segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O feijão, o fuzil e o discurso desconstruído pela realidade


O feijão, o fuzil e o discurso desconstruído pela realidade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Antes mesmo que a polêmica entre “o feijão e o fuzil”1 arrefecesse, eis que a cidade de Araçatuba, interior de São Paulo, experimentou uma noite de terror promovida por uma quadrilha pronta a atacar agências bancárias. Aliás, uma infeliz coincidência, o fato de que justamente as agências do Banco do Brasil e da Caixa Econômica Federal foram os alvos escolhidos dessa investida criminosa.

Afinal de contas, essas duas entidades bancárias decidiram recentemente deixar a Federação Brasileira de Bancos (Febraban), em razão de um manifesto da representante do setor bancário em conjunto com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), em defesa da Democracia e pedindo pela harmonia dos três Poderes 2.  

Mas, de volta à relação entre “o feijão e o fuzil” e o ocorrido na cidade paulista, a ideia de uma “liberdade armada” 3 ficou satisfatoriamente superada. Pegos de surpresa, como é o costume dos criminosos desse porte, não houve ninguém que se sentisse livre para ostentar o próprio poder de fogo contra os bandidos. Cada um no seu canto tentou da melhor forma restringir-se a uma insignificância silenciosa. Mesmo assim, vidas humanas foram perdidas.

E ainda bem que foi dessa forma. Imagina se algum metido a “valentão” decidisse enfrentar a situação, sem medir as consequências, o que de pior não poderia ter acontecido? Há um abismo imenso entre a teoria e a prática em casos assim. No calor das emoções, sob o medo e a pressão dos acontecimentos, a técnica e a lógica nem sempre funcionam adequadamente, o que amplia de maneira significativa o limiar de risco e os resultados letais desastrosos.

Afinal, mesmo que em estágio quase “vestigial”, o instinto de sobrevivência humano, ainda, resiste atuando sobre nós. Essa história de “matar ou morrer” é frase de efeito para o cinema; mas, na vida real, o que acontece no campo subjetivo e objetivo dos acontecimentos de violência é bem diferente. Ninguém passa incólume por uma experiência dessas. São eternas essas frações de segundo entre o antes e o depois de um episódio com arma de fogo.

Não é à toa, portanto, a quantidade de soldados remanescentes de conflitos armados que desenvolvem problemas psiquiátricos e precisam ser afastados dos seus campos de atuação profissional; mas, também, da convivência social. O que dizer, então, do cidadão comum? Sem preparo e/ou vivência quanto a esse tipo de situação; apenas detentor de um artefato bélico sob o pretexto de uma tal “liberdade armada”, a qual faz a alegria e o enriquecimento da indústria armamentista.

Assim, a segunda-feira amanheceu sob uma incômoda atmosfera de perplexidade em Araçatuba. Silêncio e apreensão tomaram conta da geografia local, enquanto se apuravam outros perigos eventuais deixados pelos criminosos. A violência interrompeu a dinâmica do cotidiano sem pedir licença, sem sequer se preocupar em saber quantos cidadãos dispunham de armas para se defender. Foi como se os marginais tivessem “metido o pé na porta” e entrado na cidade à revelia de qualquer objeção.

Isso, caro (a) leitor (a), é só um “frame” da realidade contemporânea. Enquanto a sociedade tenciona o cabo de guerra entre a liberdade e a segurança, a vida fica por um triz. Porque esse tipo de movimento não busca o equilíbrio, é tudo ou nada. Não é um lado e outro; mas, um lado ou o outro da corda. O que torna a sociedade profundamente vulnerável e exposta aos mais diferentes contextos de violência, ou seja, física, psicológica, moral e/ou patrimonial que vão gradativamente constituindo um universo de perdas sociais.

Como dizia Jean-Paul Sartre, “A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota”. Não importa em que mãos estejam as armas, se elas estão empunhadas na direção de um ou de outro, a sociedade fracassou, perdeu sua capacidade de conduzir as pessoas ao diálogo, ao equilíbrio, ao consenso, ao desenvolvimento e ao progresso. Por isso, nas guerras não há vitoriosos, há derrotados. Gente, em ambos os lados, que precisa reconstruir, refazer, ressignificar uma vida inteira reduzida a escombros, por conta da insensatez beligerante.

Tupac Shakur, rapper norte-americano, já dizia “Eles conseguem dinheiro para a guerra, mas não conseguem acabar com a pobreza” (Keep Ya Head Up)4. Por isso, eu acredito que ninguém no mundo deveria se atrever em conflitos de quaisquer naturezas. Especialmente, países que padecem mazelas sociais crônicas, que não tem vez e/ou voz no cenário globalizado do planeta. Porque eles não têm nenhum tipo de lastro social que seja suficiente para depositar tamanha confiança em um renascer das próprias cinzas e, nesse sentido, podem acabar com armas nas mãos, padecendo à míngua pela indiferença dos demais.