domingo, 29 de agosto de 2021

Um sopro de esperança cívica


Um sopro de esperança cívica

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Diante das atuais conjunturas pensei que não iria mais ter nenhuma razão para me sentir feliz por ser brasileira. Havia me esquecido de algo muito emblemático na história desse país. Trata-se da Profecia de Dom Bosco sobre a construção de uma cidade, a qual viria a ser Brasília. Segundo o sonho do padre italiano, em 1883, “Entre os paralelos 15° e 20° surgirá uma cidade que manará leite e mel para toda a Terra” 1. Então, quando vi mais de 6 mil indígenas acampados próximos da Praça dos Três Poderes recebi um sopro de esperança cívica.

“Leite e mel para toda a Terra” é o que os donos desse território estão oferecendo não apenas para os demais brasileiros; mas, para toda a humanidade, através da sua obstinação cidadã caracterizada pela luta pacífica quanto ao seu direito de propriedade territorial. Depois de tanto serem invisibilizados, subjetiva e objetivamente, por grande parte da sociedade brasileira, diversas tribos decidiram, então, se fazer visíveis e presentes enquanto aguardam o julgamento do Marco temporal sobre Terras Indígenas2, pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF).

Sem dúvida alguma, essa é uma iniciativa histórica; pois, jamais se reuniram tantos indígenas em torno de uma única causa. Mas a razão é simples, eles estão lutando pela sua própria vida; afinal, a sua existência é uma extensão das áreas naturais preservadas. A dinâmica sociocultural do indígena brasileiro é historicamente constituída a partir de uma economia de subsistência respaldada pela própria natureza. O litígio que se estabeleceu, há alguns anos, se baseia numa interpretação equivocada que visa limitar o território deles, com propósito de exploração agrícola, pecuária e mineral.

Aliás, o que se tem visto em termos de degradação avassaladora sobre vários biomas nacionais pode, de algum modo, configurar um movimento de pressão que contraria aos interesses indígenas. Antes mesmo de qualquer decisão do STF, eles já estão sob forte ameaça de destruição do seu espaço geográfico natural e, por consequência imediata, da sua própria sobrevivência.

Sim, porque rios estão sendo frequentemente contaminados por mercúrio oriundo de garimpos clandestinos. Vastas extensões de floresta estão sendo queimadas e/ou derrubadas para a venda de madeira ilegal, conforme já alertou a própria Embaixada dos Estados Unidos aos órgãos ambientais do governo brasileiro. A subnutrição e a vulnerabilidade à diversas doenças têm afetado as tribos indígenas, em razão de uma recorrente desassistência por parte dos gestores responsáveis 3. Enfim, todos os movimentos exploratórios presentes nessas áreas têm como objetivo funcionar como mecanismos de constrangimento, humilhação, manipulação, ameaça e chantagem para acelerar o deslocamento territorial desses povos.

Mas, a pergunta que ninguém sabe responder é, para onde eles irão? O que estão querendo fazer com a população indígena, no Brasil, não é muito diferente do que fizeram com os negros na época da Abolição da Escravatura, quando foram libertos das senzalas e ficaram à mercê da própria sorte, sem dinheiro, sem trabalho, sem profissão, em uma sociedade fundamentada no racismo.

A identidade indígena não é constituída para sobreviver em uma sociedade urbano-industrializada. O que representaria mais um profundo golpe de aculturação na sua história e um indicativo muito consistente de falência de adaptação. Inclusive, vale ressaltar que em áreas já usurpadas por garimpeiros e madeireiros ilegais há inúmeros relatos de alcoolismo, consumo de drogas e prostituição (inclusive infantil) entre os indígenas. Sem contar que, ainda, resistem e persistem pequenos grupos de índios que vivem totalmente isolados da civilização branca brasileira e que, portanto, poderiam morrer se perdessem o seu espaço natural.   

Mas, apesar de todos esses pesares, lá estão eles, no planalto central, civilizadamente defendendo sua dignidade, sua identidade, sua cultura, seu lar. Abertos ao diálogo. Sem polarizações. Sem banalizações. Sem vulgaridades. Sem cobiçar nada mais do que o seu próprio direito de existir e de viver. Oferecendo “Leite e mel para toda a Terra”, em cada gota de cidadania que lhes escapa pelos poros e fazendo, temporariamente, de Brasília uma grande tribo.

O que diria Mário Juruna 4 sobre tudo isso, hein? Talvez nada ou apenas repetisse, mais uma vez, que “antes de tudo, o índio precisa de terras. Índio é dono da terra. Então, o branco deve respeitar a terra do índio” (Mário Juruna, 1943-2002). Porque surpresa com algo tão genuíno é mesmo coisa de branco. Somos nós que nos surpreendemos com esse engajamento todo, na medida em que não dispomos da mesma habilidade, ou da mesma competência. Somos “civilizados” demais para certas sutilezas, que fazem tão bem para a vida em coletividade.

Uma pena, quando o mundo já está em polvorosa por mudanças. Quando a sustentabilidade socioambiental é palavra de ordem em cada pedacinho do globo terrestre. Mas, quem sabe, flertando bem de perto com o caos, as palavras simples do indigenista Cláudio Villas-Bôas cumpram o seu verdadeiro sentido de ação reflexiva; afinal, “se achamos que nosso objetivo aqui, na nossa rápida passagem pela Terra, é acumular riquezas, então não temos nada a aprender com os índios. Mas se acreditamos que o ideal é o equilíbrio do homem dentro de sua família e dentro de sua comunidade, então os índios têm lições extraordinárias para nos dar”. Pois é, as tais lições com sabor de “Leite e mel para toda a Terra”. 

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