sábado, 28 de agosto de 2021

Só mais uma crônica do cotidiano brasileiro...


Só mais uma crônica do cotidiano brasileiro...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Sei que em muitos momentos na jornada da vida é possível exercer com propriedade as próprias escolhas; mas, como é de praxe na existência humana, vez por outra, tropeçamos nas exceções. A atual conjuntura do país exemplifica muito bem o que estou dizendo. Qualquer um pode virar o rosto, ou fechar os olhos, ou assobiar para o nada, ou inventar histórias; mas, a verdade é uma só e não muda de camisa para nos confrontar com sua ousadia.

Aqui e ali, todos já se deram conta de que anda faltando salário para cumprir o mês. O mínimo remuneratório que vigora no país, desde janeiro desse ano, corresponde a R$1.100,00. Mas, observando com atenção o que determina a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 7º, inciso IV, cabe ao “salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, ser capaz de atender às necessidades vitais básicas do cidadão e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”; de modo que não é difícil perceber a insuficiência dele, diante do cenário crescente de reajustes em diversos setores da economia.

Tanto que, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), através da sua Pesquisa Nacional da Cesta Básica de Alimentos realizada mensalmente, apontou que o valor ideal do salário mínimo, em julho, deveria ser R$5.518,79, tendo em vista que “o custo médio da cesta básica de alimentos aumentou em 15 cidades [...]. A cesta mais cara foi a de Porto Alegre (R$656,92), seguida pela de Florianópolis (R$654,43) e pela de São Paulo (R$640,51). Entre as cidades do Norte e Nordeste, as que apresentaram menor custo foram Salvador (R482,58) e Recife (R$487,60)” 1.

Isso significa que, analisando somente o impacto do valor da cesta básica sobre o salário mínimo bruto, a mais cara conseguiu consumir em torno de 59,72% do mesmo; enquanto, a mais barata conseguiu consumir 44,33%. Então, uma pessoa que ganha um salário mínimo não consegue suprir o restante das suas necessidades - moradia, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social. Tampouco, aqueles que estão lançados as estatísticas do desemprego e da pobreza.

Sim, porque o  “Desemprego ficou em 14,6% e atingiu 14,8 milhões no trimestre encerrado em maio” 2, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e “o ‘índice de miséria’ atingiu 23,47 pontos em maio, dado mais recente, no maior valor desde o início da série histórica, em março de 2012. O recorde negativo foi puxado por aceleração da inflação, aumento do desemprego e do custo de vida e queda da renda”3 .

Assim, não faz diferença se os 6% da população que compõem a elite brasileira queiram reconhecer ou não que o país está se deteriorando pela má administração, porque os 94% restantes, classe média tradicional e classe baixa, já o fazem. Como diz uma velha canção, só eles sabem o quanto “[...] é duro tanto ter que caminhar / E dar muito mais do que receber / E ter que demonstrar sua coragem / À margem do que possa parecer / E ver que toda essa engrenagem / Já sente a ferrugem lhe comer [...] 4.

Nesse caso, o caos não é uma perspectiva, ele já é uma realidade. Porque as informações acima dão conta de um processo em curso, que tem como um dos principais responsáveis a questão hídrica, que está intimamente relacionada a um modelo de gestão ambiental insustentável. O que significa que se não for prontamente reformulado para atender as demandas emergenciais, a tendência natural é de perda total do controle dos valores de produção e consumo. Os setores produtivos, todos eles, dependem direta e/ou indiretamente de água e de energia. A vida humana contemporânea depende essencialmente disso. Daí a velha prática medieval de cobrar mais impostos, mais tarifas, nesse caso, é inócua.

É simples de compreender. Primeiro porque o dinheiro não vai se converter em nuvens de chuva para reabastecer os reservatórios subterrâneos e, por consequência, os externos e os cursos d’água. Esse processo demandaria uma regularidade ambiental que a realidade contemporânea está longe de dispor.

Segundo, porque um país que não consegue atender aos parâmetros básicos de suficiência hídrica está potencialmente fadado a perder espaço nas relações internacionais, sobretudo, no campo do comércio exterior, porque não tem garantias de que vai conseguir cumprir as negociações.

Indústria precisa de água. Agronegócio precisa de água. Mineração precisa de água. Enfim...  Trata-se exatamente do que demonstrou o Relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) para o Desenvolvimento dos Recursos Hídricos – 2021, em março desse ano.

De acordo com esse recente documento, organizado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), Organização das Nações Unidas para a Agricultura (FAO) e Rede Brasil do Pacto Global da ONU, “O consumo de água doce aumentou 6 vezes no último século e continua a avançar a uma taxa de 1% ao ano, fruto do crescimento populacional, do desenvolvimento econômico e das alterações nos padrões de consumo. A qualidade do bem diminuiu exponencialmente e o estresse hídrico, mensurado essencialmente pela disponibilidade em função do suprimento, já afeta mais de 2 bilhões de pessoas. Muitas regiões enfrentam a chamada escassez econômica da água: ela está fisicamente disponível, mas não há infraestrutura necessária para o acesso. E isso em um horizonte cuja previsão de crescimento no consumo é de quase 25% até 2030” 5.

Essa realidade, portanto, está fiando um emaranhado socioeconômico de extrema complexidade, que precisa ser interrompido e, se possível, desconstruído. Porque ele está se resumindo na seguinte questão, “O egoísmo pessoal, o comodismo, a falta de generosidade, as pequenas covardias do cotidiano, tudo isso contribui para essa perniciosa forma de cegueira mental que consiste em estar no mundo e não ver o mundo, ou só ver dele o que, em cada momento, for susceptível de servir nossos interesses” (José Saramago). Então, se permita parar e refletir, antes que seja tarde demais para sua própria sobrevivência.