terça-feira, 31 de agosto de 2021

Da luz para as trevas...


Da luz para as trevas...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É perda de tempo querer confrontar os rodopios do relógio. Lá na segunda metade do século XVIII, quando a Revolução Industrial surgiu na Inglaterra, as conjunturas socioeconômicas e ambientais do mundo eram bem diferentes de hoje. As cidades começavam a se organizar para receber o contingente populacional de origem rural e transformá-lo em urbanoindustrial. Razão pela qual se iniciaram os graves e complexos problemas de compatibilização entre os recursos naturais e o crescimento de demandas sociais. E como tinha que ser, essa “bola de neve” cresceu sem que as devidas precauções fossem tomadas.

A matemática, nesse caso, explica tudo de maneira bastante simples. Sinônimo de desenvolvimento e progresso, a Revolução Industrial acenou com infinitas possibilidades de ter e ser para a população da época. Portanto, houve um verdadeiro boom populacional nos países europeus. Afinal de contas, eles passaram a demandar não somente mão-de-obra; mas, também, mercado consumidor de produtos que estavam sendo produzidos em larga escala, a partir daquele momento, e de serviços que surgiram para atender a nova dinâmica social.

Esse cenário, então, impactou tanto as condições de sustentabilidade ambiental em decorrência de um maior consumo de recursos naturais, tais como a água e o carvão mineral; bem como, as consequências de um uso e ocupação do solo sem o devido planejamento. De modo que o volume maior de habitantes nas cidades refletiu as inúmeras carências relativas ao tratamento de esgotos e efluentes, à diversidade de resíduos produzidos e a vulnerabilidade sanitária, com surtos e epidemias recorrentes, principalmente, em ambientes aglomerados como eram os cortiços habitados por operários e a população mais pobre.

O que em síntese significa que o aumento populacional é diretamente proporcional à exaustão dos recursos naturais. Sendo assim, antes de permitir os arrojos desenvolvimentistas que vieram nos séculos seguintes, originando versões cada vez mais aprimoradas da Revolução Industrial do século XVIII, a humanidade deveria ter sido mais previdente e responsável. Mas, ao contrário dessa consciência, o que se viu foram iniciativas fundamentadas em um consumo inconsequente, o qual pode ser traduzido por um crescimento populacional, cada vez mais expressivo, que surge para suprir os movimentos de expansão de demandas não essenciais, criadas para satisfazer aos interesses da indústria e do comércio.

É como se esse processo, de quase 300 anos, tivesse feito desaparecer da consciência humana a visão de um planeta caracterizado por diversos ecossistemas, e só existissem espaços urbanoindustriais ou agrícolas. Até que, de repente, em algum momento a matemática do equilíbrio faliu e as consequências desastrosas vieram à tona, dada a limitação geoambiental do planeta. Sim, a pequena esfera azul que vaga na imensidão silenciosa da Via Láctea não é capaz de se expandir ou reconstituir as perdas já consolidadas.

E isso não é uma constatação restrita ao relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), recentemente divulgado. Desde a segunda metade do século XX, as Ciências Naturais já apresentavam dados e faziam alertas importantes a respeito. De certa forma, o jogo acabou. O Meio Ambiente colocou a humanidade em xeque-mate. O que cabe agora são medidas de contenção para garantir um mínimo de sobrevivência digna para a raça humana e demais seres vivos. Sem exceção, todos os segmentos sociais estão à mercê da sua própria consciência e vestígio de responsabilidade e senso de sobrevivência.

A manchete do dia é “Governo cria nova bandeira, e taxa extra na conta de luz vai subir 50%” 1; mas, e daí?! Isso apenas encobre a dependência, que não parece ser temporária, na qual o país se encontra em relação as fontes energéticas de elevadíssimo custo, como é o caso das termoelétricas. Portanto, esses aumentos exponenciais recorrentes não são uma solução porque não mudam o panorama da realidade hídrica brasileira. Não fazem chover na medida necessária. Não abastecem os reservatórios subterrâneos e superficiais. Enfim... E, paralelamente, a essa conjuntura, o país tem hoje uma população de mais de 213 milhões de habitantes.

Sendo assim, tanto a escassez hídrica e de energia elétrica quanto os reajustes de tarifas aprovados representam um péssimo cenário para os interesses nacionais, porque em ambos os casos as repercussões negativas trarão impacto direto para a população e para todos os setores da economia, ou seja, primário – agricultura, pecuária, extrativismo vegetal, mineração, caça e pesca, secundário – indústria, e terciário – venda de produtos e prestação de serviços. Simplesmente, porque essa realidade está inscrita em um padrão de desenvolvimento cientifico e tecnológico que não projetou os riscos da própria necessidade de recursos naturais. O mundo real e o mundo virtual se encontram em uma tomada, em um carregador de bateria.

A recusa em combater o desmatamento, as queimadas clandestinas, o assoreamento dos rios, a poluição das fontes de água doce, ... só irá intensificar os prejuízos. O ecossistema é uma rede integrada composta por componentes bióticos e abióticos profundamente sensíveis a mudanças e alterações abruptas; por isso, qualquer deslize pode ser fatal, tanto biológica quanto economicamente.

Cada vez que a sociedade “dobra a aposta” na contramão dos fatos, a conta fica mais cara e o problema mais insolúvel. Sem contar que, dessa vez, ninguém nem ao menos cogitou a possibilidade de uma eventual garantia para impedir interrupções repentinas de fornecimento elétrico 2. Se os “apagões” se confirmarem, os ciclos de perdas e prejuízos tenderão a ser ainda maiores. Alimentos na geladeira e nos entrepostos comerciais. Medicamentos e vacinas nos freezers das unidades de saúde. Leite e derivados nas fazendas e laticínios. ...  

Infelizmente, a luz da Revolução Industrial pode acabar nos lançando de volta às trevas. Então, ao invés de acender uma vela, melhor pensar seriamente sobre tudo isso.  


segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O feijão, o fuzil e o discurso desconstruído pela realidade


O feijão, o fuzil e o discurso desconstruído pela realidade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Antes mesmo que a polêmica entre “o feijão e o fuzil”1 arrefecesse, eis que a cidade de Araçatuba, interior de São Paulo, experimentou uma noite de terror promovida por uma quadrilha pronta a atacar agências bancárias. Aliás, uma infeliz coincidência, o fato de que justamente as agências do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal foram os alvos escolhidos dessa investida criminosa.

