sexta-feira, 23 de julho de 2021

Entre o hoje e as reminiscências do verão passado

Entre o hoje e as reminiscências do verão passado

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos é sempre uma oportunidade renovada de lançar um olhar sobre a história do mundo. Afinal de contas, nem tudo são flores na trajetória de cada nação presente. As rivalidades geopolíticas, as diferenças religiosas, as disputas de poder, as heranças de guerras, tudo está, ainda que, de maneira implícita, presente nas quadras, nos ginásios, nas piscinas, nos estádios, temporariamente pacificado pelas práticas desportivas. O que nos faz pensar que a história supera; mas, não apaga os registros.

Haja vista, o que aconteceu com o próprio diretor artístico desses Jogos Olímpicos. Ele foi demitido, a menos de 24 horas, antes do evento, em razão de uma “piada” feita há mais de duas décadas sobre o Holocausto. E apesar da manifestação pública de desculpas, as consequências estavam consumadas.

Então, de repente, tracei um paralelo dessa reflexão com o conturbado dia de ontem, no Brasil. A efervescência política, dos últimos tempos, ganhou um capítulo a mais, cujos desdobramentos tendem a se reverberar além. Porque a história supera; mas, não apaga os registros. Esse é o ponto.

Há um engano em se pensar que o jornal de hoje vai para o lixo amanhã e tudo cai no mar do esquecimento. A história é sempre maior, na medida em que os registros, também, são. Quando menos se espera, um fato vem à tona por meio de um acervo particular, de algum colecionador, e as memórias são reativadas por sucessivos debates, análises e discussões. Discursos e narrativas que podem concordar ou discordar entre si; mas, no fim das contas, não conseguem desconstruir ou reformular o fato em si. Portanto é ele o que importa, o fato.

Quando o Presidente da República admitiu, de viva-voz, que sua essência política sempre esteve atrelada ao chamado “Centrão”, enumerando todos os partidos aos quais havia sido filiado e negando qualquer caráter pejorativo a essas alianças, a perplexidade geral roubou a cena.

De súbito, imprensa e boa parte da população se lembraram do posicionamento totalmente contrário do Presidente, sobre esse assunto, durante a sua campanha presidencial em 2018, a qual se resumia em fazer uma “nova política”. Traduzindo em miúdos, seria o fim das velhas práxis fisiológicas do Congresso Nacional.

Não seriam mais aceitas, portanto, certas condutas de representantes e servidores públicos, com vistas à satisfação de interesses e vantagens pessoais e/ou partidárias, em prejuízo dos interesses da população e do país. Algo comumente atribuído a esse grupo de partidos, cujo poder de força, quando contrariados, pode ser suficientemente capaz de inviabilizar a governança do país, como ocorrido algumas vezes no passado recente.

Uma retórica que, tivessem os eleitores não se esquecido de que “a história é para sempre”, teria sido confrontada e desmentida, resultando, quem sabe, em outro final para o pleito de 2018. Mas, eis que, agora, os registros comprobatórios desse “antes” e “depois” se proliferaram, na velocidade das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). E as tentativas de reescrever a narrativa ficaram cada vez menos sustentáveis e factíveis.

Aliás, o poeta português Eugénio Andrade tinha razão, “as palavras são a nossa condenação. Com palavras se ama, com palavras se odeia. E, suprema irrisão, ama-se e odeia-se com as mesmas palavras! ”. Porque o desconforto impresso pela tentativa de “desdizer” é terrível; como se propagasse em ondas de insatisfação e de incompreensão entre os que recebem a notícia.

Episódios assim têm sido cada vez mais frequentes na contemporaneidade. As pessoas dizem e desdizem como se fosse tudo muito natural, sem consequências. Só que não; quando menos se espera a verborragia cobra o seu preço.

Acostumados a se valer de recortes para atenuar as consequências do que foi dito e/ou feito, ou para trazer uma eventual credibilidade ou popularidade, talvez, tenham se esquecido de que sempre haverá registros íntegros, inteiros, completos, com alguém, em algum lugar. Ora, são tempos de alta tecnologia, de nuvens e nuvens de informação, prontas a trazer raios e trovões.

Mas, vejam que, bem antes disso, Mário Juruna, líder e primeiro deputado federal indígena, já andava pelos corredores do Congresso Nacional com um gravador “para registrar tudo o que o branco dizia”, como forma de documentar o descumprimento dos compromissos assumidos pelas autoridades.

Por essa razão ficou conhecido, nacional e internacionalmente, e tornou-se responsável pela criação da Comissão Permanente do Índio no Congresso Nacional, o que significou elevar o problema indígena ao reconhecimento formal. Imagina, então, hoje com tantos recursos tecnológicos em mãos!

Pois é, em pleno século XXI, os excessos de visibilidade, de publicidade, de notoriedade, parecem tão triviais; mas, escondem um abismo de exposições bastante desafiadoras. 15 minutos de fama são suficientes para render bem mais do que apoio, parceria ou dinheiro. Podem gerar uma dor de cabeça sem fim; na medida em que podem enovelar uma rede de mentiras, de intrigas, de mal-entendidos e de tantas outras “cositas más”. Afinal, sejam anônimos ou famosos, qualquer pessoa deve sempre “pensar que a história supera; mas, não apaga os registros”.