sexta-feira, 10 de setembro de 2021

As chamas da escassez hídrica


As chamas da escassez hídrica

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

De modo geral, os brasileiros têm noção da gravidade da crise hídrica; sobretudo, pelos últimos aumentos da tarifa de energia elétrica.  Nas regiões Sudeste e Centro-Oeste do Brasil, onde estão localizados os principais reservatórios de água doce do país, essa pressão aumenta ainda mais. O curioso é que, apesar desse contexto caótico, a escalada de incêndios sobre os principais biomas nacionais segue seu curso em franca expansão, colocando em risco propriedades agrícolas, pequenas comunidades e, até mesmo, cidades inteiras pela ação devastadora das chamas.

Infelizmente, o fogo não apaga sozinho. Sobretudo, quando ele encontra na vegetação seca e na matéria orgânica decomposta no solo o combustível necessário para alimentar as labaredas. Trata-se de um trabalho incessante das equipes de bombeiros e brigadistas para conter e acabar com os focos incendiários presentes em grandes extensões de terra, cuja geografia do terreno é quase sempre irregular e de difícil trânsito por eles. Daí a necessidade de água. Muita água para auxiliar nesse processo.

Mas, a pergunta que não quer calar é, como se o regime de chuvas foi tão alterado? Segundo dados do Operador Nacional do Sistema Elétrico, o nível médio de água nos principais reservatórios das regiões Sudeste e Centro-Oeste encontra-se abaixo de 20%, sendo que estes representam 70% de toda a água armazenada no país. Isso significa que não estamos falando apenas de uma água para geração de energia; mas, também, para consumo humano e animal, irrigação de lavouras e abastecimento de cidades, no tocante a uma diversidade imensa de atividades e serviços que demandam desse recurso.

Portanto, quando caminhões e aviões de combate seguem carregados de água para derramá-la sobre os incêndios nos biomas nacionais, ela deixa de atender inúmeras outras demandas da população. Não é difícil pensar, então, que possamos ter além de um racionamento de energia elétrica, um outro racionamento referente à própria água. Enquanto os incêndios persistirem dessa maneira intensa e desordenada, a água para combate permanece uma prioridade para evitar desdobramentos ainda piores. Basta imaginar o fogo se propagando sem controle rumo à uma cidade, por exemplo, como já aconteceu em diversos países do mundo.

E considerando as análises anuais referentes a ação do fogo sobre os biomas brasileiros, já se sabe cientificamente que as causas desse aumento exponencial são antrópicas. Há um componente de irresponsabilidade humana bastante importante nesse processo, o qual visa quase que, exclusivamente, à destruição total da flora e fauna local. Afinal, a incidência desses incêndios impede o processo de regeneração natural das espécies, pois há um esgotamento enérgico intenso dos recursos biológicos.

Ao contrário do que muitos possam pensar, essas queimadas recorrentes retiram a matéria orgânica do solo, deixando-o exposto ao processo de erosão. Porque, após a queimada há mudanças significativas nas propriedades bioquímicas do solo, as quais aumentam a densidade de sua camada superficial e dificultam a infiltração de água e penetração das raízes, afetando diretamente a microbiologia do terreno.

Em parte, isso explica porque a crise hídrica se torna uma realidade gravíssima, quando as práxis nocivas ao meio ambiente representam essa ruptura radical com a sustentabilidade. Quaisquer recuperações nos ecossistemas naturais demandam tempo; um tempo que nem sempre favorece a urgência das demandas humanas. De modo que essa incompatibilidade se reflete em um prejuízo muito maior para os seres humanos. O que foi perdido pelas chamas foi perdido; mas, o que restou, incluindo a nós, seres humanos, permanece demandando de água, de solo para plantar, de vegetação para o equilíbrio do clima, enfim... caso contrário, sucumbiremos também.

Por isso, mais atenção à bituca de cigarro lançada inadvertidamente à beira da estrada. As latinhas de alumínio deixadas no espaço do piquenique no parque. A “limpeza” dos terrenos baldios com fogo. Ou quaisquer outras práticas que possam desencadear um incêndio de grandes proporções. Ele não apenas consome o que vê pela frente, mas exaure outros recursos importantes para o seu combate. De modo que essa conta está cada vez mais difícil de fechar, porque não é só uma questão de dinheiro, não há nuvens, nem chuvas, nem água à disposição. A verdade é que, talvez, não sejam os recursos hídricos os nossos maiores oponentes nesse momento; mas, o fogo que começa dentro das nossas próprias entranhas e ganha forma pelas nossas mãos sobre a geografia do mundo.