O
“mea culpa” nosso de cada dia ...
Por
Alessandra Leles Rocha
O recorte temporal promovido pela
Pandemia trouxe muita desestabilização para a humanidade; mas, ao mesmo tempo,
ao revirar o cotidiano de cabeça para baixo teve seus aspectos positivos. Um
deles foi o fato de o terreno da vida ter sido revolvido profundamente, ao
ponto de trazer à tona uma série de questões a serem descontruídas, ou
resignificadas, ou reelaboradas. Enfim, de algum modo, o ser humano colocou luz
sobre suas trevas mais bizarras e condenáveis.
E por uma baita ironia do
destino, no Brasil, esse mesmo tempo tem convivido com a tentativa da
extrema-direita conservadora de se firmar no poder e no controle social, com
suas pautas amareladas e ultrapassadas pelo incansável correr dos ponteiros do
relógio. Então, aqui e ali ouvem-se discursos absurdos e temerários; mas, que,
apesar dos pesares, podem ser muito úteis para uma auto avaliação sobre o que
representa a tal “identidade brasileira”.
Afinal, há algumas semanas, o
Ministro da Educação, um dos expoentes dessa extrema-direita conservadora,
presente na atual gestão federal, tem manifesto algumas opiniões equivocadas
sobre alunos com deficiência e causado um terrível desconforto, especialmente,
em alguns segmentos da sociedade.
Depois de afirmar que “Algumas crianças com deficiência são de
‘impossível’ convivência”, agora, ele “afirmou
que não quer o ‘inclusivismo' dessas crianças nas escolas” 1. De repente, essa parece ser a grande
oportunidade de fazermos o “mea culpa” nosso
de cada dia.
Lamento, mas se um ministro não
se constrange ou se penitencia por suas falas públicas é porque reconhece, de
algum modo, um tipo de “ licença social”
para fazê-lo. É como se suas palavras fossem referendadas pelo apoio da
sociedade, seja em parte ou em sua totalidade.
Uma consciência construída pela
verbalização de alguns; mas, sobretudo, pelo silêncio e indiferença de uma
expressiva maioria. Não é à toa que os preconceitos, no Brasil, são
estruturais, ou seja, estão formalizados a partir de um conjunto de práticas
históricas, institucionais, culturais e interpessoais dentro da sociedade.
Experimente perguntar para
qualquer pessoa se ela sabe qual o percentual de deficientes no país? Se ela já
ouviu falar, por exemplo, sobre o INES (Instituto Nacional de Surdos), o
Instituto Benjamin Constant (IBC), a Fundação Dorina Nowill para cegos, a
Associação Brasileira de Autismo (ABRA), a Organização Nacional de Entidades de
Deficientes Físicos (Onedef), ou o Movimento Down? Se já participou ou soube de
eventos relacionados ao Dia Internacional das Pessoas com Deficiência (03/12)? Se
conhece alguma legislação relacionada à deficiência?
Provavelmente, a resposta será o
silêncio ou o espanto, o que é lamentável para um país que tem aproximadamente
25% (1/4) da população com algum tipo de deficiência, segundo dados do último
Censo Demográfico, em 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE).
Isso significa que esse
percentual se encontra distribuído em torno de um pouco mais de 13 milhões de pessoas
com deficiência motora, 10 milhões de surdos, 2,5 milhões com deficiência
mental e 35 milhões de cegos. Mas, parece que ninguém os vê ou reconhece a sua
existência.
Por isso, é tão importante trazer
a luz das pessoas algumas informações referentes a base legal que respalda os
direitos dos cidadãos com deficiência. No Brasil, eles estão previstos na
Constituição Federal de 1988 (arts. 1º, 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, e 205 a 214), na
Lei n. º 9394/96 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)) no capítulo V
(Educação especial), na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência
(CDPD), assinada em Nova Iorque, em 30/03/2007, a qual foi aprovada via
Decreto-Legislativo, pelo Senado Federal, em 10/07/2008, na Lei n.º 13146 (Lei
Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência), de 06/07/2015, e na Lei n.º
8.213/91, o artigo 93 que regulamenta as cotas para contratação de pessoas com
algum tipo de deficiência.
Afinal de contas, infelizmente, a
percepção e a compreensão sobre o fato de que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza”, conforme
expresso na Constituição Federal de 1988 e em todos os demais instrumentos
legais citados, ainda dista de uma realidade inclusiva plena.
Há quase uma década, o Relatório
Mundial sobre a Deficiência, já revelava que “muitas pessoas com deficiência não têm acesso igualitário à assistência
médica, educação, e oportunidades de emprego, não recebem os serviços
correspondentes à deficiência de que precisam, e sofrem exclusão das atividades
da vida cotidiana. Após a entrada em vigor da Convenção sobre Direitos das
Pessoas com Deficiência das Nações Unidas (CDPD), a deficiência é cada vez mais
considerada uma questão de direitos humanos. A deficiência é uma importante
questão de desenvolvimento com cada vez mais evidências de que pessoas com
deficiência experimentam piores resultados socioeconômicos e pobreza do que as
pessoas não deficientes” 2.
