sexta-feira, 17 de maio de 2024

É a lama. É a lama. ...


É a lama. É a lama. ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Infelizmente, as grandes tragédias brasileiras não desnudam apenas a face da negligência, da incompetência ou do descaso institucional. Elas vão muito além, na medida em que ressaltam as relações históricas de poder e acentuam os traços das desigualdades. E dispor desse olhar para compreender a dinâmica dos acontecimentos é fundamental.

No caso do Rio Grande do Sul, por exemplo, ainda que cidades inteiras tenham sido submersas pelas águas, que diferentes estratos sociais tenham sido afetados, não se pode jamais desconsiderar que as camadas comumente expostas à fragilização e vulnerabilização social são sim, as mais impactadas pela calamidade.

E esse é um ponto importante de análise, porque ele nos permite perceber como o ranço colonial continua ativo no país. Todo o rol de insegurança, de periculosidade, de risco, de inquietude, recai sobre os ombros das parcelas mais desassistidas da sociedade brasileira. Sim, elas estão sempre à mercê da própria sorte!

Por que isso acontece? Em síntese, porque fazem parte da legião dos desimportantes. Daqueles que não têm recursos, não têm posses, não têm poderes e, nem tampouco, influência. São apenas gente que move as engrenagens do país. Mão de obra. Empregado. Serviçal. Que na maioria das vezes, não recebe o suficiente para lhe garantir uma sobrevivência digna.

Então, pensando a partir da perspectiva dessas pessoas, eu comecei a desvendar o caminho da recorrente ausência de uma gestão de risco, no país. Para quem não sabe o que significa, me refiro ao conjunto de atividades que visam gerir e controlar uma dada situação quanto às potenciais ameaças, independentemente da sua manifestação. O que inclui, obviamente, planejar e utilizar recursos humanos e materiais.  

Tem-se falado muito em liberação de recursos, de doações, de salvamento, de abrigos, ... Mas, diante da ausência efetiva de uma gestão de risco, todos os movimentos parecem descoordenados e frágeis mediante a complexidade das conjunturas. Simplesmente, porque não se tem uma linha mestra para guiar a dinâmica dos processos necessários. Até agora, nada de análise do ambiente, de identificação dos riscos (reais e potenciais), de mensuração deles a partir de uma matriz de risco, de proposta de soluções e de plano de monitoramento.

Vejam, o fato de as cidades estarem cobertas de água, da existência de mortos, feridos, desaparecidos, desabrigados e desalojados, da destruição da infraestrutura local, da impossibilidade de trabalho, ... Nada disso impede a construção de uma gestão capaz de minimizar riscos e/ou tratá-los. Ainda que o ideal desse tipo de gestão seja prevenir, é possível construí-la quando o risco já está concretizado.

Assim, até o momento, não se ouviu falar, por exemplo, sobre como pensam em estreitar e intensificar a parceria com os polos científicos 1 do estado, para atuarem na gestão de risco. Ninguém melhor do que essas instituições para munirem os gestores públicos de informações técnicas confiáveis, as quais possibilitem definir as melhores estratégias de ação, dentro de um cenário socioambiental já tão comprometido em seu equilíbrio natural.

Nem sobre como pensam em lidar com os gigantescos volumes de resíduos sólidos que se formaram. Há restos de construção civil (entulho), há resíduos de alimentação, de higiene, hospitalares, que demandam um destino adequado e rápido, para mitigação da contaminação socioambiental. A má gestão desses resíduos implica na proliferação de doenças e vetores, o que possibilita o surgimento de surtos de doenças.

Nem sobre a necessidade de promover o reenquadramento do planejamento urbano e da produção das cidades, dentro de parâmetros sustentáveis para o uso e ocupação do espaço geográfico, ou seja, orientados a partir dos novos cenários de emergência climática global. Inclusive, reavaliando o próprio Plano Diretor, no caso daquelas cidades descritas no artigo 41 da lei n.º 10.257/2001, a qual estabelece as diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências.

Nem sobre propostas para alinhamento das legislações ambientais, especialmente, as municipais e estaduais, aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) 2, cujas ações visam acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima; bem como, garantir que os cidadãos possam desfrutar de paz e de prosperidade em suas vidas. Enfim...

A verdade é que esse comportamento é muito sintomático na história nacional. Quando não se quer fazer, não se quer gastar o dinheiro público com questões alheias aos interesses políticos, não se tem qualquer motivação, ... as autoridades sentam e esperam o tempo passar. Como se a vida, por si só, fosse capaz de resolver as questões. Como se os episódios pudessem cair no esquecimento da opinião pública. Como se as (ir)responsabilidades administrativas pudessem permanecer ocultas a qualquer punição. ...

E com esse pensamento, a ausência de uma gestão de risco acentua não só os dramas das desigualdades, como vulnerabiliza, ainda mais, as minorias sociais. Especialmente, aquelas pertencentes às camadas mais desassistidas. Deixando transparecer o velho ranço da desimportância social brasileira.

Como escreveu Darcy Ribeiro, “A estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e remediados dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde habitualmente a esses antagonismos. Nesse plano, as relações de classes chegam a ser tão infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana entre a massa do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta natural” (O Povo Brasileiro: A formação e o Sentido do Brasil, 1995).

E assim, caro (a) leitor (a), o Brasil se permite transitar pelo curso da história, sobre um mar de lama real e metafórico. Não acredita? O que abstrair de certas notícias, como essas: “Taxa de analfabetismo no Nordeste é o dobro da média do Brasil; na região, 14% não sabem ler e escrever uma carta simples” 3, “Celas inundadas, mais de mil transferidos e interrupção no monitoramento eletrônico: a situação dos presídios no RS”  4, “Quinze quilombos estão totalmente isolados pelas chuvas no RS” 5?  

Lamentavelmente, o Brasil do século XXI permanece convivendo e aceitando a presença das disparidades regionais, raciais, etárias, educacionais, habitacionais, alimentares, econômicas. Lançando parte de seus próprios filhos na lama do descaso, da indiferença, da negligência, do desrespeito.

De modo que, nessa história, que não começou agora; mas, há 500 anos, “O mais grave é que esse abismo não conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres, cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia social, que perpetua a alternidade” (Darcy Ribeiro - O Povo Brasileiro: A formação e o Sentido do Brasil, 1995).



1 Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade Federal do Pampa (Unipampa), Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) – campus Rio Grande do Sul.