Será
o espaço sideral a solução de todos os problemas humanos?
Por
Alessandra Leles Rocha
É esse torpor da humanidade que me irrita
profundamente. Enquanto se absorvem olhando para o céu e sua infinitude azul,
as pessoas se abstêm gratuita e voluntariamente de olhar para baixo onde estão
fincados os seus pés. Um estardalhaço, uma euforia, todas as atenções voltadas
para o bate-volta no espaço realizado pelo foguete de um bilionário
norte-americano. Um recorte que abstrai a realidade de uma Pandemia que ainda
persiste, de uma economia alternando bons e maus momentos, de mazelas crônicas
que recrudescem ao sabor das adversidades, enfim ... Como se o espaço sideral
fosse mesmo a solução de todos os problemas humanos.
Se ainda resta dificuldade para compreender, é simples, o problema
não está no planeta, mas em quem o habita. E não sou eu, a primeira pessoa a
perceber isso. Em 1973, Carlos Drummond de Andrade publicou em seu livro “As
Impurezas do Branco”, o poema O
HOMEM; AS VIAGENS 1,
trazendo uma das mais oportunas reflexões sobre o ser humano contemporâneo, na
perspectiva da grandiosidade de sua inquietude existencial.
Cada vez que me debruço sobre as palavras de Drummond, nesse
poema, mais tenho certeza de que o ser humano é criança para o resto da vida.
Daí sua imensa dificuldade em lidar com a realidade, com os problemas, com as
responsabilidades, com as obrigações. Há sempre um pretexto, uma desculpa, uma
justificativa para sair pela tangente e postergar sem fim, silenciando os
apelos e os clamores do agora. Como se a vida não fosse um redemoinho de
urgências.
Então, quando o peso do mundo lhe recai sobre os ombros, ele não
quer mais brincar. Coloca a bola debaixo do braço e sai emburrado para não ter
que se explicar. Numa simplicidade que faz parecer possível desatar as amarras
implícitas aos deveres cotidianos. Só que não. Agindo assim, o ser humano só
faz espichar o amanhã, soterrando problemas em cima de problemas. Até que um
dia, ele perceba que perdeu o fio da meada e não sabe mais por onde começar a
resolver.
Vejamos que a corrida espacial se deu no contexto da Guerra Fria,
com todo o afã imperialista de expandir fronteiras, ao ponto de que a Terra já
se mostrava insuficiente para esse feito. Entretanto, tudo não passou de um
subterfúgio para se esquivarem das reflexões e compromissos advindos da 2ª
Guerra Mundial, a qual havia arrasado com o planeta e suas sociedades,
mostrando o pior e mais perverso lado do ser humano.
Então, ir ao espaço mudaria o foco, traria as atenções para o
lúdico, o imaginário da humanidade e sepultaria, de algum modo, as discussões
indigestas e inconvenientes que teimavam em pairar sobre o mundo. Sem contar
que as inovações científicas e tecnológicas da corrida espacial, também,
trouxeram novidades para o campo cotidiano das pessoas, promessas de agilizar o
tempo com as atividades domésticas arrebataram os corações de milhões de
pessoas ao redor do planeta.
E enquanto permanecia maravilhada, como se estivesse em um
episódio de Os
Jetsons 2,
a humanidade se esquecia de ver a vida como ela é. A corrida espacial e seus
desdobramentos não fizeram do mundo um lugar melhor. Os problemas terráqueos
permaneciam em franca ebulição. Doenças. Miséria. Desigualdade. Violência. ...
Particularmente, porque os interesses e os recursos estavam destinados a suprir
as demandas espaciais.
Acontece que esse panorama seguiu em frente. Para não ter que
enfrentar os desafios, ou melindrar os interesses dos poderosos, a raça humana
continuou buscando alternativas para se desviar de suas responsabilidades,
mesmo que as custas de acelerar a consumição e deterioração do próprio planeta,
elevando o risco de ameaça a sobrevivência global. Afinal, a carta na manga já
estava traçada, o espaço sideral.
Se vai dar certo, se tudo vai transcorrer como o planejado, são
outros quinhentos; mas, como a humanidade se acostumou a ser imprevidente, isso
nem é levado em consideração em um primeiro momento. E assim, vamos pagando o
preço altíssimo da capacidade intelectual e cognitiva do ser humano, com toda a
sua inventividade criativa, despreocupada à enésima potência com as
consequências e desdobramentos.
Sendo, tão somente, imediatista e superficial, ou seja, enquanto
abandonamos a Terra à própria sorte, tecemos fios imaginários para nos ligar ao
infinito do céu, sob uma tênue sensação de segurança. Afinal, se recusar a ver
retira de nós a obrigação de fazer, de se posicionar, de agir, de protagonizar;
pelo menos em teoria.
Mas, na prática, esse movimento só faz traduzir o tamanho do medo
que a nossa infantilização voluntária permite nos apropriar, o quanto estamos
absorvidos pelo Mito da Caverna, de Platão. Entregue aos dilemas das sombras e
das correntes do mundo.
Nesse contexto, temos, então, manifesto cada vez mais e com mais
intensidade que “Provisoriamente
não cantaremos o amor, / que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. /
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, / não cantaremos o ódio, porque
este não existe, / existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, / o
medo dos grandes sertões, dos mares, dos desertos, /o medo dos soldados, o medo
das mães, / o medo das igrejas, / cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos
democratas, / cantaremos o medo da morte e o medo depois da morte. / Depois
morreremos de medo / e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e
medrosas” (Carlos Drummond de Andrade – Congresso Internacional do
Medo). Um medo, que vez por outra, talvez, acreditamos que possa ser dissipado
com a ajuda da luz da Lua e das estrelas.
1 https://tspasunb.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Homem-as-viagens-Carlos-Drummond-PAS-Terceira-Etapa.pdf