quarta-feira, 25 de agosto de 2021

O “mea culpa” nosso de cada dia ...


O “mea culpa” nosso de cada dia ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

O recorte temporal promovido pela Pandemia trouxe muita desestabilização para a humanidade; mas, ao mesmo tempo, ao revirar o cotidiano de cabeça para baixo teve seus aspectos positivos. Um deles foi o fato de o terreno da vida ter sido revolvido profundamente, ao ponto de trazer à tona uma série de questões a serem descontruídas, ou resignificadas, ou reelaboradas. Enfim, de algum modo, o ser humano colocou luz sobre suas trevas mais bizarras e condenáveis.

E por uma baita ironia do destino, no Brasil, esse mesmo tempo tem convivido com a tentativa da extrema-direita conservadora de se firmar no poder e no controle social, com suas pautas amareladas e ultrapassadas pelo incansável correr dos ponteiros do relógio. Então, aqui e ali ouvem-se discursos absurdos e temerários; mas, que, apesar dos pesares, podem ser muito úteis para uma auto avaliação sobre o que representa a tal “identidade brasileira”.  

Afinal, há algumas semanas, o Ministro da Educação, um dos expoentes dessa extrema-direita conservadora, presente na atual gestão federal, tem manifesto algumas opiniões equivocadas sobre alunos com deficiência e causado um terrível desconforto, especialmente, em alguns segmentos da sociedade.

Depois de afirmar que “Algumas crianças com deficiência são de ‘impossível’ convivência”, agora, ele “afirmou que não quer o ‘inclusivismo' dessas crianças nas escolas” 1. De repente, essa parece ser a grande oportunidade de fazermos o “mea culpa” nosso de cada dia.

Lamento, mas se um ministro não se constrange ou se penitencia por suas falas públicas é porque reconhece, de algum modo, um tipo de “ licença social” para fazê-lo. É como se suas palavras fossem referendadas pelo apoio da sociedade, seja em parte ou em sua totalidade.

Uma consciência construída pela verbalização de alguns; mas, sobretudo, pelo silêncio e indiferença de uma expressiva maioria. Não é à toa que os preconceitos, no Brasil, são estruturais, ou seja, estão formalizados a partir de um conjunto de práticas históricas, institucionais, culturais e interpessoais dentro da sociedade.

Experimente perguntar para qualquer pessoa se ela sabe qual o percentual de deficientes no país? Se ela já ouviu falar, por exemplo, sobre o INES (Instituto Nacional de Surdos), o Instituto Benjamin Constant (IBC), a Fundação Dorina Nowill para cegos, a Associação Brasileira de Autismo (ABRA), a Organização Nacional de Entidades de Deficientes Físicos (Onedef), ou o Movimento Down? Se já participou ou soube de eventos relacionados ao Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (03/12)? Se conhece alguma legislação relacionada à deficiência?

Provavelmente, a resposta será o silêncio ou o espanto, o que é lamentável para um país que tem aproximadamente 25% (1/4) da população com algum tipo de deficiência, segundo dados do último Censo Demográfico, em 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Isso significa que esse percentual se encontra distribuído em torno de um pouco mais de 13 milhões de pessoas com deficiência motora, 10 milhões de surdos, 2,5 milhões com deficiência mental e 35 milhões de cegos. Mas, parece que ninguém os vê ou reconhece a sua existência.

Por isso, é tão importante trazer a luz das pessoas algumas informações referentes a base legal que respalda os direitos dos cidadãos com deficiência. No Brasil, eles estão previstos na Constituição Federal de 1988 (arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, e 205 a 214), na Lei n. º 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)) no capítulo V (Educação especial), na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), assinada em Nova Iorque, em 30/03/2007, a qual foi aprovada via Decreto-Legislativo, pelo Senado Federal, em 10/07/2008, na Lei n.º 13146 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência), de 06/07/2015, e na Lei n.º 8.213/91, o artigo 93 que regulamenta as cotas para contratação de pessoas com algum tipo de deficiência.  

Afinal de contas, infelizmente, a percepção e a compreensão sobre o fato de que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, conforme expresso na Constituição Federal de 1988 e em todos os demais instrumentos legais citados, ainda dista de uma realidade inclusiva plena.

Há quase uma década, o Relatório Mundial sobre a Deficiência, já revelava que “muitas pessoas com deficiência não têm acesso igualitário à assistência médica, educação, e oportunidades de emprego, não recebem os serviços correspondentes à deficiência de que precisam, e sofrem exclusão das atividades da vida cotidiana. Após a entrada em vigor da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiência das Nações Unidas (CDPD), a deficiência é cada vez mais considerada uma questão de direitos humanos. A deficiência é uma importante questão de desenvolvimento com cada vez mais evidências de que pessoas com deficiência experimentam piores resultados socioeconômicos e pobreza do que as pessoas não deficientes” 2.

