sexta-feira, 29 de outubro de 2021

As sombras e as escuridões coloniais em plena contemporaneidade


As sombras e as escuridões coloniais em plena contemporaneidade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O silêncio é o maior inimigo da transformação. Isso fica muito claro, no Brasil, quando se decide discutir e revolver as sombras e as escuridões coloniais que nutrem questões importantes como o racismo, as práticas escravocratas, as desigualdades e as violências sociais. Na medida, então, em que se dá vez e voz para a história, a partir de novas perspectivas, outras dimensões dos problemas se descortinam, revelando a grandeza dos desafios a serem enfrentados.

Infelizmente, o Colonialismo enquanto prática político-administrativa e econômica ficou no passado, em séculos anteriores a esse; mas, as suas marcas e os seus desdobramentos resistem ao tempo. Afinal, no campo da mobilidade social praticamente não houve mudanças. O que significa que a pirâmide permanece organizada, estruturada da mesma forma, legitimando o poder nas mãos de gerações em gerações abastadas que se sucedem.

Daí a importância da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), na tarde de ontem, 28 de outubro de 2021, ao consagrar a injúria racial como crime imprescritível e equiparando-o ao crime de racismo. Esse foi um marco histórico, porque abre um precedente para ruptura com valores, crenças e princípios, não apenas limitados e retrógrados; mas, absurdamente contrários ao respeito à dignidade humana, a civilidade, ao senso humanitário. Um grande passo, portanto, dentro de uma longa jornada a ser cumprida.

E não pensem que essa observação seja sinal de desânimo ou desesperança, porque não é. Mas, não se pode perder de vista a realidade que nos rodeia, a qual está ainda muito impregnada pela constante reafirmação dos valores coloniais, especialmente, por parte dos setores mais conservadores da população. Amiúde podemos constatar que a dinâmica cotidiana teima em fazer parecer que a distância entre o século XVI e o século XXI, na prática, é menor do que na teoria.

Basta ver os resultados apontados pela Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Previdência, sobre trabalho análogo à escravidão no país. De janeiro a setembro deste ano foram resgatadas 1015 pessoas nessa situação; mas, “os números desse ano superam o total de 2020, com 936 pessoas resgatadas, e se aproxima do registrado em 2019, 1.131 casos”1. É importante ressaltar que a incidência dessas ocorrências predomina no trabalho rural, conforme lista divulgada pelo próprio Ministério 2.

Essa situação possibilita entender que os preconceitos, as violências, o menosprezo pelas parcelas mais vulneráveis da sociedade, vai muito além das ofensas e agressões verbais. Ela se manifesta contundentemente materializada pelas propostas escravocratas presentes nas relações de trabalho contemporâneas.

Trata-se de uma “’condição extremamente precária à qual esse trabalhador é submetido. São alojamentos precários, falta de acesso a água potável, a alimentação, a banheiros’, explicou o subsecretário de Inspeção do Trabalho”. Sem contar que “’em muitos casos, ainda se verificam também jornadas exaustivas, sem descanso, e servidores por dívida’, completou ele” 3. O pior é que a sociedade não se questiona, não reflete, a razão pela qual isso continua acontecendo no país, em pleno século XXI.

Mas, como? Se esse quadro é fruto do descaso, do abandono, das desigualdades que acirram a inacessibilidade de milhões de pessoas aos direitos humanos fundamentais. Na medida em que são lançadas à margem da sociedade, elas passam a constituir um contingente de mão-de-obra que irá servir aos interesses de um trabalho precarizado, particularmente, no que diz respeito aos direitos humanos e trabalhistas. Até que, vez por outra, a intervenção do Estado promova o seu resgate diante de gravíssimas circunstâncias.

Pena, que isso seja um paliativo, porque a ausência de políticas públicas que possam efetivamente propiciar-lhes condições de mudar os paradigmas de sua existência, tende a devolvê-las a esse cenário absurdo novamente. Ora, a fome não espera; a sobrevivência não espera. E como elas não foram devidamente instrumentalizadas para sobreviver dignamente na sociedade, elas só se reconhecem aptas a realizar esse tipo de trabalho, aceitando o que dele resultar.

No fim das contas, essa legião de pobres diabos, desalentados e esquecidos, não passa de um escudo humano dentro da sociedade. Ora, não são eles os guardadores do enriquecimento de uma minoria, que aceita vê-los trabalhar por raspas e por restos? Não é por eles que se promete e nunca se cumprem as promessas retóricas vazias, de campanha em campanha eleitoral? Não é em nome deles que se desenha uma pseudodignidade assistencialista, que não se constrange em torná-los “bichos”4?

Não é sem razão, portanto, que mais uma vez serão escudos para camuflar as más intenções que borbulham no “caldo” da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) dos Precatórios. Sim, porque tomando como justificativa central a criação do “Auxílio Brasil”, programa temporário de transferência de renda que vem a substituir o Bolsa Família, pretende-se permitir o parcelamento das dívidas da União com pessoas físicas e jurídicas, estados e municípios, reconhecidas em decisões judiciais definitivas. O que representa uma estimativa de economia em torno de R$33,5 bilhões no próximo ano, podendo ser aplicada também para outros gastos.  

Acontece que o espaço fiscal possibilitado pela PEC passa a ser de aproximadamente R$83 bilhões, segundo cálculos do Ministério da Economia, um valor muito superior ao custo operacional do “Auxílio Brasil”, que gira em torno de R$51,1 bilhões. Considerando que esse novo programa assistencial é de caráter temporário e que 2022 é ano eleitoral, não é difícil de imaginar que esses recursos se diluam sem produzir efeitos práticos e permanentes. Corre-se o risco, inclusive, de que parte deles se transforme em mais caminhos de oportunismo para emendas parlamentares. De modo que, em médio e longo prazo, se somatizariam aos desafios da economia brasileira já existentes.

Como é possível perceber através dessa breve reflexão, os problemas seculares brasileiros tendem inevitavelmente a se convergir para o ranço colonial. Daí a necessidade de compreender linearmente os caminhos da história nacional. Quem manda. Quem obedece. Quem tem dinheiro. Quem não tem. O que significa que o presente não é um fruto do “de repente”. Há sempre um elo se conectando a outro, a outro, a outro, ... que ajudam a explicar a repetição e a reafirmação dos acontecimentos ao longo do tempo, tanto na perspectiva do bom quanto do ruim.

Mas, talvez, seja hora de compreender definitivamente que “não importa de onde vim, mas sim aonde quero chegar” e isso, implica necessariamente em olhar para a história de uma outra maneira. Porque “até que os leões tenham seus próprios historiadores, as histórias continuarão glorificando o caçador”. Logo, “a primeira condição para modificar a realidade consiste em conhecê-la”; pois, “temos, há muito tempo, guardado dentro de nós um silêncio bastante parecido com estupidez”.

A partir desse ponto, então, se torna realmente possível compreender o significado da condição humana, ou seja, “O que são as pessoas de carne e osso? Para os mais notórios economistas, números. Para os mais poderosos banqueiros, devedores. Para os mais influentes tecnocratas, incômodos. E para os mais exitosos políticos, votos” (Eduardo Galeano – jornalista e escritor uruguaio).