Afinal de contas, essas duas entidades bancárias decidiram recentemente deixar a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), em razão de um manifesto da representante do setor bancário em conjunto com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), em defesa da Democracia e pedindo pela harmonia dos três Poderes 2.  

Mas, de volta à relação entre “o feijão e o fuzil” e o ocorrido na cidade paulista, a ideia de uma “liberdade armada” 3 ficou satisfatoriamente superada. Pegos de surpresa, como é o costume dos criminosos desse porte, não houve ninguém que se sentisse livre para ostentar o próprio poder de fogo contra os bandidos. Cada um no seu canto tentou da melhor forma restringir-se a uma insignificância silenciosa. Mesmo assim, vidas humanas foram perdidas.

E ainda bem que foi dessa forma. Imagina se algum metido a “valentão” decidisse enfrentar a situação, sem medir as consequências, o que de pior não poderia ter acontecido? Há um abismo imenso entre a teoria e a prática em casos assim. No calor das emoções, sob o medo e a pressão dos acontecimentos, a técnica e a lógica nem sempre funcionam adequadamente, o que amplia de maneira significativa o limiar de risco e os resultados letais desastrosos.

Afinal, mesmo que em estágio quase “vestigial”, o instinto de sobrevivência humano, ainda, resiste atuando sobre nós. Essa história de “matar ou morrer” é frase de efeito para o cinema; mas, na vida real, o que acontece no campo subjetivo e objetivo dos acontecimentos de violência é bem diferente. Ninguém passa incólume por uma experiência dessas. São eternas essas frações de segundo entre o antes e o depois de um episódio com arma de fogo.

Não é à toa, portanto, a quantidade de soldados remanescentes de conflitos armados que desenvolvem problemas psiquiátricos e precisam ser afastados dos seus campos de atuação profissional; mas, também, da convivência social. O que dizer, então, do cidadão comum? Sem preparo e/ou vivência quanto a esse tipo de situação; apenas detentor de um artefato bélico sob o pretexto de uma tal “liberdade armada”, a qual faz a alegria e o enriquecimento da indústria armamentista.

Assim, a segunda-feira amanheceu sob uma incômoda atmosfera de perplexidade em Araçatuba. Silêncio e apreensão tomaram conta da geografia local, enquanto se apuravam outros perigos eventuais deixados pelos criminosos. A violência interrompeu a dinâmica do cotidiano sem pedir licença, sem sequer se preocupar em saber quantos cidadãos dispunham de armas para se defender. Foi como se os marginais tivessem “metido o pé na porta” e entrado na cidade à revelia de qualquer objeção.

Isso, caro (a) leitor (a), é só um “frame” da realidade contemporânea. Enquanto a sociedade tenciona o cabo de guerra entre a liberdade e a segurança, a vida fica por um triz. Porque esse tipo de movimento não busca o equilíbrio, é tudo ou nada. Não é um lado e outro; mas, um lado ou o outro da corda. O que torna a sociedade profundamente vulnerável e exposta aos mais diferentes contextos de violência, ou seja, física, psicológica, moral e/ou patrimonial que vão gradativamente constituindo um universo de perdas sociais.

Como dizia Jean-Paul Sartre, “A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota”. Não importa em que mãos estejam as armas, se elas estão empunhadas na direção de um ou de outro, a sociedade fracassou, perdeu sua capacidade de conduzir as pessoas ao diálogo, ao equilíbrio, ao consenso, ao desenvolvimento e ao progresso. Por isso, nas guerras não há vitoriosos, há derrotados. Gente, em ambos os lados, que precisa reconstruir, refazer, ressignificar uma vida inteira reduzida a escombros, por conta da insensatez beligerante.

Tupac Shakur, rapper norte-americano, já dizia “Eles conseguem dinheiro para a guerra, mas não conseguem acabar com a pobreza” (Keep Ya Head Up)4. Por isso, eu acredito que ninguém no mundo deveria se atrever em conflitos de quaisquer naturezas. Especialmente, países que padecem mazelas sociais crônicas, que não tem vez e/ou voz no cenário globalizado do planeta. Porque eles não têm nenhum tipo de lastro social que seja suficiente para depositar tamanha confiança em um renascer das próprias cinzas e, nesse sentido, podem acabar com armas nas mãos, padecendo à míngua pela indiferença dos demais.  

domingo, 29 de agosto de 2021

Um sopro de esperança cívica


Um sopro de esperança cívica

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Diante das atuais conjunturas pensei que não iria mais ter nenhuma razão para me sentir feliz por ser brasileira. Havia me esquecido de algo muito emblemático na história desse país. Trata-se da Profecia de Dom Bosco sobre a construção de uma cidade, a qual viria a ser Brasília. Segundo o sonho do padre italiano, em 1883, “Entre os paralelos 15° e 20° surgirá uma cidade que manará leite e mel para toda a Terra” 1. Então, quando vi mais de 6 mil indígenas acampados próximos da Praça dos Três Poderes recebi um sopro de esperança cívica.

“Leite e mel para toda a Terra” é o que os donos desse território estão oferecendo não apenas para os demais brasileiros; mas, para toda a humanidade, através da sua obstinação cidadã caracterizada pela luta pacífica quanto ao seu direito de propriedade territorial. Depois de tanto serem invisibilizados, subjetiva e objetivamente, por grande parte da sociedade brasileira, diversas tribos decidiram, então, se fazer visíveis e presentes enquanto aguardam o julgamento do Marco temporal sobre Terras Indígenas2, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).

Sem dúvida alguma, essa é uma iniciativa histórica; pois, jamais se reuniram tantos indígenas em torno de uma única causa. Mas a razão é simples, eles estão lutando pela sua própria vida; afinal, a sua existência é uma extensão das áreas naturais preservadas. A dinâmica sociocultural do indígena brasileiro é historicamente constituída a partir de uma economia de subsistência respaldada pela própria natureza. O litígio que se estabeleceu, há alguns anos, se baseia numa interpretação equivocada que visa limitar o território deles, com propósito de exploração agrícola, pecuária e mineral.

