O
“vira-lata” e a recolonização
Por
Alessandra Leles Rocha
O dia seguinte a um acontecimento
impactante é sempre reflexivo. E hoje foi exatamente assim. Visitando os veículos
de comunicação, o rescaldo das informações sobre o 7 de setembro, no Brasil,
permitiu expandir o olhar em diversas direções e camadas que me trouxeram uma nova
perspectiva sobre a conjuntura atual.
Eis que em uma passada de olhos
por um determinado post, me deparei com uma foto de um cidadão brasileiro, que
esteve presente, ontem, à manifestação de apoio ao governo federal, vestido com
uma versão tupiniquim de Jacob Anthony Chansley, mais conhecido como o “Xamã” do grupo QAnon, que invadiu o
Capitólio americano, em 6 de janeiro deste ano 1.
Bem, isso não é pouco, não é
banal, não é engraçado. Essa pessoa lançou luz sobre algo muito mais grave a
respeito do cenário político nacional. Ao apropriar-se dessa imagem constituída
por um transgressor das leis de outro país, o cidadão brasileiro assumiu uma
posição que faz da sua identidade nacional uma extensão do que seria o “regime Trumpista”.
O que antes se acreditava ser
apenas idolatria, admiração exacerbada, por parte do atual governo brasileiro,
em relação ao ex-presidente norte-americano Donald Trump, ganha a cada dia contornos
de uma disposição política aos moldes coloniais. De modo que essa “aliança” tende, como já demonstrou no
governo Trump, beneficiar os interesses dele em detrimento dos nossos.
Mas, ao que parece, os apoiadores
do governo brasileiro ou não se deram conta disso ou não se importam em figurar
como vitrine de uma eventual expansão geopolítica e ideológica do Trumpismo. O que
se traduz, pela milionésima vez, no consagrado “complexo de vira-lata”, descrito por Nelson Rodrigues, na década de
1950.
Aqui e ali, o brasileiro encontra
sempre um pretexto para se colocar em posição de inferioridade, de
subalternidade, de desdém à própria identidade nacional, em relação ao restante
do mundo, que ele julga superior e bem-sucedido. Como se estivesse incorporado,
nas raízes coloniais do século XVI, o hábito de beijar a mão de qualquer nobre
ou pseudonobre, em nome de uma benesse, de um agrado, de uma possível notoriedade.
Aí, vale tudo! Até perder quaisquer vestígios de dignidade e respeito.
A grande questão nessa história
toda é que o Brasil está colocando em xeque a sua posição diplomática em um
mundo globalizado, para se aventurar nos delírios de alguém que não representa
sequer um país. Basta ver que ele está sozinho nesse papel, não há outros países
se curvando ao Trumpismo, mergulhando de cabeça em algo tão sem propósito. Porque
essa é uma situação na qual há muito mais a se perder objetivamente no cenário
mundial; como, por exemplo, investimentos e parcerias em áreas estratégicas.
Compreender a dinâmica de um país
colonial entre os séculos XVI e XIX é, até certo ponto, fácil. O continente brasileiro,
por exemplo, foi apropriado pela Coroa Portuguesa, a fim de exploração.
Portanto, não havia como questionar ou interromper, de pronto, esse processo. Mas,
se permitir voluntariamente “recolonizar”,
em pleno século XXI, dentro de outros parâmetros nacionais e globais é
totalmente injustificável. Afinal, não se trata de desfrutar da mesma igualdade
e equidade de direitos e obrigações, porque a ideologia Trumpista está
alicerçada em crenças e valores supremacistas intransponíveis.
O que o Brasil tem, então,
representado para eles, até aqui, é a possibilidade de amplificação de suas
narrativas; sobretudo, em relação ao extremismo e radicalismo das ideologias que
elas sustentam. De modo que seus investimentos nesse processo “colonizador” visam, justamente, obter números
crescentes de seguidores e apoiadores fiéis. No fim das contas, nada do que
estamos assistindo acontecer no Brasil diz respeito a ele; mas, ao Trumpismo.
Quando se vê, por exemplo, o desconforto
e a preocupação em relação as investigações e prisões realizadas nos casos sobre
Fake News e atos antidemocráticos, é porque os envolvidos fazem parte diretamente
dessa ponte que busca unir o Brasil ao Trumpismo. Então, os intensos esforços em
libertá-los objetiva impedir a desconstrução e eventual fragilização desse projeto
em território brasileiro, o único que o recebeu de “braços abertos”.
E apesar da adesão brasileira,
ainda, ser incipiente, o nível de envolvimento dos participantes pode-se dizer efetivo
e significativo. As narrativas encontraram acolhimento na insatisfação
individual de muitos, na frustração política, nas aspirações de poder, ...; mas,
principalmente, no ideário colonial que resiste no inconsciente coletivo
brasileiro e que, sob alguns aspectos, se ajusta ao ideário colonial
norte-americano. Especialmente, nas pautas conservadoras. Não é à toa que,
ontem, a massa “verde e amarela”,
dispersa pelo país, tremulasse sem qualquer inibição outras bandeiras, além da
sua.
Assim, prestemos bastante atenção ao que se desenha diante de nossos olhos. Como bem escreveu Eduardo Galeano, “A chuva que irriga os centros de poder imperialista afoga os vastos subúrbios do sistema. Do mesmo modo, e simetricamente, o bem-estar de nossas classes dominantes – dominantes para dentro, dominadas para fora – é a maldição de nossas multidões, condenadas a uma vida de bestas de carga” 2; por essa razão, “ Nossa derrota esteve sempre implícita na vitória dos outros. Nossa riqueza sempre gerou nossa pobreza por nutrir a prosperidade alheia: os impérios e seus beleguins”.
1 https://www.esquerdadiario.com.br/Gado-a-brasileira-homem-vai-vestido-com-versao-de-viking-do-Capitolio
2 GALEANO, E. As Veias abertas da América Latina. (1971)