Nos
tempos do “Sim, senhor!” ?
Por
Alessandra Leles Rocha
Têm sido muitas as questões debatidas
recentemente, que apontam seus embaraços com as teias do passado e do
retrocesso. Quem diria que, em pleno século XXI, o Supremo Tribunal Federal
(STF) estaria debruçado na análise da Lei do Planejamento Familiar, de 1996,
especificamente no ponto em que “caso o indivíduo seja casado, a esterilização
depende do consentimento expresso do cônjuge” 1.
A estranheza é legítima, tendo em
vista que, só no segundo semestre de 2020, foram contabilizados 43,8 mil
processos de divórcio no país; o que, segundo informações do Colégio Notarial
do Brasil – Conselho Federal (CNB/CF), representou um aumento de 15% em relação
a 2019 2. Isso significa que uma exigência como
essa extrapola os limites da realidade social brasileira.
Mas, enquanto se preocupam com “quem manda em quem”, nesse assunto tão
íntimo e pessoal, as feridas expostas pelas incongruências no sistema de
Planejamento Familiar permanecem abertas e afrontando a dignidade do cidadão,
especialmente aqueles em situação de maior risco e vulnerabilidade.
Segundo dados desse ano, a
composição da classe baixa, na pirâmide social brasileira, representa 47% da
população. Em suma, seres humanos lançados a sobreviver sob condições de
profunda desigualdade, ou seja, muito mais expostos à miséria, a pobreza, ao desemprego,
e todos os demais infortúnios da desassistência.
Eles estão sempre à margem de
seus próprios direitos sociais e humanos; de modo que, aqueles que nascem sob a
luz desse signo, estão marcados pelo mais profundo e desafiador sofrimento existencial.
Portanto, o Planejamento Familiar é apenas mais um aspecto, dentre tantos
milhares de outros, os quais essas pessoas estão privadas de acesso.
É uma ilusão descabida pensar que
alguém, em franca luta pela sobrevivência, tenha condições de refletir sobre quantos
filhos deseja ter ou sobre métodos contraceptivos. Pode passar despercebido
para muita gente abastada; mas, milhares de brasileiros morrem, anualmente, sem
acesso algum aos serviços básicos de saúde porque não têm dinheiro para o
transporte, ou condições de agendar consultas, cirurgias e tratamentos por via tecnológica
– telefones, sites, aplicativos, ou possibilidade de aguardar em longas e
demoradas filas de espera.
Aliás, dentro desse próprio
contexto, a Câmara dos Deputados, em Brasília/DF, vem discutindo projetos de
lei sobre o tema da “pobreza menstrual”, que representa a falta de dinheiro
para comprar absorventes higiênicos, impedindo que dezenas de milhares de
mulheres tenham acesso aos seus direitos à educação, ao trabalho e a sua
mobilidade dentro de outros contextos sociais.
Portanto, não há como enxergar
tudo isso por uma perspectiva superficial, como se estivéssemos tratando de um
assunto desimportante. Esse gigantesco iceberg
de desigualdades no campo da Saúde Pública, que, no fim das contas, impacta
severamente a Economia e o Desenvolvimento, evidencia obstáculos que transcendem
o que é gratuito e o que não é. Ele revela a face perversa dos extremos, cuja
prática não coaduna a uma teoria que afirma todos iguais.
Qual o sentido, então, de
discutir na mais alta corte sobre a dependência do consentimento do marido para
a esterilização feminina? Temos tanto a fazer em relação ao direito
constitucional à saúde. Afinal, a defesa da vida é cláusula pétrea; mas, não há
como viver, sem acesso à saúde, sem alimentação regular e suficiente, sem
moradia condizente à dignidade humana, sem água e saneamento básico, ...
Assim, estamos diante de um caso
típico de oportunismo, uma situação que mais parece um jeito, torto e equivocado,
de trazer à baila um pretexto para o deleite conservador da sociedade, a partir
de um eventual respaldo jurídico. Afinal, para o grupo reclamante, as mulheres devem
permanecer sob o jugo dos maridos, segundo rezam as velhas cartilhas do
patriarcado nacional.
Simplesmente, porque, apesar de
estarmos no século XXI, há uma resistência em curso, que atua desconsiderando a
contemporaneidade, com o firme propósito de invisibilizar e negar o peso de
todos os papeis sociais que recaem diariamente sobre os ombros femininos e,
para os quais, elas recebem menos ou nada para realizá-los. Por isso, não é à
toa que “pela maior parte da História, ‘anônimo’
foi uma mulher” (Virgínia Woolf – escritora e editora inglesa), a qual
deveria estar sempre pronta a responder “Sim,
senhor!”.