Aliás, o que se tem visto em termos de degradação avassaladora sobre vários biomas nacionais pode, de algum modo, configurar um movimento de pressão que contraria aos interesses indígenas. Antes mesmo de qualquer decisão do STF, eles já estão sob forte ameaça de destruição do seu espaço geográfico natural e, por consequência imediata, da sua própria sobrevivência.

Sim, porque rios estão sendo frequentemente contaminados por mercúrio oriundo de garimpos clandestinos. Vastas extensões de floresta estão sendo queimadas e/ou derrubadas para a venda de madeira ilegal, conforme já alertou a própria Embaixada dos Estados Unidos aos órgãos ambientais do governo brasileiro. A subnutrição e a vulnerabilidade à diversas doenças têm afetado as tribos indígenas, em razão de uma recorrente desassistência por parte dos gestores responsáveis 3. Enfim, todos os movimentos exploratórios presentes nessas áreas têm como objetivo funcionar como mecanismos de constrangimento, humilhação, manipulação, ameaça e chantagem para acelerar o deslocamento territorial desses povos.

Mas, a pergunta que ninguém sabe responder é, para onde eles irão? O que estão querendo fazer com a população indígena, no Brasil, não é muito diferente do que fizeram com os negros na época da Abolição da Escravatura, quando foram libertos das senzalas e ficaram à mercê da própria sorte, sem dinheiro, sem trabalho, sem profissão, em uma sociedade fundamentada no racismo.

A identidade indígena não é constituída para sobreviver em uma sociedade urbano-industrializada. O que representaria mais um profundo golpe de aculturação na sua história e um indicativo muito consistente de falência de adaptação. Inclusive, vale ressaltar que em áreas já usurpadas por garimpeiros e madeireiros ilegais há inúmeros relatos de alcoolismo, consumo de drogas e prostituição (inclusive infantil) entre os indígenas. Sem contar que, ainda, resistem e persistem pequenos grupos de índios que vivem totalmente isolados da civilização branca brasileira e que, portanto, poderiam morrer se perdessem o seu espaço natural.   

Mas, apesar de todos esses pesares, lá estão eles, no planalto central, civilizadamente defendendo sua dignidade, sua identidade, sua cultura, seu lar. Abertos ao diálogo. Sem polarizações. Sem banalizações. Sem vulgaridades. Sem cobiçar nada mais do que o seu próprio direito de existir e de viver. Oferecendo “Leite e mel para toda a Terra”, em cada gota de cidadania que lhes escapa pelos poros e fazendo, temporariamente, de Brasília uma grande tribo.

O que diria Mário Juruna 4 sobre tudo isso, hein? Talvez nada ou apenas repetisse, mais uma vez, que “antes de tudo, o índio precisa de terras. Índio é dono da terra. Então, o branco deve respeitar a terra do índio” (Mário Juruna, 1943-2002). Porque surpresa com algo tão genuíno é mesmo coisa de branco. Somos nós que nos surpreendemos com esse engajamento todo, na medida em que não dispomos da mesma habilidade, ou da mesma competência. Somos “civilizados” demais para certas sutilezas, que fazem tão bem para a vida em coletividade.

Uma pena, quando o mundo já está em polvorosa por mudanças. Quando a sustentabilidade socioambiental é palavra de ordem em cada pedacinho do globo terrestre. Mas, quem sabe, flertando bem de perto com o caos, as palavras simples do indigenista Cláudio Villas-Bôas cumpram o seu verdadeiro sentido de ação reflexiva; afinal, “se achamos que nosso objetivo aqui, na nossa rápida passagem pela Terra, é acumular riquezas, então não temos nada a aprender com os índios. Mas se acreditamos que o ideal é o equilíbrio do homem dentro de sua família e dentro de sua comunidade, então os índios têm lições extraordinárias para nos dar”. Pois é, as tais lições com sabor de “Leite e mel para toda a Terra”. 

sábado, 28 de agosto de 2021

Só mais uma crônica do cotidiano brasileiro...


Só mais uma crônica do cotidiano brasileiro...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sei que em muitos momentos na jornada da vida é possível exercer com propriedade as próprias escolhas; mas, como é de praxe na existência humana, vez por outra, tropeçamos nas exceções. A atual conjuntura do país exemplifica muito bem o que estou dizendo. Qualquer um pode virar o rosto, ou fechar os olhos, ou assobiar para o nada, ou inventar histórias; mas, a verdade é uma só e não muda de camisa para nos confrontar com sua ousadia.

Aqui e ali, todos já se deram conta de que anda faltando salário para cumprir o mês. O mínimo remuneratório que vigora no país, desde janeiro desse ano, corresponde a R$1.100,00. Mas, observando com atenção o que determina a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7º, inciso IV, cabe ao “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do cidadão e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”; de modo que não é difícil perceber a insuficiência dele, diante do cenário crescente de reajustes em diversos setores da economia.

Tanto que, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), através da sua Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos realizada mensalmente, apontou que o valor ideal do salário mínimo, em julho, deveria ser R$5.518,79, tendo em vista que “o custo médio da cesta básica de alimentos aumentou em 15 cidades [...]. A cesta mais cara foi a de Porto Alegre (R$656,92), seguida pela de Florianópolis (R$654,43) e pela de São Paulo (R$640,51). Entre as cidades do Norte e Nordeste, as que apresentaram menor custo foram Salvador (R482,58) e Recife (R$487,60)” 1.

Isso significa que, analisando somente o impacto do valor da cesta básica sobre o salário mínimo bruto, a mais cara conseguiu consumir em torno de 59,72% do mesmo; enquanto, a mais barata conseguiu consumir 44,33%. Então, uma pessoa que ganha um salário mínimo não consegue suprir o restante das suas necessidades - moradia, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Tampouco, aqueles que estão lançados as estatísticas do desemprego e da pobreza.

Sim, porque o  “Desemprego ficou em 14,6% e atingiu 14,8 milhões no trimestre encerrado em maio” 2, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e “o ‘índice de miséria’ atingiu 23,47 pontos em maio, dado mais recente, no maior valor desde o início da série histórica, em março de 2012. O recorde negativo foi puxado por aceleração da inflação, aumento do desemprego e do custo de vida e queda da renda”3 .

