É tempo
de reler o mundo!
Por
Alessandra Leles Rocha
Segundo Coracini (2005), “[...]
se alargarmos a concepção de leitura e a considerarmos uma possibilidade de
perceber o espaço social, então ler passa a significar lançar um olhar à nossa
volta e perceber o que nos rodeia. Isso pode ser feito apenas para confirmar
nossos pontos de vista ou para problematizar, questionar o que, aparentemente,
não pode ou não deve ser questionado...” (p.39) 1.
Assim, é desse ponto de partida que inicio a minha reflexão.
Desde a segunda metade do século
XVIII, quando o mundo se viu imerso na 1ª Revolução Industrial, que alguns
conceitos, tais como progresso, crescimento e urbanização, foram incorporados
ao pensamento populacional cotidiano, a partir de uma percepção sempre permeada
por contornos positivos.
E lá se foram três séculos e
outras Revoluções Industriais sem que esse modus operandi tivesse
acompanhado as transformações do mundo e se ressignificado de maneira mais
realista aos fatos. Temos que lembrar que as palavras têm um peso importante na
dinâmica social, no sentido de promover uma modulação da consciência em relação
aos significados e significâncias.
Nesse contexto, extraindo o
verniz entusiástico que envolveu as palavras progresso, crescimento e
urbanização, foi possível perceber que nem tudo são flores. A realidade
operacionalizada pela industrialização não dispôs de um planejamento adequado e
as mudanças sociais foram profundamente impactantes. Pequenas vilas se tornaram
centros urbanos em um piscar de olhos, trazidas por uma torrente de progressos
que afetou não só as relações sociais como os comportamentos.
Na esteira desse progresso, desse
crescimento, dessa urbanização, chegaram os problemas. Insalubridade ambiental.
Ampliação da diversidade de resíduos. Epidemias e surtos. Escassez de moradia.
Desemprego. Empobrecimento. Vícios. Prostituição. ... O que de certa forma,
dentro daquele recorte temporal e conjuntura social, desconstruiu todo o
discurso romantizado em torno da realidade industrial. Mas, não sendo possível
retroceder no ambicioso projeto expansionista revolucionário, continuaram
levando adiante uma aura de sucesso desenvolvimentista.
Razão pela qual chegamos ao
século XXI nos deparando com pessoas repetindo, com um largo sorriso no rosto,
as maravilhas do progresso, do crescimento e da urbanização. Como se jamais
tivessem visto uma única fotografia cotidiana de São Paulo, Rio de Janeiro,
Belo Horizonte ou Recife. Ou tivessem ouvido falar sobre produção da cidade,
uso e ocupação do solo, acessibilidade arquitetônica, Plano Diretor, conurbação,
regiões metropolitanas e afins.
Não tratar os assuntos da maneira
correta é como olhar para o mundo com lentes cor-de-rosa. Tudo fica lindo,
divino, maravilhoso; mas, só até a página dois. Depois que a ilusão se
transforma em realidade, aí a percepção muda de figura! Porque a primeira ação
promovida pela Revolução Industrial foi a antropização. Para colocar de pé o
grande projeto burguês, o meio ambiente foi alterado pela ação humana para dar
lugar a construção de infraestruturas, de cidades, de áreas para mineração e
agricultura intensiva, ...
De modo que a evolução do ideário
do processo industrial ao expandir suas demandas exerceu um processo
catalizador da antropização. O que subverteu, de pronto, o equilíbrio e a
lógica ecossistêmica dos espaços socioambientais. O progresso, o crescimento e
a urbanização, materializados pela antropização, desencadearam, por exemplo, as
ilhas de calor, a poluição, a inversão térmica, a chuva ácida, as enchentes, os
deslizamentos de terra, a escassez hídrica. Males que as cidades, especialmente
as metrópoles, enfrentam diariamente.
Daí a necessidade de repensar
certos paradigmas. Infelizmente, todo
esse conjunto está por trás do acirramento dos eventos extremos do clima. Esse
mosaico de ações vem desencadeando respostas duras do meio ambiente. Como o
progresso, o crescimento e a urbanização, materializados pela antropização, não
cessam as suas investidas, as consequências tendem, então, a ser cada vez mais
impetuosas e devastadoras. Uma verdadeira queda de braços entre o ser humano e
a natureza.
Portanto, não há o que se falar
de maravilhas sobre o progresso, o crescimento e a urbanização, quando se tem
um país marcado por desigualdades sociais sistêmicas, por insegurança
alimentar, por inacessibilidades diversas, por ameaças naturais intensificadas
pelas ações antrópicas, ... Contrariando as expectativas, a Revolução Industrial
não conseguiu cumprir suas promessas, em nenhum momento da história. Diante
disso, o progresso, o crescimento e a urbanização, no fim das contas, não foram
e nem são garantias de um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) que faça
justiça aos preceitos da dignidade do ser.
1 CORACINI, M. J. R. F. Concepções de Leitura na (Pós-) Modernidade. In: LIMA, R. C. de C. P. (Org.). Leitura: múltiplos olhares. Campinas: Mercado de Letras; São João da Boa Vista: Unifeob, 2005. p.15-44.