quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Quando a invisibilidade social se transforma em banimento


Quando a invisibilidade social se transforma em banimento

 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

 

A forma com a qual a sociedade marca e dissemina seus valores e princípios nas práticas discursivas tem aberto cada vez mais espaço para a reflexão em torno de fenômenos comportamentais bastante inapropriados e questionáveis. Pensando, então, a respeito, a invisibilidade social me parece um importante exemplo a se discutir.

Mais do que tentar não perceber a presença de alguém, como acontece no clip 1 da música “Another day in Paradise” (1989), de Phil Collins, que trata sobre a vida de quem vive nas ruas, a invisibilidade social é algo muito mais profundo, na medida em que tenta negar quaisquer formas de desigualdade no mundo.   

Isso significa que a invisibilidade contribui, e muito, na construção do racismo estrutural, na carência de políticas públicas em favor das “minorias”, nas discrepâncias socioeconômicas, na má distribuição da renda e das oportunidades, enfim... O que a torna uma zona de conforto e privilégios para alguns poucos enquanto representa um ato de sobrevivência heroica para uma imensa maioria.

Vemos que a invisibilidade está sempre na busca de naturalizar, de trivializar, tudo aquilo que não pode e não deveria jamais sê-lo. Mas, chegado ao ponto de que isso não seria o suficiente para conter o desconforto social, a saída tem sido o banimento efetivo, ou seja, a violência como arma de extermínio. Tratam-se de mecanismos criados para tentar obstaculizar a acessibilidade e a inclusão por parte de determinados segmentos da sociedade. Quem não se lembra da Chacina da Candelária (1993), no Rio de Janeiro? Ou o índio Galdino Jesus dos Santos (1997), em Brasília? E tantos outros casos de uma barbárie indescritível e que, infelizmente, permanecem ocorrendo país afora, graças ao silêncio de uma omissão conveniente oriunda da própria sociedade.

No entanto, cada dia que passa, a diferença no trato, na conduta, evidencia traços de uma brutalidade ainda maior porque se percebe um aumento no banimento de crianças. Habitantes de regiões menos favorecidas, elas ficam à mercê nas linhas do fogo cruzado. São alvejadas em casa, na rua, na escola... ou, simplesmente, desparecem sem deixar vestígio. Crianças que já eram invisíveis para a sociedade, quando se permite que cresçam desprovidas da proteção e da assistência previstas em lei, elas agora são ceifadas de suas famílias, de sua origem, de sua história. Estereotipadas no rol de seres humanos de 2ª classe. Traçaram seu futuro antes mesmo que pudessem sonhar.

Aliás, é fundamental destacar que há um imenso engano em pensar que de condições adversas só poderia resultar uma sociedade problemática. Não. Esse pensamento é coisa de quem faz da pobreza e da miséria uma desculpa esfarrapada do seu medo social; o qual, na verdade, não passa de vergonha por referendar diariamente a manutenção das desigualdades e não mover um músculo sequer para romper com tamanho absurdo. Seres humanos são o que são em qualquer lugar, em qualquer classe social. Está nos estereótipos deturpados o instrumento para legitimar narrativas preconceituosas e improdutivas.

Diante do exposto, para que servem, então, a Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959) e o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069, de 13/07/1990)? Apenas para resguardar uma ínfima parcela delas?! Não. Todas são cidadãs brasileiras e não pode haver distinção. E como a história começa por elas, é preciso que essa discussão, também, prossiga com vistas a alcançar os cidadãos de todas as demais faixas etárias. Pois, segundo Darcy Ribeiro, “O Brasil, último país a acabar com a escravidão tem uma perversidade intrínseca na sua herança, que torna a classe dominante enferma de desigualdade, de descaso”.

Em pleno século XXI não é mais possível crer que pela invisibilidade social e/ou pelo banimento (extermínio) chegaremos a algum lugar de destaque, de desenvolvimento ou de progresso. Olhando para a trajetória do mundo fica a pergunta: Quantos muros foram criados e derrubados até aqui? Não fizeram eles senão esconder temporariamente as fragmentações que enfraquecem, vulnerabilizam, desacreditam, envergonham a todos enquanto raça, enquanto espécie? Não nos deixemos, portanto, esquecer disso, tomando como ponto de partida reflexiva as seguintes palavras: “Triste mundo este que cobre os vestidos e despe os nus” (Pedro Calderón de la Barca – dramaturgo e poeta espanhol).



1 Phil Collins – Another Day in Paradise (Official Music Video) - https://www.youtube.com/watch?v=Qt2mbGP6vFI