Assim, não faz diferença se os 6% da população que compõem a elite brasileira queiram reconhecer ou não que o país está se deteriorando pela má administração, porque os 94% restantes, classe média tradicional e classe baixa, já o fazem. Como diz uma velha canção, só eles sabem o quanto “[...] é duro tanto ter que caminhar / E dar muito mais do que receber / E ter que demonstrar sua coragem / À margem do que possa parecer / E ver que toda essa engrenagem / Já sente a ferrugem lhe comer [...] 4.

Nesse caso, o caos não é uma perspectiva, ele já é uma realidade. Porque as informações acima dão conta de um processo em curso, que tem como um dos principais responsáveis a questão hídrica, que está intimamente relacionada a um modelo de gestão ambiental insustentável. O que significa que se não for prontamente reformulado para atender as demandas emergenciais, a tendência natural é de perda total do controle dos valores de produção e consumo. Os setores produtivos, todos eles, dependem direta e/ou indiretamente de água e de energia. A vida humana contemporânea depende essencialmente disso. Daí a velha prática medieval de cobrar mais impostos, mais tarifas, nesse caso, é inócua.

É simples de compreender. Primeiro porque o dinheiro não vai se converter em nuvens de chuva para reabastecer os reservatórios subterrâneos e, por consequência, os externos e os cursos d’água. Esse processo demandaria uma regularidade ambiental que a realidade contemporânea está longe de dispor.

Segundo, porque um país que não consegue atender aos parâmetros básicos de suficiência hídrica está potencialmente fadado a perder espaço nas relações internacionais, sobretudo, no campo do comércio exterior, porque não tem garantias de que vai conseguir cumprir as negociações.

Indústria precisa de água. Agronegócio precisa de água. Mineração precisa de água. Enfim...  Trata-se exatamente do que demonstrou o Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos – 2021, em março desse ano.

De acordo com esse recente documento, organizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Organização das Nações Unidas para a Agricultura (FAO) e Rede Brasil do Pacto Global da ONU, “O consumo de água doce aumentou 6 vezes no último século e continua a avançar a uma taxa de 1% ao ano, fruto do crescimento populacional, do desenvolvimento econômico e das alterações nos padrões de consumo. A qualidade do bem diminuiu exponencialmente e o estresse hídrico, mensurado essencialmente pela disponibilidade em função do suprimento, já afeta mais de 2 bilhões de pessoas. Muitas regiões enfrentam a chamada escassez econômica da água: ela está fisicamente disponível, mas não há infraestrutura necessária para o acesso. E isso em um horizonte cuja previsão de crescimento no consumo é de quase 25% até 2030” 5.

Essa realidade, portanto, está fiando um emaranhado socioeconômico de extrema complexidade, que precisa ser interrompido e, se possível, desconstruído. Porque ele está se resumindo na seguinte questão, “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isso contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir nossos interesses” (José Saramago). Então, se permita parar e refletir, antes que seja tarde demais para sua própria sobrevivência.    

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

Contra o quê? Contra quem?


Contra o quê? Contra quem?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Às vezes, tenho a nítida impressão de que a humanidade manifesta uma visão romantizada da guerra, como se tudo transcorresse a partir de um ideário de força e poder, com todos os seus heróis e vilões, ocupando espaços determinados nas linhas de enfrentamento.

Mas, a verdade é que não é bem assim. Se o mundo evoluiu, é obvio que as guerras também. Nesse sentido, os instrumentos bélicos se aprimoraram a tal ponto que deram origem a uma poderosa indústria armamentista, que depende dos movimentos geopolíticos conflituosos para faturar cifras inimagináveis; mas, também, vê com bons olhos os conflitos de menor proporção.

É, caro (a) leitor (a), há quem fomente os distúrbios e as animosidades para favorecer a produção e o comércio de armas. E para esse fim, a narrativa proposta por essa “indústria da destruição” é a de que não se precisa despender horas e horas de diálogo, a fim de se chegar a um denominador comum para as divergências; basta se valer da exibição e utilização dos arsenais bélicos, que estão cada vez mais requintados e letais.

O que em síntese, significa que a vida perdeu totalmente a sua importância, passando a ficar gravemente exposta, sempre a um triz da fatalidade. De modo que as sociedades estão cada vez mais presas ao agora, porque o amanhã é um refém involuntário da violência.

Não se engane, as guerras estão em todo lugar. Países. Polícias. Milícias. Afetos e desafetos. Próximos e distantes. Em qualquer esquina. A qualquer hora do dia ou da noite. Alianças que se desfazem e refazem ao sabor dos interesses da ocasião. Afinal, essa indústria não pode parar. E assim, ela realmente não precisa aguardar a deflagração de uma desavença de grandes proporções para manter a sua contabilidade em dia.

Nesse contexto, a retórica armamentista se aprimora de maneira muito consistente, porque atinge os pontos nevrálgicos da sociedade e acena como uma solução rápida e eficaz. A começar pelo fato de que ela transforma vulneráveis em valentões. Dá visibilidade a quem, certamente, poderia passar despercebido.

A arma na mão agiganta uma superioridade que nem sempre existe, mas que surge pelo tênue limite entre a vida e a morte. Sua propriedade significa status, na medida de um poder aquisitivo suficiente para ter e manter esse tipo de artefato. O que explica a falência flagrante dos discursos e intenções em nome da pacificação social.

Não, não é sem razão, portanto, a resistência que tem havido no combate e mitigação dos discursos de ódio social, os quais quase sempre resultam na exacerbação da violência armada. Aqui e ali as ocorrências, registradas ou não, dão conta de episódios de misoginia, sexismo, aporofobia, homofobia, xenofobia, racismo ou etarismo1. Sem contar os casos relacionados às diferenças ideológicas, de caráter político e religioso, ou aqueles resultantes de outros delitos, como tráfico de drogas, por exemplo.

