Nem
o fogo pode tudo!
Por
Alessandra Leles Rocha
Desde ontem, após manifestação
popular contra o atual governo federal, uma outra pauta ganhou destaque, quando
um grupo de pessoas ateou fogo em uma estátua do bandeirante Borba Gato, na
zona sul da capital paulista. Bem, ele foi um bandeirante e escravocrata responsável
pela morte de povos indígenas durante a interiorização do território brasileiro.
Correntes favoráveis e
desfavoráveis ao gesto, então, se puseram a apresentar seus argumentos e isso,
em si, é muito positivo porque abre espaço para uma reflexão, a respeito de
questões que repercutem na sociedade brasileira até os dias atuais. No entanto,
embora possa não parecer, todo esse movimento representa algo bastante complexo
para se analisar.
Temos visto no mundo um
descortinar da realidade extremamente oportuno, a partir de conexões
estabelecidas entre o passado e o presente. Questões históricas pertinentes a
diversas sociedades vêm ganhando espaço no debate, na discussão e na reflexão
crítica da população, em decorrência da reverberação que elas desencadeiam,
ainda, hoje. Violências que se desdobram em invisibilização, discriminação e
perda gradativa do espaço e do exercício cidadão.
De modo que esses movimentos visam
propiciar um novo caminho para a humanidade do século XXI. Ora, na medida em
que se reconhece o racismo, a homofobia, a xenofobia, o sexismo, a misoginia e
a aporofobia, como questões trivializadas no cotidiano das sociedades, mas
causadoras de enormes prejuízos de natureza subjetiva e material para uma
parcela bastante representativa de pessoas, torna-se visível as ameaças em
relação ao futuro.
Sim, porque quanto mais se invade
os espaços e os direitos de alguns, mais regalias e privilégios são reafirmados
para outros, os quais tanto não irão querer abrir mão do que já dispõem como,
também, irão querer cada vez mais para si.
O que significa que o acirramento
das desigualdades vai se consolidando rumo à cronificação e, assim, sinalizando
obstáculos ao desenvolvimento da própria sociedade, como já é possível perceber
em várias nações, mundo afora.
Acontece que essas questões estão
além de uma percepção secular. Elas são milenares. Uma passada de olhos pelas
páginas da história mundial para encontrar registros vastos a respeito. O mundo
em que vivemos é só mais um lado desse prisma que se constituiu, em linhas
gerais, por dominados e dominadores. De modo que mudam os cenários e as
personagens; mas, o enredo permanece o mesmo.
Então, me parece pouco
producente, para não afirmar totalmente inútil, ações como a que aconteceu em
São Paulo, ou na Inglaterra, ou nos EUA. Estamos diante da história, uma
construção humana com todos os seus vieses e defeitos; a qual, embora, não
possa ser revivida para ser reescrita, pode possibilitar uma ressignificação
que permita conduzir a sociedade por perspectivas e expectativas melhores e
mais producentes. Aliás, esse é o verdadeiro papel de uma história viva,
aberta, em franca evolução.
Atitudes que negam o diálogo em
busca de um senso comum e renovado, parecem se igualar ao comportamento de
grupos radicais, como o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL ou ISIS,
na tradução do nome em inglês). A partir de 2013, o ISIS vem destruindo sítios
arqueológicos e históricos de civilizações antigas, com o propósito de apagar a
história.
Em 2015, por exemplo, eles destruíram
o Templo de Baal-Shamin, construído na cidade síria de Palmira, por volta do
século II a.C., que era declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Organização
das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), desde 1980. Mas,
também, demoliram o Mosteiro de Mar Elian, construído há mais de 1500 anos, na
cidade síria de al Qaryatain.
E, bem antes desses grupos
radicais islâmicos, em 1933, os nazistas queimaram em praças públicas, de
diversas cidades da Alemanha, obras de escritores alemães consideradas
contrárias ao regime político e ideológico vigente, como se fizessem uma “limpeza
literária”.
Daí a necessidade de reflexão. A
via escolhida para fazer a transformação intelectual e social está equivocada,
no sentido de que ela só reafirma tudo aquilo que se pretende rechaçar. Afinal,
responder às violências com violência nos aproxima, ao contrário de nos afastar,
daqueles que transitaram pela contramão da história.
De certo modo, nos tornamos “bárbaros”
como eles, tentando resolver no grito, na força, na brutalidade, na imposição,
na arbitrariedade. A destruição do objeto, da matéria, do ponto de vista prático
da ressignificação é sempre inútil; porque, a história permanece na dimensão da
sua atemporalidade.
Se quisermos êxito nessa jornada
de metamorfoses sociais será imprescindível traçar caminhos que dialoguem, que
ensinem, que possibilitem desconstruir valores e princípios para edificar
outros novos.
Alternativas que nos coloquem
diante desses símbolos do passado por uma apresentação através de novas referências
informativas, de caráter reflexivo, ou nos traga pela via das palavras -
livros, manuais, artigos -, que contenham adendos nesse sentido, a fim de contribuir
com uma formação histórica contemporânea e atualizada. O importante é que esse
movimento não nos permita esquecer jamais de que “O perigo do passado era que os homens se tornassem escravos. O perigo do
futuro é que os homens se tornem autômatos” (Erich Fromm – psicanalista, filósofo
e sociólogo alemão).