Só
mais uma crônica do cotidiano brasileiro...
Por
Alessandra Leles Rocha
Sei que em muitos momentos na
jornada da vida é possível exercer com propriedade as próprias escolhas; mas,
como é de praxe na existência humana, vez por outra, tropeçamos nas exceções. A
atual conjuntura do país exemplifica muito bem o que estou dizendo. Qualquer um
pode virar o rosto, ou fechar os olhos, ou assobiar para o nada, ou inventar
histórias; mas, a verdade é uma só e não muda de camisa para nos confrontar com
sua ousadia.
Aqui e ali, todos já se deram
conta de que anda faltando salário para cumprir o mês. O mínimo remuneratório
que vigora no país, desde janeiro desse ano, corresponde a R$1.100,00. Mas, observando com atenção o que determina a
Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7º, inciso IV, cabe ao “salário mínimo, fixado em lei,
nacionalmente unificado, ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do
cidadão e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos
que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer
fim”; de modo que não é difícil perceber a insuficiência dele, diante do cenário
crescente de reajustes em diversos setores da economia.
Tanto que, o Departamento
Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), através da sua
Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos realizada mensalmente, apontou
que o valor ideal do salário mínimo,
em julho, deveria ser R$5.518,79, tendo em vista que “o custo médio da cesta básica de alimentos
aumentou em 15 cidades [...]. A cesta mais cara foi a de Porto Alegre (R$656,92), seguida pela de Florianópolis (R$654,43) e pela de São Paulo (R$640,51). Entre as cidades do Norte e Nordeste, as que
apresentaram menor custo foram Salvador
(R482,58) e Recife (R$487,60)” 1.
Isso significa que, analisando
somente o impacto do valor da cesta básica sobre o salário mínimo bruto, a mais
cara conseguiu consumir em torno de 59,72% do mesmo; enquanto, a mais barata
conseguiu consumir 44,33%. Então, uma pessoa que ganha um salário mínimo não consegue
suprir o restante das suas necessidades - moradia, educação, saúde, lazer,
vestuário, higiene, transporte e previdência social. Tampouco, aqueles que
estão lançados as estatísticas do desemprego e da pobreza.
Sim, porque o “Desemprego
ficou em 14,6% e atingiu 14,8 milhões no trimestre encerrado em maio” 2, segundo dados do Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), e “o ‘índice
de miséria’ atingiu 23,47 pontos em maio, dado mais recente, no maior valor
desde o início da série histórica, em março de 2012. O recorde negativo foi
puxado por aceleração da inflação, aumento do desemprego e do custo de vida e
queda da renda”3 .
Assim, não faz diferença se os 6%
da população que compõem a elite brasileira queiram reconhecer ou não que o
país está se deteriorando pela má administração, porque os 94% restantes,
classe média tradicional e classe baixa, já o fazem. Como diz uma velha canção,
só eles sabem o quanto “[...] é duro tanto
ter que caminhar / E dar muito mais do que receber / E ter que demonstrar sua
coragem / À margem do que possa parecer / E ver que toda essa engrenagem / Já sente
a ferrugem lhe comer [...] 4.
Nesse caso, o caos não é uma
perspectiva, ele já é uma realidade. Porque as informações acima dão conta de
um processo em curso, que tem como um dos principais responsáveis a questão hídrica,
que está intimamente relacionada a um modelo de gestão ambiental insustentável.
O que significa que se não for prontamente reformulado para atender as demandas
emergenciais, a tendência natural é de perda total do controle dos valores de
produção e consumo. Os setores produtivos, todos eles, dependem direta e/ou
indiretamente de água e de energia. A vida humana contemporânea depende
essencialmente disso. Daí a velha prática medieval de cobrar mais impostos,
mais tarifas, nesse caso, é inócua.
É simples de compreender. Primeiro
porque o dinheiro não vai se converter em nuvens de chuva para reabastecer os
reservatórios subterrâneos e, por consequência, os externos e os cursos d’água.
Esse processo demandaria uma regularidade ambiental que a realidade contemporânea
está longe de dispor.
Segundo, porque um país que não
consegue atender aos parâmetros básicos de suficiência hídrica está
potencialmente fadado a perder espaço nas relações internacionais, sobretudo,
no campo do comércio exterior, porque não tem garantias de que vai conseguir
cumprir as negociações.
Indústria precisa de água. Agronegócio
precisa de água. Mineração precisa de água. Enfim... Trata-se exatamente do que demonstrou o
Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Desenvolvimento dos
Recursos Hídricos – 2021, em março desse ano.
De acordo com esse recente documento,
organizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura (UNESCO), Organização das Nações Unidas para a Agricultura (FAO) e Rede
Brasil do Pacto Global da ONU, “O consumo
de água doce aumentou 6 vezes no último século e continua a avançar a uma taxa
de 1% ao ano, fruto do crescimento populacional, do desenvolvimento econômico e
das alterações nos padrões de consumo. A qualidade do bem diminuiu
exponencialmente e o estresse hídrico, mensurado essencialmente pela
disponibilidade em função do suprimento, já afeta mais de 2 bilhões de pessoas.
Muitas regiões enfrentam a chamada escassez econômica da água: ela está fisicamente
disponível, mas não há infraestrutura necessária para o acesso. E isso em um
horizonte cuja previsão de crescimento no consumo é de quase 25% até 2030” 5.
Essa realidade, portanto, está fiando um emaranhado socioeconômico de extrema complexidade, que precisa ser interrompido e, se possível, desconstruído. Porque ele está se resumindo na seguinte questão, “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isso contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir nossos interesses” (José Saramago). Então, se permita parar e refletir, antes que seja tarde demais para sua própria sobrevivência.
2 https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/07/30/desemprego-fica-em-146percent-no-trimestre-encerrado-em-maio-aponta-ibge.ghtml
3 https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2021/08/12/indice-de-miseria-brasil-recorde-inflacao-desemprego.htm
4 Admirável Gado
Novo – Zé Ramalho (https://www.letras.mus.br/ze-ramalho/49361/)