Afinal de contas, a violência armada possibilita uma recorrência que não tarda a favorecer uma naturalização desses acontecimentos. As vidas perdidas jazem tão perfeitamente nas planilhas estatísticas dos obituários que, a sociedade passa por esses números sem percebê-los ou questioná-los. Esquecendo-se de que, diante da banalização da violência armada, quando qualquer motivo é motivo para a beligerância, ninguém está a salvo de ser uma vítima em potencial.

Tanto que o historiador britânico, Eric Hobsbawm, escreveu “Uma previsão: a guerra no século 21 provavelmente não será tão assassina como era no século 20. Mas a violência armada, criando sofrimento e perdas desproporcionais, continuará onipresente e endêmica – ocasionalmente epidêmica – em grande parte do mundo. A perspectiva de um século de paz é remota”.

Por isso, quando vejo a imprensa mundial se desesperando com a situação da retomada do Afeganistão pelo Talibã, penso que cabe uma reflexão profunda a respeito. A verdade é que a grande questão que impera ali, começa bem antes do Talibã e do seu radicalismo extremista.

É preciso entender que as guerras e os conflitos armados não cabem em recortes de tempo, há uma linha histórica condutora até se alcançar o apogeu da beligerância. O que explica as idas e vindas de personagens distintos; ora aliados, ora adversários, e raras às vezes, meros espectadores.

Sendo assim, aqui, ali ou acolá, não dá para desperdiçar atenção as fotografias, aos “frames”, é preciso ver o filme inteiro para entender o que se sucede naquele ponto. Daí é preciso paciência e disposição, pois cada novo acontecimento vai exigir sempre uma recapitulação da história.

Mas, no fim de cada ato desse processo de releitura, não há como fugir do fato de que a síntese que se apresenta tende a manifestar sempre a seguinte compreensão, ou seja, “Através da violência você pode matar um assassino, mas não pode matar o assassinato. Através da violência você pode matar um mentiroso, mas não pode estabelecer a verdade. Através da violência você pode matar uma pessoa odienta, mas não pode matar o ódio. A escuridão não pode extinguir a escuridão. Só a luz pode” (Martin Luther King Jr.).

Diante de todas essas considerações, então, só posso concordar com as palavras do físico e astrônomo, Marcelo Gleiser, quando ele diz que “Há algo de muito patológico numa espécie que se diz inteligente, mas só é capaz de garantir sua sobrevivência pelo acúmulo de armas”.

Porque, no fim das contas, “O que, na verdade, oprime o espírito, o que provoca inquietudes e desassossegos, é a pobreza mental. Poderemos ser ricos economicamente, mas se não somos capazes de oferecer, a nós mesmos, as enormes vantagens que a riqueza do conhecimento pode proporcionar, haverá muita miséria dentro de nossos palácios ou de nossas vestes” (Gonzalez Pecotche – educador e pedagogista).



1 Misoginia – ódio ou aversão às mulheres.

Sexismo - discriminação e ou preconceito baseada no gênero ou sexo de uma pessoa.

Aporofobia – repúdio, aversão ou desprezo pelos pobres ou desfavorecidos; hostilidade para com pessoas em situação de pobreza ou miséria.

Homofobia – é o preconceito contra pessoas LGBTQIA+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, trans, queers, pansexuais, agêneros, pessoas não binárias e intersexo).

Xenofobia – é a desconfiança, temor ou antipatia por pessoas estrangeiras.

Racismo – discriminação e ou preconceito (direto ou indiretamente) contra indivíduos ou grupos por causa da sua etnia ou cor.

Etarismo – preconceito contra os idosos. 

quinta-feira, 26 de agosto de 2021

A sociedade contemporânea... A estiagem contemporânea...


A sociedade contemporânea... A estiagem contemporânea...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Depois de relutar sobre a gravidade da situação elétrica no país, por conta da severa estiagem que resultou em um baixíssimo volume hídrico, o Comitê de Monitoramento do setor Elétrico (CMSE) presidido pelo Ministério das Minas e Energia já admite “relevante piora” das condições. Por isso, o “país terá de usar os estoques hídricos armazenados nas usinas e flexibilizar regra de operação do rio São Francisco para tentar evitar apagão e racionamento de energia neste ano” 1..

Poderia dizer até, “antes tarde do que nunca”; mas, nesse caso é perda de tempo. Todas essas medidas são paliativas e insuficientes para dar conta de uma situação que caminha rumo ao extremo, há algumas décadas; mas, teve nesses últimos 3 anos o apogeu da sua catástrofe.

Estou me referindo aqui, ao avassalador processo de queima e desmatamento dos principais biomas nacionais que produz um efeito direto na formação de nuvens e, por consequência, de chuva a ser distribuída em todo o território.

Segundo relatório 2 do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), publicado em 2014, “cada árvore amazônica de grande porte pode evaporar mais de mil litros de água por dia. A estimativa é que a floresta amazônica transpire 20 bilhões de toneladas de água por dia (20 trilhões de litros). A grande umidade evaporada pelas árvores gera “rios voadores”3 na atmosfera, que carregam vapor e geram correntes aéreas (ventos) que irrigam regiões distantes. O fluxo de água é conduzido por territórios a leste dos Andes e para áreas continente adentro, no sentido oeste e sudeste. A Amazônia também seria responsável por evitar eventos climáticos extremos em regiões de florestas e arredores. Isso porque a copa das árvores provoca um efeito de ‘frenagem’ dos ventos que vem do oceano, o que equilibra a distribuição e o efeito dissipador da energia dos ventos. Assim, sua cobertura vegetal seria uma proteção contra furacões e tornados” 4.

Diante dessas considerações, se o Brasil mantiver o ritmo de destruição dos biomas, a pluviometria nacional estará comprometida, o que significa que poços, açudes, reservatórios e cursos d’água, incluindo nascentes, córregos, rios e lagos, irão secar e não haverá possibilidade de satisfazer as demandas de energia elétrica de mais de 200 milhões de habitantes.

Mas, não é só isso. A escassez hídrica compromete o abastecimento para fins de higiene, consumo e produção agropecuária; de modo que, ela reflete diretamente nos custos de bens e serviços, impulsionando a inflação e interferindo no Produto Interno Bruto (PIB) do país.

