Entre o hoje e as reminiscências do verão passado
Por
Alessandra Leles Rocha
A cerimônia de abertura dos Jogos
Olímpicos é sempre uma oportunidade renovada de lançar um olhar sobre a
história do mundo. Afinal de contas, nem tudo são flores na trajetória de cada
nação presente. As rivalidades geopolíticas, as diferenças religiosas, as
disputas de poder, as heranças de guerras, tudo está, ainda que, de maneira implícita,
presente nas quadras, nos ginásios, nas piscinas, nos estádios, temporariamente
pacificado pelas práticas desportivas. O que nos faz pensar que a história
supera; mas, não apaga os registros.
Haja vista, o que aconteceu com o
próprio diretor artístico desses Jogos Olímpicos. Ele foi demitido, a menos de
24 horas, antes do evento, em razão de uma “piada”
feita há mais de duas décadas sobre o Holocausto. E apesar da manifestação pública
de desculpas, as consequências estavam consumadas.
Então, de repente, tracei um
paralelo dessa reflexão com o conturbado dia de ontem, no Brasil. A efervescência
política, dos últimos tempos, ganhou um capítulo a mais, cujos desdobramentos
tendem a se reverberar além. Porque a história supera; mas, não apaga os registros.
Esse é o ponto.
Há um engano em se pensar que o
jornal de hoje vai para o lixo amanhã e tudo cai no mar do esquecimento. A história
é sempre maior, na medida em que os registros, também, são. Quando menos se
espera, um fato vem à tona por meio de um acervo particular, de algum
colecionador, e as memórias são reativadas por sucessivos debates, análises e
discussões. Discursos e narrativas que podem concordar ou discordar entre si;
mas, no fim das contas, não conseguem desconstruir ou reformular o fato em si. Portanto
é ele o que importa, o fato.
Quando o Presidente da República
admitiu, de viva-voz, que sua essência política sempre esteve atrelada ao chamado
“Centrão”, enumerando todos os
partidos aos quais havia sido filiado e negando qualquer caráter pejorativo a
essas alianças, a perplexidade geral roubou a cena.
De súbito, imprensa e boa parte
da população se lembraram do posicionamento totalmente contrário do Presidente,
sobre esse assunto, durante a sua campanha presidencial em 2018, a qual se
resumia em fazer uma “nova política”.
Traduzindo em miúdos, seria o fim das velhas práxis fisiológicas do Congresso
Nacional.
Não seriam mais aceitas,
portanto, certas condutas de representantes e servidores públicos, com vistas à
satisfação de interesses e vantagens pessoais e/ou partidárias, em prejuízo dos
interesses da população e do país. Algo comumente atribuído a esse grupo de
partidos, cujo poder de força, quando contrariados, pode ser suficientemente
capaz de inviabilizar a governança do país, como ocorrido algumas vezes no
passado recente.
Uma retórica que, tivessem os
eleitores não se esquecido de que “a
história é para sempre”, teria sido confrontada e desmentida, resultando,
quem sabe, em outro final para o pleito de 2018. Mas, eis que, agora, os
registros comprobatórios desse “antes”
e “depois” se proliferaram, na
velocidade das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs). E as tentativas
de reescrever a narrativa ficaram cada vez menos sustentáveis e factíveis.
Aliás, o poeta português Eugénio
Andrade tinha razão, “as palavras são a
nossa condenação. Com palavras se ama, com palavras se odeia. E, suprema
irrisão, ama-se e odeia-se com as mesmas palavras! ”. Porque o desconforto impresso
pela tentativa de “desdizer” é
terrível; como se propagasse em ondas de insatisfação e de incompreensão entre
os que recebem a notícia.
Episódios assim têm sido cada vez
mais frequentes na contemporaneidade. As pessoas dizem e desdizem como se fosse
tudo muito natural, sem consequências. Só que não; quando menos se espera a
verborragia cobra o seu preço.
Acostumados a se valer de recortes
para atenuar as consequências do que foi dito e/ou feito, ou para trazer uma
eventual credibilidade ou popularidade, talvez, tenham se esquecido de que sempre
haverá registros íntegros, inteiros, completos, com alguém, em algum lugar. Ora,
são tempos de alta tecnologia, de nuvens e nuvens de informação, prontas a
trazer raios e trovões.
Mas, vejam que, bem antes disso,
Mário Juruna, líder e primeiro deputado federal indígena, já andava pelos corredores
do Congresso Nacional com um gravador “para
registrar tudo o que o branco dizia”, como forma de documentar o
descumprimento dos compromissos assumidos pelas autoridades.
Por essa razão ficou conhecido,
nacional e internacionalmente, e tornou-se responsável pela criação da Comissão
Permanente do Índio no Congresso Nacional, o que significou elevar o problema
indígena ao reconhecimento formal. Imagina, então, hoje com tantos recursos tecnológicos
em mãos!
Pois é, em pleno século XXI, os
excessos de visibilidade, de publicidade, de notoriedade, parecem tão triviais;
mas, escondem um abismo de exposições bastante desafiadoras. 15 minutos de fama
são suficientes para render bem mais do que apoio, parceria ou dinheiro. Podem gerar
uma dor de cabeça sem fim; na medida em que podem enovelar uma rede de
mentiras, de intrigas, de mal-entendidos e de tantas outras “cositas más”. Afinal, sejam anônimos ou
famosos, qualquer pessoa deve sempre “pensar
que a história supera; mas, não apaga os registros”.