As
chamas da escassez hídrica
Por
Alessandra Leles Rocha
De modo geral, os brasileiros têm
noção da gravidade da crise hídrica; sobretudo, pelos últimos aumentos da
tarifa de energia elétrica. Nas regiões Sudeste
e Centro-Oeste do Brasil, onde estão localizados os principais reservatórios de
água doce do país, essa pressão aumenta ainda mais. O curioso é que, apesar
desse contexto caótico, a escalada de incêndios sobre os principais biomas
nacionais segue seu curso em franca expansão, colocando em risco propriedades
agrícolas, pequenas comunidades e, até mesmo, cidades inteiras pela ação
devastadora das chamas.
Infelizmente, o fogo não apaga
sozinho. Sobretudo, quando ele encontra na vegetação seca e na matéria orgânica
decomposta no solo o combustível necessário para alimentar as labaredas. Trata-se
de um trabalho incessante das equipes de bombeiros e brigadistas para conter e
acabar com os focos incendiários presentes em grandes extensões de terra, cuja
geografia do terreno é quase sempre irregular e de difícil trânsito por eles. Daí
a necessidade de água. Muita água para auxiliar nesse processo.
Mas, a pergunta que não quer
calar é, como se o regime de chuvas foi tão alterado? Segundo dados do Operador
Nacional do Sistema Elétrico, o nível médio de água nos principais
reservatórios das regiões Sudeste e Centro-Oeste encontra-se abaixo de 20%,
sendo que estes representam 70% de toda a água armazenada no país. Isso
significa que não estamos falando apenas de uma água para geração de energia;
mas, também, para consumo humano e animal, irrigação de lavouras e abastecimento
de cidades, no tocante a uma diversidade imensa de atividades e serviços que
demandam desse recurso.
Portanto, quando caminhões e
aviões de combate seguem carregados de água para derramá-la sobre os incêndios nos
biomas nacionais, ela deixa de atender inúmeras outras demandas da população. Não
é difícil pensar, então, que possamos ter além de um racionamento de energia elétrica,
um outro racionamento referente à própria água. Enquanto os incêndios persistirem
dessa maneira intensa e desordenada, a água para combate permanece uma
prioridade para evitar desdobramentos ainda piores. Basta imaginar o fogo se
propagando sem controle rumo à uma cidade, por exemplo, como já aconteceu em
diversos países do mundo.
E considerando as análises anuais
referentes a ação do fogo sobre os biomas brasileiros, já se sabe
cientificamente que as causas desse aumento exponencial são antrópicas. Há um componente
de irresponsabilidade humana bastante importante nesse processo, o qual visa
quase que, exclusivamente, à destruição total da flora e fauna local. Afinal, a
incidência desses incêndios impede o processo de regeneração natural das espécies,
pois há um esgotamento enérgico intenso dos recursos biológicos.
Ao contrário do que muitos possam
pensar, essas queimadas recorrentes retiram a matéria orgânica do solo,
deixando-o exposto ao processo de erosão. Porque, após a queimada há mudanças significativas
nas propriedades bioquímicas do solo, as quais aumentam a densidade de sua
camada superficial e dificultam a infiltração de água e penetração das raízes,
afetando diretamente a microbiologia do terreno.
Em parte, isso explica porque a
crise hídrica se torna uma realidade gravíssima, quando as práxis nocivas ao
meio ambiente representam essa ruptura radical com a sustentabilidade. Quaisquer
recuperações nos ecossistemas naturais demandam tempo; um tempo que nem sempre
favorece a urgência das demandas humanas. De modo que essa incompatibilidade se
reflete em um prejuízo muito maior para os seres humanos. O que foi perdido
pelas chamas foi perdido; mas, o que restou, incluindo a nós, seres humanos,
permanece demandando de água, de solo para plantar, de vegetação para o equilíbrio
do clima, enfim... caso contrário, sucumbiremos também.
Por isso, mais atenção à bituca
de cigarro lançada inadvertidamente à beira da estrada. As latinhas de alumínio
deixadas no espaço do piquenique no parque. A “limpeza” dos terrenos baldios com fogo. Ou quaisquer outras
práticas que possam desencadear um incêndio de grandes proporções. Ele não
apenas consome o que vê pela frente, mas exaure outros recursos importantes
para o seu combate. De modo que essa conta está cada vez mais difícil de
fechar, porque não é só uma questão de dinheiro, não há nuvens, nem chuvas, nem
água à disposição. A verdade é que, talvez, não sejam os recursos hídricos os
nossos maiores oponentes nesse momento; mas, o fogo que começa dentro das
nossas próprias entranhas e ganha forma pelas nossas mãos sobre a geografia do
mundo.