E não se trata de especulação ou alarmismo. O próprio INPE, em seu monitoramento de 1º de janeiro a 23 de agosto deste ano, constatou “mais foco de incêndio do que o total registrado nos oito primeiros meses completos de 2020. Cerrado, Caatinga, Pantanal, Amazônia e a Mata Atlântica contabilizaram mais focos de incêndio nos primeiros 23 dias de agosto do que os outros índices mensais do ano” 5.

A questão, nessa queda de braços entre ser humano e Meio Ambiente, demonstra com clareza que, inicialmente, quem perde é a Natureza; mas, depois, as consequências para a população são ainda piores e podem sim, matar. Haja vista as oscilações extremas de amplitude térmica, acima (hipertermia) ou abaixo (hipotermia) do padrão normal de temperatura, para o qual o ser humano está adaptado.

É uma pena que uma parcela significativa da população esteja desconsiderando, mais uma vez, os fatos cotidianos e as comprovações científicas, para permanecerem servindo como agentes voluntários da destruição do próprio país. Porque o ônus dessa irresponsabilidade vai muito além do que se possa imaginar.

Não se resume aos impactos negativos causados aos diversos setores da economia. Eles vulnerabilizam, aquilo que deveria ser o bem mais preciso para um ser humano, a saúde. O que se explica pela ocorrência, por exemplo, de insegurança alimentar e nutricional, pela disseminação de doenças virais, bacterianas e fúngicas através dos particulados provenientes das queimadas, pela exposição ao stress climático advindo da formação de ilhas de calor, enfim...

O que traz perplexidade diante de tudo isso, é o fato de que o fogo e o desmatamento que se tem notícia são de origem antrópica. Há pessoas imbuídas em promover esse movimento de extermínio socioambiental, porque acreditam fixamente que esse processo resultará em lucro e enriquecimento rápido; semelhante ao que fizeram os colonizadores no século XVI.

Mas, não. Estamos no século XXI, e os resultados do passado já foram provados e contestados, a tal ponto, que a sociedade contemporânea está as voltas em tentar salvar o que ainda for possível, em nome de sua própria sobrevivência, mesmo que efêmera.  

O interessante é que os indígenas sempre souberam disso. Daí o seu provérbio, “só quando a última árvore for derrubada, o último peixe for morto e o último rio for poluído é que o homem perceberá que não pode comer dinheiro”. Eles podem, então, ser considerados os grandes precursores do que chamamos hoje, Desenvolvimento Sustentável.

Porque sempre compreenderam que sua sobrevivência e existência, em curto, médio e longo prazo, dependia do estabelecimento de uma relação harmônica e de parceria com a Natureza. Enquanto, o restante da humanidade, submetido aos rigores civilizatórios estabelecidos pelos parâmetros urbano-industriais, tornou-se incapaz de tal sutileza.

Como escreveu Aldous Huxley, “A felicidade universal mantém as engrenagens em funcionamento regular; a verdade e a beleza são incapazes de fazê-lo” (Admirável Mundo Novo). Isso, talvez, consiga nos fazer entender porque as pessoas não sentem quaisquer receios em viver em um mundo árido, sem vida, sem água.

A maquinização lhes apropriou de tal de forma, que sua razão trabalha à revelia da sensibilidade ou quaisquer outros sentimentos e necessidades humano biológicas. Tudo em si trabalha sob o jugo do poder capital.  Por isso, as perdas são parte da linha de produção, que se contenta com a dinâmica das “peças substituíveis”, independentemente do amanhã.  

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O “mea culpa” nosso de cada dia ...


O “mea culpa” nosso de cada dia ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O recorte temporal promovido pela Pandemia trouxe muita desestabilização para a humanidade; mas, ao mesmo tempo, ao revirar o cotidiano de cabeça para baixo teve seus aspectos positivos. Um deles foi o fato de o terreno da vida ter sido revolvido profundamente, ao ponto de trazer à tona uma série de questões a serem descontruídas, ou resignificadas, ou reelaboradas. Enfim, de algum modo, o ser humano colocou luz sobre suas trevas mais bizarras e condenáveis.

E por uma baita ironia do destino, no Brasil, esse mesmo tempo tem convivido com a tentativa da extrema-direita conservadora de se firmar no poder e no controle social, com suas pautas amareladas e ultrapassadas pelo incansável correr dos ponteiros do relógio. Então, aqui e ali ouvem-se discursos absurdos e temerários; mas, que, apesar dos pesares, podem ser muito úteis para uma auto avaliação sobre o que representa a tal “identidade brasileira”.  

Afinal, há algumas semanas, o Ministro da Educação, um dos expoentes dessa extrema-direita conservadora, presente na atual gestão federal, tem manifesto algumas opiniões equivocadas sobre alunos com deficiência e causado um terrível desconforto, especialmente, em alguns segmentos da sociedade.

Depois de afirmar que “Algumas crianças com deficiência são de ‘impossível’ convivência”, agora, ele “afirmou que não quer o ‘inclusivismo' dessas crianças nas escolas” 1. De repente, essa parece ser a grande oportunidade de fazermos o “mea culpa” nosso de cada dia.

Lamento, mas se um ministro não se constrange ou se penitencia por suas falas públicas é porque reconhece, de algum modo, um tipo de “ licença social” para fazê-lo. É como se suas palavras fossem referendadas pelo apoio da sociedade, seja em parte ou em sua totalidade.

Uma consciência construída pela verbalização de alguns; mas, sobretudo, pelo silêncio e indiferença de uma expressiva maioria. Não é à toa que os preconceitos, no Brasil, são estruturais, ou seja, estão formalizados a partir de um conjunto de práticas históricas, institucionais, culturais e interpessoais dentro da sociedade.

Experimente perguntar para qualquer pessoa se ela sabe qual o percentual de deficientes no país? Se ela já ouviu falar, por exemplo, sobre o INES (Instituto Nacional de Surdos), o Instituto Benjamin Constant (IBC), a Fundação Dorina Nowill para cegos, a Associação Brasileira de Autismo (ABRA), a Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos (Onedef), ou o Movimento Down? Se já participou ou soube de eventos relacionados ao Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (03/12)? Se conhece alguma legislação relacionada à deficiência?