No entanto, apesar dessas
iniciativas, o caminho a ser percorrido contra os preconceitos parece sem fim. Ontem
mesmo foram abertos os Jogos Paralímpicos - Tóquio 2020 e a cobertura da
imprensa é visivelmente menor do que foi previsto para os Jogos Olímpicos - Tóquio
2020. Mas, não há indignação, nem desconforto, nem quaisquer tipos de manifestação.
Simplesmente, porque há um silêncio indiferente pairando sobre o cotidiano. E ele
tem um nome, desrespeito.
Esse é apenas um, dentre tantos
outros, sinais velados desse preconceito estrutural que insiste permanecer entre
nós. Que diferença há entres atletas paralímpicos e olímpicos se ambos tiveram
que investir seu tempo, seus esforços, seus sacrifícios, em nome da
participação olímpica? No Rio, em 2016, por exemplo, os atletas paralímpicos
brasileiros conseguiram o 8º lugar no quadro de medalhas, com 14 de ouro, 29 de
prata e 29 de bronze; mas, quem se lembra? Quem valoriza?
Esta não é uma questão restrita à
governo, imprensa e/ou patrocinadores. Esta é uma questão de consciência
coletiva cidadã. Cada brasileiro deveria se sentir representado e enaltecido,
por qualquer compatriota que se destaca, que se sobressai, diariamente, nos
diferentes campos da vida. Porque cada indivíduo é um pedaço dessa identidade
nacional chamada Brasil. É um cidadão que “[...]
sabe a dor e a delícia de ser o que é [...]” 3.
Que, no fundo, tem mais oportunidades para não conseguir êxito na vida do que o
contrário.
Por isso, a verdade é que o nosso
silêncio cidadão grita alto a dimensão da nossa omissão social, à qual é revestida
por fino preconceito. O Ministro é apenas um entre mais de 215 milhões de
brasileiros que, de uma forma ou de outra, se abstêm de cultivar o altruísmo
reconhecedor da grandeza, da importância, do outro.
Mas, quando apontamos
desaprovações, aqui e ali, numa tentativa inócua de nos esquivar do próprio
apontamento, em relação às nossas insignificâncias, nossos atos abomináveis e
terríveis, não produzimos efeito prático algum. Tudo fica como está.
Como disse José Saramago à Bia
Abramo da Folha de São Paulo, em 1995, “Acho
que a grande revolução, e o livro (Ensaio sobre a Cegueira) fala disso, seria a
revolução da bondade. Se nós, de um dia para o outro, nos descobríssemos bons,
os problemas do mundo estavam resolvidos. Claro que isso nem é uma utopia, é um
disparate. Mas a consciência de que isso não acontecerá, não nos deve impedir,
cada um consigo mesmo, de fazer tudo o que pode para reger-se por princípios
éticos. Pelo menos a sua passagem por este mundo não terá sido inútil e, mesmo
que não seja extremamente útil, não terá sido perniciosa. Quando nós olhamos
para o estado em que o mundo se encontra, damo-nos conta de que há milhares e
milhares de seres humanos que fizeram de sua vida uma sistemática ação
perniciosa contra o resto da humanidade. Nem é preciso dar-lhes nomes. Mas tenho
convicção que, pelo menos, deve-se seguir essa regra muito simples, que é egoísta,
mas esse é um egoísmo bom, que é o de não fazer aos outros aquilo que não
queremos que nos façam. Minha velha avó já o dizia e os avós de meus avós já o
disseram” 4.
E diante dessas palavras tão sábias, sinceramente, eu acredito que o século XXI, ainda, espera mais de nós. Talvez, por isso, as conjunturas estejam nos confrontando, sem qualquer cerimônia, e exigindo um pouco mais de autorreflexão, de criticidade e de ação. Afinal, por excessivo narcisismo viemos nos permitindo negar a existência humana a partir de preconceitos, os quais lançamos inadvertidamente sobre os outros, mas somos incapazes de carregar sobre os nossos próprios ombros. E a existência, caro (a) leitor (a), precisa e deve ser bem mais do que isso.
1 https://oglobo.globo.com/brasil/nos-nao-queremos-inclusivismo-diz-ministro-da-educacao-sobre-criancas-com-deficiencia-nas-escolas-25167927
2
São Paulo. Secretaria de Estado dos Direitos da Pessoa com Deficiência.
Relatório Mundial sobre Deficiência. Organização Mundial da Saúde e Banco Mundial.
São Paulo: SEDPcD, 2012. 334p.
3 Dom de
iludir – Caetano Veloso (https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/44719/)
4 ABRAMO, B. Saramago anuncia a cegueira da razão. 18 out. 1995. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/10/18/ilustrada/1.html. Acesso em: 06 nov. 2016.