O
feijão, o fuzil e o discurso desconstruído pela realidade
Por
Alessandra Leles Rocha
Antes mesmo que a polêmica entre “o feijão e o fuzil”1
arrefecesse, eis que a cidade de Araçatuba, interior de São Paulo, experimentou
uma noite de terror promovida por uma quadrilha pronta a atacar agências bancárias.
Aliás, uma infeliz coincidência, o fato de que justamente as agências do Banco
do Brasil e da Caixa Econômica Federal foram os alvos escolhidos dessa
investida criminosa.
Afinal de contas, essas duas
entidades bancárias decidiram recentemente deixar a Federação Brasileira de
Bancos (Febraban), em razão de um manifesto da representante do setor bancário
em conjunto com a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), em
defesa da Democracia e pedindo pela harmonia dos três Poderes 2.
Mas, de volta à relação entre “o feijão e o fuzil” e o ocorrido na
cidade paulista, a ideia de uma “liberdade
armada” 3 ficou satisfatoriamente superada. Pegos
de surpresa, como é o costume dos criminosos desse porte, não houve ninguém que
se sentisse livre para ostentar o próprio poder de fogo contra os bandidos. Cada
um no seu canto tentou da melhor forma restringir-se a uma insignificância silenciosa.
Mesmo assim, vidas humanas foram perdidas.
E ainda bem que foi dessa forma.
Imagina se algum metido a “valentão” decidisse
enfrentar a situação, sem medir as consequências, o que de pior não poderia ter
acontecido? Há um abismo imenso entre a teoria e a prática em casos assim. No calor
das emoções, sob o medo e a pressão dos acontecimentos, a técnica e a lógica
nem sempre funcionam adequadamente, o que amplia de maneira significativa o
limiar de risco e os resultados letais desastrosos.
Afinal, mesmo que em estágio quase
“vestigial”, o instinto de sobrevivência
humano, ainda, resiste atuando sobre nós. Essa história de “matar ou morrer” é frase de efeito para o cinema; mas, na vida
real, o que acontece no campo subjetivo e objetivo dos acontecimentos de violência
é bem diferente. Ninguém passa incólume por uma experiência dessas. São eternas
essas frações de segundo entre o antes e o depois de um episódio com arma de
fogo.
Não é à toa, portanto, a quantidade
de soldados remanescentes de conflitos armados que desenvolvem problemas psiquiátricos
e precisam ser afastados dos seus campos de atuação profissional; mas, também,
da convivência social. O que dizer, então, do cidadão comum? Sem preparo e/ou
vivência quanto a esse tipo de situação; apenas detentor de um artefato bélico sob
o pretexto de uma tal “liberdade armada”,
a qual faz a alegria e o enriquecimento da indústria armamentista.
Assim, a segunda-feira amanheceu sob
uma incômoda atmosfera de perplexidade em Araçatuba. Silêncio e apreensão
tomaram conta da geografia local, enquanto se apuravam outros perigos eventuais
deixados pelos criminosos. A violência interrompeu a dinâmica do cotidiano sem
pedir licença, sem sequer se preocupar em saber quantos cidadãos dispunham de
armas para se defender. Foi como se os marginais tivessem “metido o pé na porta” e entrado na cidade à revelia de qualquer objeção.
Isso, caro (a) leitor (a), é só
um “frame” da realidade contemporânea.
Enquanto a sociedade tenciona o cabo de guerra entre a liberdade e a segurança,
a vida fica por um triz. Porque esse tipo de movimento não busca o equilíbrio,
é tudo ou nada. Não é um lado e outro; mas, um lado ou o outro da corda. O que
torna a sociedade profundamente vulnerável e exposta aos mais diferentes
contextos de violência, ou seja, física, psicológica, moral e/ou patrimonial
que vão gradativamente constituindo um universo de perdas sociais.
Como dizia Jean-Paul Sartre, “A violência, seja qual for a maneira como
ela se manifesta, é sempre uma derrota”. Não importa em que mãos estejam as
armas, se elas estão empunhadas na direção de um ou de outro, a sociedade fracassou,
perdeu sua capacidade de conduzir as pessoas ao diálogo, ao equilíbrio, ao
consenso, ao desenvolvimento e ao progresso. Por isso, nas guerras não há
vitoriosos, há derrotados. Gente, em ambos os lados, que precisa reconstruir,
refazer, ressignificar uma vida inteira reduzida a escombros, por conta da
insensatez beligerante.
Tupac Shakur, rapper
norte-americano, já dizia “Eles conseguem
dinheiro para a guerra, mas não conseguem acabar com a pobreza” (Keep Ya
Head Up)4. Por isso, eu acredito que ninguém no
mundo deveria se atrever em conflitos de quaisquer naturezas. Especialmente,
países que padecem mazelas sociais crônicas, que não tem vez e/ou voz no
cenário globalizado do planeta. Porque eles não têm nenhum tipo de lastro
social que seja suficiente para depositar tamanha confiança em um renascer das próprias
cinzas e, nesse sentido, podem acabar com armas nas mãos, padecendo à míngua
pela indiferença dos demais.
1 https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2021/08/4946231-tem-que-todo-mundo-comprar-fuzil-defende-bolsonaro.html
2 https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,manifesto-que-pede-pacificacao-no-brasil-teve-origem-na-febraban,70003825348
3 https://www.brasil247.com/geral/antes-de-bolsonaro-mussolini-dizia-que-so-um-povo-armado-e-forte-e-livre
4 Keep Ya Head Up - https://www.youtube.com/watch?v=XW--IGAfeas