domingo, 26 de janeiro de 2025

Nós e nossa ingênua relativização da contemporaneidade


Nós e nossa ingênua relativização da contemporaneidade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ao contrário do que pensa uma gigantesca parcela da população, a chamada Sociedade de Consumo, não é uma estratégia restrita a fazer a acumulação de capitais, por parte de alguns, e a aquisição de bens, produtos e serviços, por outros. Na verdade, ela vai além, como uma ferramenta de controle e manipulação social.

Por mais que a realidade contemporânea brade, aos quatro cantos do planeta, o seu desejo de liberdade total e irrestrita, isso não é verdade. Por trás de todas as escolhas e decisões tomadas diariamente pelos indivíduos há uma sombra que as direciona, no sentido de destoar, o mínimo possível, do protocolo social estabelecido pelas forças que detêm o poder.

A construção de uma sociedade homogeneizada é um facilitador para a garantia do controle absoluto sobre os indivíduos. E uma das estratégias mais comuns para se atingir esse padrão comum, na contemporaneidade, é o Efeito Manada. Ignorando a própria base identitária, com todas as suas crenças, valores, princípios, sentimentos e emoções, milhões de pessoas são levadas a seguirem o comportamento e as opiniões preestabelecidas para a maioria.

Desse modo se consolida uma tendência homogeneizante, na medida em que não há questionamento, ou crítica, ou discussão, a respeito. Valendo-se do próprio argumento da ausência de tempo, do frenesi contemporâneo, cria-se o convencimento de que tal práxis é ideal; posto que, o indivíduo não precisa pensar por si mesmo, ele pode delegar essa função aos outros. Mas, ao deixar de analisar crítica e reflexivamente a sua própria vida, o mundo em que está inserido, há uma perda da sua dignidade identitária.

O que significa milhões de pessoas induzidas a abdicar da sua autonomia, do seu protagonismo, da sua liberdade. Trata-se de um processo de escravização, submissão, sujeição ou subordinação, no mais profundo das subjetividades humanas. Afinal, isso afeta diretamente a forma de perceber e lidar com os acontecimentos cotidianos, os quais podem estar em franco desalinho às demandas de cada indivíduo.  

De repente, as pessoas parecem adestradas a concordar e a aceitar passivamente, quase que de maneira indolor, as circunstâncias. Porém, as aparências enganam. Na verdade, há um sofrimento colossal, que passa a causar um adoecimento sistêmico na sociedade. Em sua maioria, o que se vê é a ocorrência de diversos tipos de manifestação do comprometimento da saúde mental. Depressão.  Agressividade. Violência. Compulsão alimentar. ... Porque se vive em constante conflito com a natureza identitária.

Ora, dentro desses moldes sociais, a subversão da ordem imposta significa o banimento, o isolamento, o cancelamento, a destruição de reputações, ... E as pessoas tendem a temer o não pertencimento social, uma vez que isso implica na possibilidade de não poder desfrutar normalmente da sua vida. Sobretudo, no campo de trabalho. A construção de rótulos e de estereótipos é altamente nociva para o equilíbrio existencial humano, especialmente, porque costuma não ofertar a possibilidade da sua desconstrução pelo próprio indivíduo.  

Daí o silenciamento estar presente na historicidade humana, desde sempre. A sociedade não costuma lidar muito bem com seus representantes mais questionadores, buscando um modo de silenciá-los de alguma forma.  É assim na família. Na escola. Nos espaços religiosos. No trabalho. No lazer. ... Basta uma pergunta, para que a tensão paire sobre o ambiente. Aliás, a curiosidade sempre foi uma pecha ruim, para muitos. Uma pena, pois não sei o que seria do mundo se a curiosidade não tivesse impulsionado o ser humano a evoluir!

Por essas e por outras, que se torna imprescindível entender a ameaça da banalização, da trivialização, na dinâmica do mundo. De um modo ou de outro, as forças detentoras de poder sempre estiveram imbuídas na elaboração de mecanismos de escravização, submissão, sujeição ou subordinação social, em relação às camadas mais frágeis e vulneráveis. Embora, muitas dessas práxis surjam travestidas por acenos de liberdade e de individualismo.

No entanto, elas só rendem êxito, porque o ser humano não se permite exercitar a alteridade e a empatia. Se colocando sempre em uma posição de pseudossuperioridade, a qual lhe impede de ver a vida exatamente como ela é. Esse olhar equivocado e desvirtuado da realidade, não passa de uma tentativa de se proteger, sem se dar conta de que esse temor advém, muitas vezes, da sua própria negligência coletiva.

Quando silenciamos, aceitamos, referendamos e/ou legitimamos, de alguma maneira, os abusos e violências cometidos contra os direitos humanos, abrimos precedentes perversos e cruéis para que esses nos alcancem também. Martin Luther King Jr. já dizia, “A injustiça em qualquer lugar é uma ameaça à justiça em todo lugar”.

No fim das contas, então, cada um de nós é uma vítima em potencial. O que nos obriga a uma revisão profunda do nosso senso humanitário, fraterno. Não é à toa que Hannah Arendt escreveu, “Em nome de interesses pessoais, muitos abdicam do pensamento crítico, engolem abusos e sorriem para quem desprezam. Abdicar de pensar também é crime”.

Feitas essas breves considerações, podemos dizer que sua síntese pode ser expressa pelas seguintes palavras: “Vivemos tempos sombrios, onde as piores pessoas perderam o medo e as melhores perderam a esperança” (Hannah Arendt). Afinal de contas, “O súdito ideal do governo totalitário não é o nazista convicto nem o comunista convicto, mas aquele para quem já não existe a diferença entre o fato e a ficção” (Hannah Arendt) 1. Portanto, devemos refletir seriamente a respeito dos caminhos homogeneizantes, os quais já sinalizam estar em curso.  


1 ARENDT, H. Origens do totalitarismo. São Paulo: Companhia de Bolso, 2013.