quinta-feira, 16 de maio de 2024

Tempo de despertar ...


Tempo de despertar ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Já parou para pensar sobre o paradoxo que se estabeleceu entre a saúde mental e a realidade contemporânea? Imagino, que muito pouca gente já pensou sobre isso. Afinal, a grande maioria está tão enovelada pelas teias da contemporaneidade que se encontra distanciada desse tipo de reflexão. Acontece que isso não só é muito sério; mas, extremamente, perigoso.

Vamos e convenhamos que a imersão abrupta em um mundo altamente tecnologizado não foi tão incrivelmente positiva, como apregoaram, por aí. A começar pelo modo como se apropriaram do tempo das pessoas. Pois é, não foram somente as rotinas cotidianas absorvidas pelas tecnologias. O modo de ser, de pensar, de agir, de se divertir, ... todo tempo da vida humana está sob o controle das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs).

Foram criados produtos tecnológicos, com a justificativa de que a vida contemporânea depende deles, e sem muita opção de escolha, o ser humano é levado a adquiri-los. Contudo, você vende o seu tempo e, no combo dessa decisão, sua saúde física, mental, espiritual, afetiva, também. Você nem se dá conta de que a escassez temporal esgarça profundamente os laços existenciais e o (a) aprisiona, cada vez mais, na sua própria bolha. E o resultado desse processo é de uma extrema superficialização da vida, sob diferentes formas e conteúdos.

O que significa que a dependência que os seres humanos vêm apresentando em relação às tecnologias está longe de poder ser negligenciada. No campo da saúde mental, por exemplo, a realidade tecnológica contemporânea tem contribuído significativamente para potencializar diversos transtornos. De modo que o comportamento do ser humano tem dado sinais claros de sua degeneração.  

Não, não falo apenas da exacerbação do ódio, da violência, da agressividade. A ansiedade, a depressão, a compulsão, o abuso de álcool e outros entorpecentes, apontam para um desequilíbrio flagrante nos indivíduos contemporâneos. As tecnologias se tornaram um verdadeiro placebo para a dificuldade que milhões de pessoas têm em transitar pela realidade factual cotidiana, com todas as suas incertezas, tristezas, frustrações e decepções.

Portanto, elas cumprem um papel de distração social, que não passa, na verdade, de um trampolim para uma eterna busca de prazeres fáceis, rápidos e totalmente ineficazes, na tentativa de imunizar as pessoas contra as preocupações, responsabilidades, limites e obrigações, que jamais deixaram de existir no mundo real.

A grande questão é que enquanto milhões de indivíduos pagam por isso e destroem suas vidas, tentando fugir de um imenso vazio existencial, ou do medo imposto pelo discurso de liberdade, ou da tomada de decisões importantes e fundamentais, o universo tecnológico celebra, sem dramas de consciência ou constrangimento, o seu enriquecimento vertiginoso.

E pensando profundamente sobre isso é que me parece estranho certos discursos recentes sobre a influência das Big Techs e das redes sociais na dinâmica social, política e econômica do mundo, quando muitas dessas vozes permanecem idolatrando e propagandeando as inovações tecnológicas sem quaisquer ressalvas ou indicativos de alerta. Será que todo o mal das tecnologias reside somente na figura de certos indivíduos? Será que todo o mal das tecnologias reside nas intenções e/ou nos interesses político-econômicos de certos indivíduos?

Penso que não. O papel das TICs na deterioração cognitiva e intelectual da população; bem como, no seu adoecimento físico e mental, é sim, uma realidade. Haja vista que, em 2015, já se noticiava, por exemplo, que a “Internet faz pessoas se acharem mais inteligentes do que são, diz estudo. Depois de buscas na rede, pessoas superestimam o próprio conhecimento. Há confusão entre o conhecimento real e o que se pode buscar na internet” 1. O que pensar, então, quase uma década depois?

Bom, retornando ao início dessa breve reflexão, a imersão abrupta em um mundo altamente tecnologizado foi, portanto, perversa e cruel. Tomando como ponto de partida o fato de que diversas populações, especialmente em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, não receberam qualquer tipo de letramento digital. A maioria delas não constituiu sequer um domínio técnico das ferramentas digitais. Contudo, o pior é constatar que não foram preparadas para desenvolver uma capacidade de compreender, analisar criticamente e comunicar-se efetivamente nesse novo campo de comunicação.  

Daí não podermos nos espantar com a explosão do efeito manada e das Fake News. Houve negligência em diferentes níveis e proporções. Em relação a negligência quanto ao letramento, essa pode ser justificada de várias formas. Uma delas diz respeito ao objetivo mercantil das TICs. Criar mercados consumidores que pudessem ser continuamente nutridos pelas novidades. Mas, independentemente da perspectiva de análise utilizada, o resultado aponta para o tamanho da desimportância humana na contemporaneidade.

Às vezes, somos produtos. Outras, somos consumidores. Estamos diante de uma desumanização aterrorizante. E o que esse cenário tem causado à nossa identidade, à nossa salubridade, à nossa dignidade, ninguém fala. Portanto, é preciso mudar essa situação.

Não, não tenho qualquer idealismo quanto a uma mudança repentina, e coletiva, na humanidade. Contudo, creio que ela vai sim, acontecer. Na verdade, já acontece. Na displicência do cotidiano, quando emerge da transformação que cada indivíduo é capaz de promover na sua própria vida.

E cada um que se permite mudar, rompe com os grilhões do mundo, porque retoma o seu protagonismo existencial, a sua inteireza. Pois é, a verdadeira liberdade está na mudança. Ela é o traço fundamental da nossa saúde; sobretudo, a mental. E uma mente sã, equilibrada, verdadeiramente consciente, é o ponto de partida para as nossas grandes realizações e conquistas.

Assim, em algum momento, talvez, antes do que se imagina, o mundo terá mudado à revelia de uns e outros, por aí. Porque “A adversidade tem o efeito de despertar talentos que em circunstâncias prósperas teriam continuado adormecidos” (Horácio). Sem contar que “Proibir algo é despertar o desejo” (Michel de Montaigne).