quarta-feira, 21 de julho de 2021

Será o espaço sideral a solução de todos os problemas humanos?


Será o espaço sideral a solução de todos os problemas humanos?

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

É esse torpor da humanidade que me irrita profundamente. Enquanto se absorvem olhando para o céu e sua infinitude azul, as pessoas se abstêm gratuita e voluntariamente de olhar para baixo onde estão fincados os seus pés. Um estardalhaço, uma euforia, todas as atenções voltadas para o bate-volta no espaço realizado pelo foguete de um bilionário norte-americano. Um recorte que abstrai a realidade de uma Pandemia que ainda persiste, de uma economia alternando bons e maus momentos, de mazelas crônicas que recrudescem ao sabor das adversidades, enfim ... Como se o espaço sideral fosse mesmo a solução de todos os problemas humanos.

Se ainda resta dificuldade para compreender, é simples, o problema não está no planeta, mas em quem o habita. E não sou eu, a primeira pessoa a perceber isso. Em 1973, Carlos Drummond de Andrade publicou em seu livro “As Impurezas do Branco”, o poema O HOMEM; AS VIAGENS 1, trazendo uma das mais oportunas reflexões sobre o ser humano contemporâneo, na perspectiva da grandiosidade de sua inquietude existencial.

Cada vez que me debruço sobre as palavras de Drummond, nesse poema, mais tenho certeza de que o ser humano é criança para o resto da vida. Daí sua imensa dificuldade em lidar com a realidade, com os problemas, com as responsabilidades, com as obrigações. Há sempre um pretexto, uma desculpa, uma justificativa para sair pela tangente e postergar sem fim, silenciando os apelos e os clamores do agora. Como se a vida não fosse um redemoinho de urgências.

Então, quando o peso do mundo lhe recai sobre os ombros, ele não quer mais brincar. Coloca a bola debaixo do braço e sai emburrado para não ter que se explicar. Numa simplicidade que faz parecer possível desatar as amarras implícitas aos deveres cotidianos. Só que não. Agindo assim, o ser humano só faz espichar o amanhã, soterrando problemas em cima de problemas. Até que um dia, ele perceba que perdeu o fio da meada e não sabe mais por onde começar a resolver.

Vejamos que a corrida espacial se deu no contexto da Guerra Fria, com todo o afã imperialista de expandir fronteiras, ao ponto de que a Terra já se mostrava insuficiente para esse feito. Entretanto, tudo não passou de um subterfúgio para se esquivarem das reflexões e compromissos advindos da 2ª Guerra Mundial, a qual havia arrasado com o planeta e suas sociedades, mostrando o pior e mais perverso lado do ser humano.

Então, ir ao espaço mudaria o foco, traria as atenções para o lúdico, o imaginário da humanidade e sepultaria, de algum modo, as discussões indigestas e inconvenientes que teimavam em pairar sobre o mundo. Sem contar que as inovações científicas e tecnológicas da corrida espacial, também, trouxeram novidades para o campo cotidiano das pessoas, promessas de agilizar o tempo com as atividades domésticas arrebataram os corações de milhões de pessoas ao redor do planeta.

E enquanto permanecia maravilhada, como se estivesse em um episódio de Os Jetsons 2, a humanidade se esquecia de ver a vida como ela é. A corrida espacial e seus desdobramentos não fizeram do mundo um lugar melhor. Os problemas terráqueos permaneciam em franca ebulição. Doenças. Miséria. Desigualdade. Violência. ... Particularmente, porque os interesses e os recursos estavam destinados a suprir as demandas espaciais.

Acontece que esse panorama seguiu em frente. Para não ter que enfrentar os desafios, ou melindrar os interesses dos poderosos, a raça humana continuou buscando alternativas para se desviar de suas responsabilidades, mesmo que as custas de acelerar a consumição e deterioração do próprio planeta, elevando o risco de ameaça a sobrevivência global. Afinal, a carta na manga já estava traçada, o espaço sideral.

Se vai dar certo, se tudo vai transcorrer como o planejado, são outros quinhentos; mas, como a humanidade se acostumou a ser imprevidente, isso nem é levado em consideração em um primeiro momento. E assim, vamos pagando o preço altíssimo da capacidade intelectual e cognitiva do ser humano, com toda a sua inventividade criativa, despreocupada à enésima potência com as consequências e desdobramentos.

Sendo, tão somente, imediatista e superficial, ou seja, enquanto abandonamos a Terra à própria sorte, tecemos fios imaginários para nos ligar ao infinito do céu, sob uma tênue sensação de segurança. Afinal, se recusar a ver retira de nós a obrigação de fazer, de se posicionar, de agir, de protagonizar; pelo menos em teoria.

Mas, na prática, esse movimento só faz traduzir o tamanho do medo que a nossa infantilização voluntária permite nos apropriar, o quanto estamos absorvidos pelo Mito da Caverna, de Platão. Entregue aos dilemas das sombras e das correntes do mundo.

Nesse contexto, temos, então, manifesto cada vez mais e com mais intensidade que “Provisoriamente não cantaremos o amor, / que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos. / Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços, / não cantaremos o ódio, porque este não existe, / existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro, / o medo dos grandes sertões, dos mares, dos desertos, /o medo dos soldados, o medo das mães, / o medo das igrejas, / cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas, / cantaremos o medo da morte e o medo depois da morte. / Depois morreremos de medo / e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas” (Carlos Drummond de Andrade – Congresso Internacional do Medo). Um medo, que vez por outra, talvez, acreditamos que possa ser dissipado com a ajuda da luz da Lua e das estrelas.    



1 https://tspasunb.com/wp-content/uploads/2018/07/O-Homem-as-viagens-Carlos-Drummond-PAS-Terceira-Etapa.pdf

2 https://pt.wikipedia.org/wiki/The_Jetsons