segunda-feira, 22 de março de 2021

A cidadania do alto da árvore


A cidadania do alto da árvore

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

Acostumada a ouvir que “só os céus são o limite para o conhecimento”, eis que fui surpreendida por uma notícia que estabelece outras maneiras de pensar a respeito. Trata-se da história de um jovem garoto paraense que precisa subir no alto de uma árvore para conseguir um sinal de internet melhor e, assim, poder acompanhar as aulas durante o período da Pandemia 1. De fato, algo surpreendente.

E poderíamos debulhar uma série de adjetivos enaltecedores sobre a iniciativa dele, parabenizando-o pelo esforço notável. Não seria errado e nem inconveniente fazê-lo; pois, a situação mais que sustenta tais atitudes. Entretanto, esse não deixa de ser um olhar superficial e tendenciosamente comodista em relação à educação brasileira, sempre esperando que um gesto de autonomia seja a razão preponderante do aprendizado humano.

Porém, a educação não deveria caminhar de braços dados com a dificuldade. Aprender e ensinar deveriam vir amparados de toda uma estrutura que lhes é fundamental. Esse é o ponto de partida da chamada “acessibilidade educacional”; ter disponível tudo o que é necessário para garantir a fluidez e a continuidade do processo de ensino-aprendizagem. Então, quando se fala em Brasil, esse país de dimensão continental, se descobre a existência de inúmeras camadas para consolidar esse processo.  

Se engana quem pensa que os regionalismos são o maior de seus desafios. Não há um padrão a reger a educação, ao ponto de garantir a todos a suficiência de recursos humanos e materiais. Nem todos os professores dispõem de formação continuada, salário compatível à função, transporte adequado para cumprir a jornada de trabalho, enfim ...

Do mesmo modo, os alunos também padecem das insuficiências as suas demandas. Nem todas as escolas podem assim ser chamadas, por conta da precariedade da sua infraestrutura. Nem sempre há merenda equilibrada e nutritiva; oferecida em cantinas bem organizadas e onde todos possam se sentar e se alimentar com tranquilidade. Faltam bibliotecas, laboratórios, quadras de esporte; mas, também, banheiros que atendam as normas de higiene e saúde. Chegar em tempo para as aulas e bem-disposto, pode ser um imenso desafio quando o transporte escolar é de qualidade duvidosa e rotineiramente irregular.

Contudo, o que tem marcado radicalmente as linhas da desigualdade educacional são as Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), em razão da condição tecnológica da própria sociedade. A inacessibilidade digital inaugura uma outra fronteira de exclusão para milhares de alunos, professores e instituições de ensino. A realidade tecnológica que se impõe à sociedade do século XXI, infelizmente, ainda não é acessível a todos, como apontou a pesquisa TIC Domicílios2, em 2020, no Brasil.

De modo que as TICs e suas ferramentas embora estejam cada vez mais próximas das pessoas, isso não ocorre de maneira plena. A inacessibilidade digital no país esbarra diretamente nos custos de aquisição e manutenção dessas tecnologias; mas, encontra seu problema maior no campo educacional, quando alunos e professores não estão familiarizados o suficiente para saber como, quando e por que utilizar tais ferramentas tecnológicas.

Portanto, estamos diante da geografia das desigualdades. Acostumados a pensar a partir do prisma das regiões e classes sociais mais privilegiadas, invisibilizamos o resto do país de maneira, quase que, sumária. E são essas atitudes que naturalizam a imposição contínua de desafios à educação nacional, para depois usá-los como justificativa para parâmetros meritocráticos.

Maneira estranha de desviar o foco da sociedade do peso da carga tributária, a qual deveria ser revertida à constante melhoria e acesso à educação e, no fim das contas, acaba não sendo. No fim, o que se vê são histórias pontuais, como desse garoto no Pará. Crianças e jovens que carregam consigo uma gota de entusiasmo a mais para resistir e persistir na esperança de uma vida melhor que possa vir pelas mãos da educação.  

Não nos esqueçamos de que “o trabalho educativo é o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo” (Demerval Saviani3.

Nesse contexto, histórias como a descrita no início dessa reflexão, ao serem trazidas ao conhecimento público tornam-se motivos de lágrimas, aplausos, perplexidade, entusiasmo... para muitos; mas, não passam, na verdade, de um espelho perverso da realidade cidadã nacional.

Afinal, tendo em vista que “a educação é um processo social, é desenvolvimento. Não é preparação para a vida, é a própria vida” (John Dewey); ao mostrarem de maneira crua como somos tão constitucionalmente desiguais todos os dias, evidenciam como os direitos fundamentais básicos podem ser apresentados de maneira tão distinta na vida de uns e outros.

E se essa trivialização perversa permanece intacta é porque, no fundo, o propósito seja continuar impondo obstáculos à mobilidade social, para não causar o desconforto de aceitar conviver em meio as diferenças e as pluralidades, para que somente alguns possam de fato viver com igualdade, justiça e liberdade.



2 Realizada anualmente desde 2005, a pesquisa TIC Domicílios tem o objetivo de mapear o acesso às TIC nos domicílios urbanos e rurais do país e as suas formas de uso por indivíduos de 10 anos de idade ou mais.https://cetic.br/pesquisa/domicilios/#:~:text=Objetivos%20da%20pesquisa,anos%20de%20idade%20ou%20mais .

3 SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 5.ed. São Paulo: Autores Associados, 1995. p.17.


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