Provavelmente, a resposta será o silêncio ou o espanto, o que é lamentável para um país que tem aproximadamente 25% (1/4) da população com algum tipo de deficiência, segundo dados do último Censo Demográfico, em 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Isso significa que esse percentual se encontra distribuído em torno de um pouco mais de 13 milhões de pessoas com deficiência motora, 10 milhões de surdos, 2,5 milhões com deficiência mental e 35 milhões de cegos. Mas, parece que ninguém os vê ou reconhece a sua existência.

Por isso, é tão importante trazer a luz das pessoas algumas informações referentes a base legal que respalda os direitos dos cidadãos com deficiência. No Brasil, eles estão previstos na Constituição Federal de 1988 (arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, e 205 a 214), na Lei n. º 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)) no capítulo V (Educação especial), na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), assinada em Nova Iorque, em 30/03/2007, a qual foi aprovada via Decreto-Legislativo, pelo Senado Federal, em 10/07/2008, na Lei n.º 13146 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência), de 06/07/2015, e na Lei n.º 8.213/91, o artigo 93 que regulamenta as cotas para contratação de pessoas com algum tipo de deficiência.  

Afinal de contas, infelizmente, a percepção e a compreensão sobre o fato de que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, conforme expresso na Constituição Federal de 1988 e em todos os demais instrumentos legais citados, ainda dista de uma realidade inclusiva plena.

Há quase uma década, o Relatório Mundial sobre a Deficiência, já revelava que “muitas pessoas com deficiência não têm acesso igualitário à assistência médica, educação, e oportunidades de emprego, não recebem os serviços correspondentes à deficiência de que precisam, e sofrem exclusão das atividades da vida cotidiana. Após a entrada em vigor da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas (CDPD), a deficiência é cada vez mais considerada uma questão de direitos humanos. A deficiência é uma importante questão de desenvolvimento com cada vez mais evidências de que pessoas com deficiência experimentam piores resultados socioeconômicos e pobreza do que as pessoas não deficientes” 2.

No entanto, apesar dessas iniciativas, o caminho a ser percorrido contra os preconceitos parece sem fim. Ontem mesmo foram abertos os Jogos Paralímpicos - Tóquio 2020 e a cobertura da imprensa é visivelmente menor do que foi previsto para os Jogos Olímpicos - Tóquio 2020. Mas, não há indignação, nem desconforto, nem quaisquer tipos de manifestação. Simplesmente, porque há um silêncio indiferente pairando sobre o cotidiano. E ele tem um nome, desrespeito.

Esse é apenas um, dentre tantos outros, sinais velados desse preconceito estrutural que insiste permanecer entre nós. Que diferença há entres atletas paralímpicos e olímpicos se ambos tiveram que investir seu tempo, seus esforços, seus sacrifícios, em nome da participação olímpica? No Rio, em 2016, por exemplo, os atletas paralímpicos brasileiros conseguiram o 8º lugar no quadro de medalhas, com 14 de ouro, 29 de prata e 29 de bronze; mas, quem se lembra? Quem valoriza?

Esta não é uma questão restrita à governo, imprensa e/ou patrocinadores. Esta é uma questão de consciência coletiva cidadã. Cada brasileiro deveria se sentir representado e enaltecido, por qualquer compatriota que se destaca, que se sobressai, diariamente, nos diferentes campos da vida. Porque cada indivíduo é um pedaço dessa identidade nacional chamada Brasil. É um cidadão que “[...] sabe a dor e a delícia de ser o que é [...]” 3. Que, no fundo, tem mais oportunidades para não conseguir êxito na vida do que o contrário.

Por isso, a verdade é que o nosso silêncio cidadão grita alto a dimensão da nossa omissão social, à qual é revestida por fino preconceito. O Ministro é apenas um entre mais de 215 milhões de brasileiros que, de uma forma ou de outra, se abstêm de cultivar o altruísmo reconhecedor da grandeza, da importância, do outro.

Mas, quando apontamos desaprovações, aqui e ali, numa tentativa inócua de nos esquivar do próprio apontamento, em relação às nossas insignificâncias, nossos atos abomináveis e terríveis, não produzimos efeito prático algum. Tudo fica como está.

Como disse José Saramago à Bia Abramo da Folha de São Paulo, em 1995, “Acho que a grande revolução, e o livro (Ensaio sobre a Cegueira) fala disso, seria a revolução da bondade. Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons, os problemas do mundo estavam resolvidos. Claro que isso nem é uma utopia, é um disparate. Mas a consciência de que isso não acontecerá, não nos deve impedir, cada um consigo mesmo, de fazer tudo o que pode para reger-se por princípios éticos. Pelo menos a sua passagem por este mundo não terá sido inútil e, mesmo que não seja extremamente útil, não terá sido perniciosa. Quando nós olhamos para o estado em que o mundo se encontra, damo-nos conta de que há milhares e milhares de seres humanos que fizeram de sua vida uma sistemática ação perniciosa contra o resto da humanidade. Nem é preciso dar-lhes nomes. Mas tenho convicção que, pelo menos, deve-se seguir essa regra muito simples, que é egoísta, mas esse é um egoísmo bom, que é o de não fazer aos outros aquilo que não queremos que nos façam. Minha velha avó já o dizia e os avós de meus avós já o disseram” 4.

E diante dessas palavras tão sábias, sinceramente, eu acredito que o século XXI, ainda, espera mais de nós. Talvez, por isso, as conjunturas estejam nos confrontando, sem qualquer cerimônia, e exigindo um pouco mais de autorreflexão, de criticidade e de ação. Afinal, por excessivo narcisismo viemos nos permitindo negar a existência humana a partir de preconceitos, os quais lançamos inadvertidamente sobre os outros, mas somos incapazes de carregar sobre os nossos próprios ombros. E a existência, caro (a) leitor (a), precisa e deve ser bem mais do que isso. 



2 São Paulo. Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Relatório Mundial sobre Deficiência. Organização Mundial da Saúde e Banco Mundial.  São Paulo: SEDPcD, 2012. 334p.

3 Dom de iludir – Caetano Veloso (https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44719/)

4 ABRAMO, B. Saramago anuncia a cegueira da razão. 18 out. 1995. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/10/18/ilustrada/1.html. Acesso em: 06 nov. 2016. 

terça-feira, 24 de agosto de 2021

Há método. Nada é ao acaso.