No entanto, apesar dessas iniciativas, o caminho a ser percorrido contra os preconceitos parece sem fim. Ontem mesmo foram abertos os Jogos Paralímpicos - Tóquio 2020 e a cobertura da imprensa é visivelmente menor do que foi previsto para os Jogos Olímpicos - Tóquio 2020. Mas, não há indignação, nem desconforto, nem quaisquer tipos de manifestação. Simplesmente, porque há um silêncio indiferente pairando sobre o cotidiano. E ele tem um nome, desrespeito.

Esse é apenas um, dentre tantos outros, sinais velados desse preconceito estrutural que insiste permanecer entre nós. Que diferença há entres atletas paralímpicos e olímpicos se ambos tiveram que investir seu tempo, seus esforços, seus sacrifícios, em nome da participação olímpica? No Rio, em 2016, por exemplo, os atletas paralímpicos brasileiros conseguiram o 8º lugar no quadro de medalhas, com 14 de ouro, 29 de prata e 29 de bronze; mas, quem se lembra? Quem valoriza?

Esta não é uma questão restrita à governo, imprensa e/ou patrocinadores. Esta é uma questão de consciência coletiva cidadã. Cada brasileiro deveria se sentir representado e enaltecido, por qualquer compatriota que se destaca, que se sobressai, diariamente, nos diferentes campos da vida. Porque cada indivíduo é um pedaço dessa identidade nacional chamada Brasil. É um cidadão que “[...] sabe a dor e a delícia de ser o que é [...]” 3. Que, no fundo, tem mais oportunidades para não conseguir êxito na vida do que o contrário.

Por isso, a verdade é que o nosso silêncio cidadão grita alto a dimensão da nossa omissão social, à qual é revestida por fino preconceito. O Ministro é apenas um entre mais de 215 milhões de brasileiros que, de uma forma ou de outra, se abstêm de cultivar o altruísmo reconhecedor da grandeza, da importância, do outro.

Mas, quando apontamos desaprovações, aqui e ali, numa tentativa inócua de nos esquivar do próprio apontamento, em relação às nossas insignificâncias, nossos atos abomináveis e terríveis, não produzimos efeito prático algum. Tudo fica como está.

Como disse José Saramago à Bia Abramo da Folha de São Paulo, em 1995, “Acho que a grande revolução, e o livro (Ensaio sobre a Cegueira) fala disso, seria a revolução da bondade. Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons, os problemas do mundo estavam resolvidos. Claro que isso nem é uma utopia, é um disparate. Mas a consciência de que isso não acontecerá, não nos deve impedir, cada um consigo mesmo, de fazer tudo o que pode para reger-se por princípios éticos. Pelo menos a sua passagem por este mundo não terá sido inútil e, mesmo que não seja extremamente útil, não terá sido perniciosa. Quando nós olhamos para o estado em que o mundo se encontra, damo-nos conta de que há milhares e milhares de seres humanos que fizeram de sua vida uma sistemática ação perniciosa contra o resto da humanidade. Nem é preciso dar-lhes nomes. Mas tenho convicção que, pelo menos, deve-se seguir essa regra muito simples, que é egoísta, mas esse é um egoísmo bom, que é o de não fazer aos outros aquilo que não queremos que nos façam. Minha velha avó já o dizia e os avós de meus avós já o disseram” 4.

E diante dessas palavras tão sábias, sinceramente, eu acredito que o século XXI, ainda, espera mais de nós. Talvez, por isso, as conjunturas estejam nos confrontando, sem qualquer cerimônia, e exigindo um pouco mais de autorreflexão, de criticidade e de ação. Afinal, por excessivo narcisismo viemos nos permitindo negar a existência humana a partir de preconceitos, os quais lançamos inadvertidamente sobre os outros, mas somos incapazes de carregar sobre os nossos próprios ombros. E a existência, caro (a) leitor (a), precisa e deve ser bem mais do que isso. 



2 São Paulo. Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência. Relatório Mundial sobre Deficiência. Organização Mundial da Saúde e Banco Mundial.  São Paulo: SEDPcD, 2012. 334p.

3 Dom de iludir – Caetano Veloso (https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44719/)

4 ABRAMO, B. Saramago anuncia a cegueira da razão. 18 out. 1995. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/10/18/ilustrada/1.html. Acesso em: 06 nov. 2016. 

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