desse ponto, então, se torna realmente possível compreender o significado da condição humana, ou seja, “O que são as pessoas de carne e osso? Para os mais notórios economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros, devedores. Para os mais influentes tecnocratas, incômodos. E para os mais exitosos políticos, votos” (Eduardo Galeano – jornalista e escritor uruguaio).