Por
trás da folia
Por
Alessandra Leles Rocha
Admito que nasci desprovida de um
espírito genuinamente folião. Talvez, em razão do hábito da própria família,
menos afeito ao entusiasmo carnavalesco. Talvez, por mim mesma, em uma condição
mais observadora do que participante. O que importa é que o Carnaval, apesar
dessas considerações, nunca me incomodou com sua alegria esfuziante e
incontida. Às vezes, o que me franzia a testa era pensar que, justamente nessa
época do ano, a falta de decoro e respeito ao cidadão acontecia nas
politicagens, na calada da noite. De modo que a quarta-feira sempre chegava
mais adornada de cinzas do que deveria.
Depois da desimportância dada ao
COVID-19 durante os festejos do ano passado, agora tudo está em suspenso. Foi
logo depois do Carnaval, no último choro da cuíca, que a Pandemia explodiu e a
vida virou de cabeça para baixo. O cotidiano foi abruptamente interrompido e
sem sinais concretos de quando uma retomada do seu curso aconteceria. O que se
chamava normalidade se esfacelou e cedeu espaço para uma avalanche de
incertezas diversas. O novo vírus rasgou as fantasias e adereços, bateu seu
surdo fora do compasso, atravessou o samba... E cá estamos, praticamente um ano
depois, em meio à nova realidade que se instalou.
Na linha de frente da Pandemia, a
vida sofreu com todos os sobressaltos no campo da saúde pública; mas, também
padeceu os infortúnios da economia. Desemprego, redução de jornadas e salários,
enfim... trabalhadores de todas as fronteiras laborais viram seu mundo desabar.
O equilíbrio financeiro das famílias foi parar na UTI, também. Principalmente,
daqueles que sobrevivem na informalidade, entre trabalhos eventuais e/ou
temporários. E aí, entra o imenso contingente do Carnaval distribuído em cada
canto desse país.
Sendo eles uma parcela tão
importante e significativa do universo cultural brasileiro, essa crise expôs a
fragilidade a que é submetida a sobrevivência desse setor no país, antes mesmo
do impacto devastador da Pandemia. Trabalhar em Cultura no Brasil é um desafio
para os bravos. Não só pelo desestímulo e carência de reconhecimento do ofício
cultural empreendido; mas, pela limitação de apoio e incentivo para o exercício
dessas atividades.
Como em quaisquer áreas
profissionais, o setor cultural abriga atividades variadas com remunerações,
geralmente, atreladas as propostas de projetos; portanto, instáveis no sentido
de uma paga fixa mês a mês. O que significa que muitos desses trabalhadores
recebem por trabalho realizado e, com a necessidade da aplicação urgente das
medidas sanitárias restritivas, decorrentes do COVID-19, eles ficaram à mercê dos
acontecimentos.
Shows cancelados. Teatros fechados.
Recitais desmarcados. Academias de dança com aulas online. ... Toda a cadeia
cultural foi paralisada ou teve que se adequar ao novo cenário tecnológico para
tentar remediar a situação. Entretanto, muita gente fundamental ficou de fora. Gente
que sobrevive nas coxias, nos bastidores, no sacrifício do trabalho anônimo. O que
inclui essa gente maravilhosa do Carnaval.
Acostumados a pensar na
preparação da folia seguinte, quando o bloco ou a escola ainda passam na
avenida, dessa vez foi diferente. A realidade suspendeu o riso, o sorriso, a
euforia, o trabalho. O tempo era de reaprender, de descobrir um jeito de
superar a Pandemia e sobreviver. Mas a renda dessa gente virou fumaça. Nada das
feijoadas de fim de semana nas quadras das escolas, nada de ensaios para
arrecadar fundos, nada da venda de ingressos, fantasias e abadás, nada... Cada um
teve que cuidar de si do jeito que conseguiu.
De repente a interrupção da folia
esse ano ficou pequena em si mesma, quando se olha para o silencioso abandono da
Cultura nacional. Cada artista e profissional das artes brasileiras permaneceu invisível,
irreconhecível, à margem de sua própria cidadania e dignidade, graças a inação
de uma sociedade que teima em aceitar tudo isso como se fosse perfeitamente
normal.
Que entende a Cultura apenas como
mecanismo de satisfação do seu tédio, algo que existe para lhe servir ao
contrário de interagir e agregar. Por isso,
eles veem com tanto desdém as figuras por trás de cada manifestação artística,
como se desmaterializadas de sua existência, meros produtos de outros produtos.
Em meio ao agora, quando uma nova
ordem de modos e comportamentos se estabelece, ainda que momentaneamente, talvez
seja tempo de refletir sobre a Cultura nacional. Porque ela se estende além do Carnaval,
além das Artes, além de nós, da vida, do tempo e do espaço. Ela é uma tradução
da nossa identidade individual e coletiva.
Como manifestou a poetisa
portuguesa Sophia de Mello Breyner Andresen, “A cultura é uma coisa que, ou está na mentalidade e na vida, ou não
está em parte nenhuma. Não é um objeto de museu, é qualquer coisa de estrutural
na vida humana”.
Somente a partir dessa consciência
é que a sociedade brasileira, enquanto povo, vai conseguir olhar para o
Carnaval ou qualquer outra manifestação artística cultural com o apreço e o
respeito devido. Vai descobrir toda a cultura que existe por trás da Cultura e
lutar para que ela seja vista e reconhecida na pessoa de cada cidadão artista
desse país. Afinal de contas, “Mas de que
adianta sair para festa e voltar para casa sempre com o coração vazio? ”
(Caio Fernando Abreu – escritor brasileiro).