Quando
a invisibilidade social se transforma em banimento
Por
Alessandra Leles Rocha
A forma com a
qual a sociedade marca e dissemina seus valores e princípios nas práticas
discursivas tem aberto cada vez mais espaço para a reflexão em torno de fenômenos
comportamentais bastante inapropriados e questionáveis. Pensando, então, a
respeito, a invisibilidade social me parece um importante exemplo a se
discutir.
Mais do que
tentar não perceber a presença de alguém, como acontece no clip 1 da música “Another day in Paradise”
(1989), de Phil Collins, que trata
sobre a vida de quem vive nas ruas, a invisibilidade social é algo muito mais
profundo, na medida em que tenta negar quaisquer formas de desigualdade no
mundo.
Isso significa
que a invisibilidade contribui, e muito, na construção do racismo estrutural,
na carência de políticas públicas em favor das “minorias”, nas discrepâncias
socioeconômicas, na má distribuição da renda e das oportunidades, enfim... O
que a torna uma zona de conforto e privilégios para alguns poucos enquanto representa
um ato de sobrevivência heroica para uma imensa maioria.
Vemos que a
invisibilidade está sempre na busca de naturalizar, de trivializar, tudo aquilo
que não pode e não deveria jamais sê-lo. Mas, chegado ao ponto de que isso não
seria o suficiente para conter o desconforto social, a saída tem sido o
banimento efetivo, ou seja, a violência como arma de extermínio. Tratam-se de
mecanismos criados para tentar obstaculizar a acessibilidade e a inclusão por
parte de determinados segmentos da sociedade. Quem não se lembra da Chacina da
Candelária (1993), no Rio de Janeiro? Ou o índio Galdino Jesus dos Santos (1997),
em Brasília? E tantos outros casos de uma barbárie indescritível e que, infelizmente,
permanecem ocorrendo país afora, graças ao silêncio de uma omissão conveniente
oriunda da própria sociedade.
No entanto,
cada dia que passa, a diferença no trato, na conduta, evidencia traços de uma
brutalidade ainda maior porque se percebe um aumento no banimento de crianças.
Habitantes de regiões menos favorecidas, elas ficam à mercê nas linhas do fogo
cruzado. São alvejadas em casa, na rua, na escola... ou, simplesmente,
desparecem sem deixar vestígio. Crianças que já eram invisíveis para a
sociedade, quando se permite que cresçam desprovidas da proteção e da
assistência previstas em lei, elas agora são ceifadas de suas famílias, de sua
origem, de sua história. Estereotipadas no rol de seres humanos de 2ª classe. Traçaram
seu futuro antes mesmo que pudessem sonhar.
Aliás, é
fundamental destacar que há um imenso engano em pensar que de condições
adversas só poderia resultar uma sociedade problemática. Não. Esse pensamento é
coisa de quem faz da pobreza e da miséria uma desculpa esfarrapada do seu medo social;
o qual, na verdade, não passa de vergonha por referendar diariamente a
manutenção das desigualdades e não mover um músculo sequer para romper com
tamanho absurdo. Seres humanos são o que são em qualquer lugar, em qualquer
classe social. Está nos estereótipos deturpados o instrumento para legitimar
narrativas preconceituosas e improdutivas.
Diante do
exposto, para que servem, então, a Declaração Universal dos Direitos da Criança
(1959) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13/07/1990)?
Apenas para resguardar uma ínfima parcela delas?! Não. Todas são cidadãs
brasileiras e não pode haver distinção. E como a história começa por elas, é
preciso que essa discussão, também, prossiga com vistas a alcançar os cidadãos
de todas as demais faixas etárias. Pois, segundo Darcy Ribeiro, “O Brasil, último país a acabar com a
escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a classe
dominante enferma de desigualdade, de descaso”.
Em pleno século
XXI não é mais possível crer que pela invisibilidade social e/ou pelo banimento
(extermínio) chegaremos a algum lugar de destaque, de desenvolvimento ou de
progresso. Olhando para a trajetória do mundo fica a pergunta: Quantos muros
foram criados e derrubados até aqui? Não fizeram eles senão esconder temporariamente
as fragmentações que enfraquecem, vulnerabilizam, desacreditam, envergonham a
todos enquanto raça, enquanto espécie? Não nos deixemos, portanto, esquecer
disso, tomando como ponto de partida reflexiva as seguintes palavras: “Triste mundo este que cobre os vestidos e
despe os nus” (Pedro Calderón de la Barca – dramaturgo e poeta espanhol).
1 Phil
Collins – Another Day in Paradise (Official Music Video) - https://www.youtube.com/watch?v=Qt2mbGP6vFI