Há método. Nada é ao acaso.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Até onde sei, diálogo é uma interação comunicativa que depende da disposição e do interesse de duas partes. E nesses quase 3 anos de governo, o Presidente da República não demonstra muita simpatia às movimentações dialógicas na política.

Por isso, não entendo o esforço que tem sido dispensado nos últimos tempos, diante de uma escalada de beligerância explícita manifesta por ele, no sentido de reunir as representações do poder nacional em torno de uma mesa para encontrar um denominador comum e resolutivo para os gigantescos e danosos impasses constituídos.

Observando à distância, a impressão que se tem do Presidente é de alguém investido por uma personagem, um tanto quanto excêntrica, que precisa de muitos ruídos e confrontos constantes para manter atenta a sua plateia, não permitindo incorrer no erro da monotonia sem graça e pouco teatral.

Essa é a razão pela qual, ele jamais se preocupou em moderar as falas, os discursos. O tom precisa ser agressivo, deselegante, ofensivo, raivoso, para compor satisfatoriamente as demandas narrativas a serem sustentadas. Pouco lhe importa o que dizer; mas, como dizer.

Ocorre que o tempo em cartaz costuma desgastar o roteiro e obrigar a trazer elementos surpresa para o espetáculo. Nada que altere, profundamente, a encenação; mas, que cause um certo frisson no público.

E no rol das possibilidades desagradáveis há uma infinidade de opções que ele pode escolher, sem medo de errar. Aliás, muitas delas, ele e seus asseclas já vêm experimentando, há algum tempo, a fim de apurar as repercussões causadas durante as demonstrações.

Frente a tudo isso, eu discordo que esteja em curso somente mais um blefe com fins midiáticos. A ideia de uma ruptura democrática sempre se apresentou tentadora demais para esse governo e, tendo encontrado respaldo ideológico no “Trumpismo”, norte-americano, tenho dúvidas se não tentariam se valer dos mesmos recursos e artifícios.

Ainda que as circunstâncias e realidades sejam distintas, a base de sustentação de extrema-direita é a mesma; portanto, a semelhança de princípios, valores e objetivos tende a funcionar como motivação para uma tentativa. O que não significa uma aposta de sucesso absoluto, porque a imprevisibilidade nessas situações é uma constante indomável. Haja vista o resultado na própria terra dos ianques.

Mas, a ideia é promover o “circo”, o grande espetáculo, causando inquietude e apreensão nas pessoas; mas, particularmente, irritando os opositores de maneira singular. Porque a efervescência retira a possibilidade de diálogo tanto para servir de protagonismo restrito a quem não quer conversa, quanto para postergar, ainda mais, quaisquer possibilidades de enfrentamento das questões práticas demandantes de solução urgente.

É assim, que vejo montado o cenário atual. Há método. Nada é ao acaso. Não há aleatoriedade nos acontecimentos. A grande questão é que os níveis de tensão estão à beira do limite e, a mínima ausência de habilidade para conduzir a situação, pode sim, resultar em algo totalmente fora de controle.

Um ato de exibicionismo, dessa dimensão, nessa conjuntura atual do planeta, num piscar de olhos pode se voltar contra os interesses do próprio país. Mesmo porque, até aqui, a imagem brasileira transmitida para o mundo, em relação a diferentes assuntos, já não tem sido nada positiva.

O Brasil precisa entender que não é um pedaço de terra despregado do planeta, autossuficiente o bastante para viver à revelia de certos parâmetros e paradigmas da sociedade globalizada. Não figuramos entre as grandes potências para nos atrevermos a arroubos irresponsáveis.

A verdade é que vivemos na corda-bamba, há mais de 500 anos, nos equilibrando daqui e dali para sobreviver; mas, muito longe de viver a vida modulada pelas linhas da dignidade provida pelos direitos humanos fundamentais. Por isso, qualquer tempestade por aqui, se torna um tsunami sem maiores esforços.

Afinal, o Brasil não convive com a excepcionalidade de conjunturas adversas, suas mazelas são crônicas e seculares. De tempos em tempos, não muito longínquos, o que ocorre são acréscimos de turbulências extras. Como aconteceu com a Pandemia do Sars-Cov-2, que está longe de ser superada pela total ineficiência e insuficiência de elementos para lidar com a situação, satisfatoriamente, e mitigar a gravidade das consequências.

Então, o que alguns estão querendo fazer é nada mais nada menos do que “brincar com fogo”. Uma brincadeira cara demais e que pode conduzir o país a uma instabilidade capaz de deflagrar o colapso das microcrises que já estão em curso, como a escassez de energia elétrica, a inflação, o aumento na taxa básica de juros (SELIC), a lentidão do protocolo de vacinação contra a COVID-19, a redução do poder de compra do consumidor, o desemprego, a pobreza, ...  

Parece que a visão de “responsabilidade” dessas pessoas pode ser sintetizada da seguinte forma, “um fardo descartável e facilmente transferido para os ombros de Deus, do Destino, da Sina, da Sorte, ou do nosso vizinho. Nos tempos da astrologia, era comum descarregá-lo para cima de uma estrela” (Ambrose Bierce – escritor norte-americano).

Mas, sabemos muito bem que não é assim que a vida funciona. As más escolhas só fazem representar um alto senso de irresponsabilidade e por isso, “qualquer vida se torna absurda quando quem a devia governar se deixa levar pela estagnação dos mesmos hábitos” (José Luís Nunes Martins – filósofo português).

No fim das contas, a verdade é que os perigos não estão se desenhando no horizonte, para acontecer hoje, amanhã ou a qualquer momento. Não, eles já nos atingiram e já nos desalentam no cotidiano desses últimos anos.

Sendo assim, com ou sem o “circo”, todos os dias, eles já atentam contra as subjetividades e as materialidades da República, da Democracia e da Cidadania, enquanto o povo se submete a aprender a lição de que “Sem dignidade não há liberdade, sem justiça não há dignidade e sem independência não há homens livres” (Patrice Lumumba – político congolês). Portanto, o que nos resta saber, agora, é por quanto tempo mais se conseguirá sobreviver a tudo isso.