sexta-feira, 6 de setembro de 2024

A realidade entre linhas

A realidade entre linhas

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

A incomum nota emitida pela Embaixada dos EUA sobre a suspensão de uma mídia social estadunidense, no Brasil, me parece um lamentável erro.

Ao tomar partido de seu proprietário, um multimilionário naturalizado estadunidense, o país escancara a reflexão sobre a imigração, apontando que há sim, diversos pesos e medidas para o assunto.

Ora, estamos falando de um tema que tem sido pauta central nas eleições à Presidência dos EUA. Embora, outros países também estejam às voltas com a mesma situação.

Mas, o que está em jogo não é a imigração por si só; mas, a existência de um perfil profundamente desigual socioeconomicamente, para analisar o processo migratório.

Lamentavelmente a imigração está sim, condicionada ao “vale quanto pesa”. Indivíduos estabilizados economicamente são recebidos de braços abertos em todo lugar. Mas, aqueles cujas condições são totalmente desfavoráveis para sobrevivência em seus países de origem, esses são rechaçados.

Cada vez mais, o mundo tenta ampliar sua bolha de regalias e privilégios, enquanto milhões de seres humanos são mantidos sob condições de extrema perversidade e crueldade social.

Majoritariamente, a imigração contemporânea é fruto dos deslocamentos forçados fomentados por diversas conjunturas, tais como, guerras, conflitos políticos, pobreza, situações climáticas extremas.

De modo que assuntos privados aos interesses econômicos de um cidadão naturalizado estadunidense são capazes de mover as instituições daquele país, com muito mais veemência, do que a construção de políticas humanitárias internacionais, visando contribuir para diminuição do fluxo migratório global.

Como se a triste realidade da imigração fosse incapaz de fazer frente aos interesses do poder capital. Como se vidas humanas estivessem fadadas a serem categorizadas em importantes e desimportantes. Segundo Adela Cortina, “Não rejeitamos realmente os estrangeiros se são turistas, cantores ou atletas famosos, rejeitamos se eles são pobres, imigrantes, mendigos, sem-teto, mesmo que sejam da própria família”.

É preciso entender que a questão migratória é diretamente proporcional à lógica do imperialismo dos países desenvolvidos. Portanto, quanto mais eles atuam nesse sentido, acirrando as desigualdades dentro dos mais diversos aspectos, mais a migração de pessoas oriundas dos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento aumenta.  

Aliás, o próprio desenvolvimento científico e tecnológico estimulado pelos países desenvolvidos já acena com um futuro de desemprego e/ou precarização do trabalho, que levará a um empobrecimento global sistematizado. O que tende a ser mais um estopim para a intensificação migratória.

Durante décadas os EUA vendeu no cenário internacional o seu “American way of life”, como um símbolo de prosperidade e sucesso; mas, não contou com as reviravoltas do mundo e as consequências e desdobramentos que esse modelo lhe trariam.  Agora, eles não sabem o que fazer com milhares de pessoas cruzando suas fronteiras em busca de um oásis de esperança e sobrevivência.

Em pleno século XVIII, Adam Smith já dizia “Onde há grande propriedade, há grande desigualdade. Para um muito rico, há no mínimo quinhentos pobres, e a riqueza de poucos presume da indigência de muitos”. É sobre isso o que tratam as entrelinhas da nota da Embaixada dos EUA.

Entretanto, não sei se por sorte ou azar deles, elas nos fazem pensar, inclusive, abrindo espaço para o que escreveu Robert Lee Frost, “Antes de construir um muro pergunto sempre quem estou murando e quem estou deixando de fora”. Porque isso diz muito a respeito dos valores e dos princípios que atravessam uma nação.