domingo, 25 de julho de 2021

Nem o fogo pode tudo!


Nem o fogo pode tudo!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Desde ontem, após manifestação popular contra o atual governo federal, uma outra pauta ganhou destaque, quando um grupo de pessoas ateou fogo em uma estátua do bandeirante Borba Gato, na zona sul da capital paulista. Bem, ele foi um bandeirante e escravocrata responsável pela morte de povos indígenas durante a interiorização do território brasileiro.

Correntes favoráveis e desfavoráveis ao gesto, então, se puseram a apresentar seus argumentos e isso, em si, é muito positivo porque abre espaço para uma reflexão, a respeito de questões que repercutem na sociedade brasileira até os dias atuais. No entanto, embora possa não parecer, todo esse movimento representa algo bastante complexo para se analisar.

Temos visto no mundo um descortinar da realidade extremamente oportuno, a partir de conexões estabelecidas entre o passado e o presente. Questões históricas pertinentes a diversas sociedades vêm ganhando espaço no debate, na discussão e na reflexão crítica da população, em decorrência da reverberação que elas desencadeiam, ainda, hoje. Violências que se desdobram em invisibilização, discriminação e perda gradativa do espaço e do exercício cidadão.

De modo que esses movimentos visam propiciar um novo caminho para a humanidade do século XXI. Ora, na medida em que se reconhece o racismo, a homofobia, a xenofobia, o sexismo, a misoginia e a aporofobia, como questões trivializadas no cotidiano das sociedades, mas causadoras de enormes prejuízos de natureza subjetiva e material para uma parcela bastante representativa de pessoas, torna-se visível as ameaças em relação ao futuro.

Sim, porque quanto mais se invade os espaços e os direitos de alguns, mais regalias e privilégios são reafirmados para outros, os quais tanto não irão querer abrir mão do que já dispõem como, também, irão querer cada vez mais para si.

O que significa que o acirramento das desigualdades vai se consolidando rumo à cronificação e, assim, sinalizando obstáculos ao desenvolvimento da própria sociedade, como já é possível perceber em várias nações, mundo afora.

Acontece que essas questões estão além de uma percepção secular. Elas são milenares. Uma passada de olhos pelas páginas da história mundial para encontrar registros vastos a respeito. O mundo em que vivemos é só mais um lado desse prisma que se constituiu, em linhas gerais, por dominados e dominadores. De modo que mudam os cenários e as personagens; mas, o enredo permanece o mesmo.

Então, me parece pouco producente, para não afirmar totalmente inútil, ações como a que aconteceu em São Paulo, ou na Inglaterra, ou nos EUA. Estamos diante da história, uma construção humana com todos os seus vieses e defeitos; a qual, embora, não possa ser revivida para ser reescrita, pode possibilitar uma ressignificação que permita conduzir a sociedade por perspectivas e expectativas melhores e mais producentes. Aliás, esse é o verdadeiro papel de uma história viva, aberta, em franca evolução.

Atitudes que negam o diálogo em busca de um senso comum e renovado, parecem se igualar ao comportamento de grupos radicais, como o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIL ou ISIS, na tradução do nome em inglês). A partir de 2013, o ISIS vem destruindo sítios arqueológicos e históricos de civilizações antigas, com o propósito de apagar a história.

Em 2015, por exemplo, eles destruíram o Templo de Baal-Shamin, construído na cidade síria de Palmira, por volta do século II a.C., que era declarado Patrimônio Mundial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), desde 1980. Mas, também, demoliram o Mosteiro de Mar Elian, construído há mais de 1500 anos, na cidade síria de al Qaryatain.

E, bem antes desses grupos radicais islâmicos, em 1933, os nazistas queimaram em praças públicas, de diversas cidades da Alemanha, obras de escritores alemães consideradas contrárias ao regime político e ideológico vigente, como se fizessem uma “limpeza literária”.

Daí a necessidade de reflexão. A via escolhida para fazer a transformação intelectual e social está equivocada, no sentido de que ela só reafirma tudo aquilo que se pretende rechaçar. Afinal, responder às violências com violência nos aproxima, ao contrário de nos afastar, daqueles que transitaram pela contramão da história.

De certo modo, nos tornamos “bárbaros” como eles, tentando resolver no grito, na força, na brutalidade, na imposição, na arbitrariedade. A destruição do objeto, da matéria, do ponto de vista prático da ressignificação é sempre inútil; porque, a história permanece na dimensão da sua atemporalidade.

Se quisermos êxito nessa jornada de metamorfoses sociais será imprescindível traçar caminhos que dialoguem, que ensinem, que possibilitem desconstruir valores e princípios para edificar outros novos.

Alternativas que nos coloquem diante desses símbolos do passado por uma apresentação através de novas referências informativas, de caráter reflexivo, ou nos traga pela via das palavras - livros, manuais, artigos -, que contenham adendos nesse sentido, a fim de contribuir com uma formação histórica contemporânea e atualizada. O importante é que esse movimento não nos permita esquecer jamais de que “O perigo do passado era que os homens se tornassem escravos. O perigo do futuro é que os homens se tornem autômatos” (Erich Fromm – psicanalista, filósofo e sociólogo alemão).