Tempo de
despertar ...
Por Alessandra
Leles Rocha
Já parou para pensar sobre o
paradoxo que se estabeleceu entre a saúde mental e a realidade contemporânea? Imagino,
que muito pouca gente já pensou sobre isso. Afinal, a grande maioria está tão
enovelada pelas teias da contemporaneidade que se encontra distanciada desse
tipo de reflexão. Acontece que isso não só é muito sério; mas, extremamente,
perigoso.
Vamos e convenhamos que a imersão
abrupta em um mundo altamente tecnologizado não foi tão incrivelmente positiva,
como apregoaram, por aí. A começar pelo modo como se apropriaram do tempo das
pessoas. Pois é, não foram somente as rotinas cotidianas absorvidas pelas
tecnologias. O modo de ser, de pensar, de agir, de se divertir, ... todo tempo da
vida humana está sob o controle das Tecnologias da Informação e da Comunicação
(TICs).
Foram criados produtos tecnológicos,
com a justificativa de que a vida contemporânea depende deles, e sem muita
opção de escolha, o ser humano é levado a adquiri-los. Contudo, você vende o
seu tempo e, no combo dessa decisão, sua saúde física, mental, espiritual,
afetiva, também. Você nem se dá conta de que a escassez temporal esgarça
profundamente os laços existenciais e o (a) aprisiona, cada vez mais, na sua própria
bolha. E o resultado desse processo é de uma extrema superficialização da vida,
sob diferentes formas e conteúdos.
O que significa que a dependência
que os seres humanos vêm apresentando em relação às tecnologias está longe de
poder ser negligenciada. No campo da saúde mental, por exemplo, a realidade tecnológica
contemporânea tem contribuído significativamente para potencializar diversos transtornos.
De modo que o comportamento do ser humano tem dado sinais claros de sua
degeneração.
Não, não falo apenas da
exacerbação do ódio, da violência, da agressividade. A ansiedade, a depressão,
a compulsão, o abuso de álcool e outros entorpecentes, apontam para um desequilíbrio
flagrante nos indivíduos contemporâneos. As tecnologias se tornaram um
verdadeiro placebo para a dificuldade que milhões de pessoas têm em transitar
pela realidade factual cotidiana, com todas as suas incertezas, tristezas, frustrações
e decepções.
Portanto, elas cumprem um papel
de distração social, que não passa, na verdade, de um trampolim para uma eterna
busca de prazeres fáceis, rápidos e totalmente ineficazes, na tentativa de imunizar
as pessoas contra as preocupações, responsabilidades, limites e obrigações, que
jamais deixaram de existir no mundo real.
A grande questão é que enquanto milhões
de indivíduos pagam por isso e destroem suas vidas, tentando fugir de um imenso
vazio existencial, ou do medo imposto pelo discurso de liberdade, ou da tomada
de decisões importantes e fundamentais, o universo tecnológico celebra, sem
dramas de consciência ou constrangimento, o seu enriquecimento vertiginoso.
E pensando profundamente sobre
isso é que me parece estranho certos discursos recentes sobre a influência das
Big Techs e das redes sociais na dinâmica social, política e econômica do mundo,
quando muitas dessas vozes permanecem idolatrando e propagandeando as inovações
tecnológicas sem quaisquer ressalvas ou indicativos de alerta. Será que todo o
mal das tecnologias reside somente na figura de certos indivíduos? Será que
todo o mal das tecnologias reside nas intenções e/ou nos interesses político-econômicos
de certos indivíduos?
Penso que não. O papel das TICs na
deterioração cognitiva e intelectual da população; bem como, no seu adoecimento
físico e mental, é sim, uma realidade. Haja vista que, em 2015, já se noticiava,
por exemplo, que a “Internet faz pessoas se acharem mais inteligentes do que
são, diz estudo. Depois de buscas na rede, pessoas superestimam o próprio
conhecimento. Há confusão entre o conhecimento real e o que se pode buscar na
internet” 1. O que pensar, então,
quase uma década depois?
Bom, retornando ao início dessa
breve reflexão, a imersão abrupta em um mundo altamente tecnologizado foi,
portanto, perversa e cruel. Tomando como ponto de partida o fato de que
diversas populações, especialmente em países subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento, não receberam qualquer tipo de letramento digital. A maioria
delas não constituiu sequer um domínio técnico das ferramentas digitais.
Contudo, o pior é constatar que não foram preparadas para desenvolver uma
capacidade de compreender, analisar criticamente e comunicar-se efetivamente
nesse novo campo de comunicação.
Daí não podermos nos espantar com
a explosão do efeito manada e das Fake News. Houve negligência em diferentes níveis
e proporções. Em relação a negligência quanto ao letramento, essa pode ser
justificada de várias formas. Uma delas diz respeito ao objetivo mercantil das
TICs. Criar mercados consumidores que pudessem ser continuamente nutridos pelas
novidades. Mas, independentemente da perspectiva de análise utilizada, o
resultado aponta para o tamanho da desimportância humana na contemporaneidade.
Às vezes, somos produtos. Outras,
somos consumidores. Estamos diante de uma desumanização aterrorizante. E o que
esse cenário tem causado à nossa identidade, à nossa salubridade, à nossa
dignidade, ninguém fala. Portanto, é preciso mudar essa situação.
Não, não tenho qualquer idealismo
quanto a uma mudança repentina, e coletiva, na humanidade. Contudo, creio que
ela vai sim, acontecer. Na verdade, já acontece. Na displicência do cotidiano,
quando emerge da transformação que cada indivíduo é capaz de promover na sua própria
vida.
E cada um que se permite mudar, rompe
com os grilhões do mundo, porque retoma o seu protagonismo existencial, a sua
inteireza. Pois é, a verdadeira liberdade está na mudança. Ela é o traço fundamental
da nossa saúde; sobretudo, a mental. E uma mente sã, equilibrada,
verdadeiramente consciente, é o ponto de partida para as nossas grandes realizações
e conquistas.
Assim, em algum momento, talvez,
antes do que se imagina, o mundo terá mudado à revelia de uns e outros, por aí.
Porque “A adversidade tem o efeito de despertar talentos que em circunstâncias
prósperas teriam continuado adormecidos” (Horácio). Sem contar que “Proibir
algo é despertar o desejo” (Michel de Montaigne).