É a lama.
É a lama. ...
Por
Alessandra Leles Rocha
Infelizmente, as grandes tragédias
brasileiras não desnudam apenas a face da negligência, da incompetência ou do
descaso institucional. Elas vão muito além, na medida em que ressaltam as
relações históricas de poder e acentuam os traços das desigualdades. E dispor
desse olhar para compreender a dinâmica dos acontecimentos é fundamental.
No caso do Rio Grande do Sul, por
exemplo, ainda que cidades inteiras tenham sido submersas pelas águas, que
diferentes estratos sociais tenham sido afetados, não se pode jamais
desconsiderar que as camadas comumente expostas à fragilização e
vulnerabilização social são sim, as mais impactadas pela calamidade.
E esse é um ponto importante de
análise, porque ele nos permite perceber como o ranço colonial continua ativo
no país. Todo o rol de insegurança, de periculosidade, de risco, de inquietude,
recai sobre os ombros das parcelas mais desassistidas da sociedade brasileira. Sim,
elas estão sempre à mercê da própria sorte!
Por que isso acontece? Em síntese,
porque fazem parte da legião dos desimportantes. Daqueles que não têm recursos,
não têm posses, não têm poderes e, nem tampouco, influência. São apenas gente
que move as engrenagens do país. Mão de obra. Empregado. Serviçal. Que na
maioria das vezes, não recebe o suficiente para lhe garantir uma sobrevivência digna.
Então, pensando a partir da
perspectiva dessas pessoas, eu comecei a desvendar o caminho da recorrente ausência
de uma gestão de risco, no país. Para quem não sabe o que significa, me refiro ao
conjunto de atividades que visam gerir e controlar uma dada situação quanto às
potenciais ameaças, independentemente da sua manifestação. O que inclui, obviamente,
planejar e utilizar recursos humanos e materiais.
Tem-se falado muito em liberação
de recursos, de doações, de salvamento, de abrigos, ... Mas, diante da ausência
efetiva de uma gestão de risco, todos os movimentos parecem descoordenados e frágeis
mediante a complexidade das conjunturas. Simplesmente, porque não se tem uma
linha mestra para guiar a dinâmica dos processos necessários. Até agora, nada
de análise do ambiente, de identificação dos riscos (reais e potenciais), de
mensuração deles a partir de uma matriz de risco, de proposta de soluções e de
plano de monitoramento.
Vejam, o fato de as cidades
estarem cobertas de água, da existência de mortos, feridos, desaparecidos,
desabrigados e desalojados, da destruição da infraestrutura local, da
impossibilidade de trabalho, ... Nada disso impede a construção de uma gestão capaz
de minimizar riscos e/ou tratá-los. Ainda que o ideal desse tipo de gestão seja
prevenir, é possível construí-la quando o risco já está concretizado.
Assim, até o momento, não se
ouviu falar, por exemplo, sobre como pensam em estreitar e intensificar a
parceria com os polos científicos 1 do
estado, para atuarem na gestão de risco. Ninguém melhor do que essas
instituições para munirem os gestores públicos de informações técnicas confiáveis,
as quais possibilitem definir as melhores estratégias de ação, dentro de um
cenário socioambiental já tão comprometido em seu equilíbrio natural.
Nem sobre como pensam em lidar
com os gigantescos volumes de resíduos sólidos que se formaram. Há restos de
construção civil (entulho), há resíduos de alimentação, de higiene, hospitalares,
que demandam um destino adequado e rápido, para mitigação da contaminação socioambiental.
A má gestão desses resíduos implica na proliferação de doenças e vetores, o que
possibilita o surgimento de surtos de doenças.
Nem sobre a necessidade de
promover o reenquadramento do planejamento urbano e da produção das cidades, dentro
de parâmetros sustentáveis para o uso e ocupação do espaço geográfico, ou seja,
orientados a partir dos novos cenários de emergência climática global. Inclusive,
reavaliando o próprio Plano Diretor, no caso daquelas cidades descritas no
artigo 41 da lei n.º 10.257/2001, a qual estabelece as diretrizes gerais da
política urbana e dá outras providências.
Nem sobre propostas para
alinhamento das legislações ambientais, especialmente, as municipais e
estaduais, aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos
pela Organização das Nações Unidas (ONU) 2,
cujas ações visam acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima; bem
como, garantir que os cidadãos possam desfrutar de paz e de prosperidade em
suas vidas. Enfim...
A verdade é que esse
comportamento é muito sintomático na história nacional. Quando não se quer
fazer, não se quer gastar o dinheiro público com questões alheias aos
interesses políticos, não se tem qualquer motivação, ... as autoridades sentam
e esperam o tempo passar. Como se a vida, por si só, fosse capaz de resolver as
questões. Como se os episódios pudessem cair no esquecimento da opinião
pública. Como se as (ir)responsabilidades administrativas pudessem permanecer
ocultas a qualquer punição. ...
E com esse pensamento, a ausência
de uma gestão de risco acentua não só os dramas das desigualdades, como
vulnerabiliza, ainda mais, as minorias sociais. Especialmente, aquelas
pertencentes às camadas mais desassistidas. Deixando transparecer o velho ranço
da desimportância social brasileira.
Como escreveu Darcy Ribeiro, “A
estratificação social separa e opõe, assim, os brasileiros ricos e remediados
dos pobres, e todos eles dos miseráveis, mais do que corresponde habitualmente
a esses antagonismos. Nesse plano, as relações de classes chegam a ser tão
infranqueáveis que obliteram toda comunicação propriamente humana entre a massa
do povo e a minoria privilegiada, que a vê e a ignora, a trata e a maltrata, a
explora e a deplora, como se esta fosse uma conduta natural” (O Povo Brasileiro: A formação e o Sentido do Brasil, 1995).
E assim, caro (a) leitor (a), o
Brasil se permite transitar pelo curso da história, sobre um mar de lama real e
metafórico. Não acredita? O que abstrair de certas notícias, como essas: “Taxa
de analfabetismo no Nordeste é o dobro da média do Brasil; na região, 14% não
sabem ler e escrever uma carta simples” 3,
“Celas inundadas, mais de mil transferidos e interrupção no monitoramento
eletrônico: a situação dos presídios no RS” 4, “Quinze
quilombos estão totalmente isolados pelas chuvas no RS” 5?
Lamentavelmente, o Brasil do
século XXI permanece convivendo e aceitando a presença das disparidades
regionais, raciais, etárias, educacionais, habitacionais, alimentares, econômicas.
Lançando parte de seus próprios filhos na lama do descaso, da indiferença, da negligência,
do desrespeito.
De modo que, nessa história, que
não começou agora; mas, há 500 anos, “O mais grave é que esse abismo não
conduz a conflitos tendentes a transpô-lo, porque se cristalizam num modus
vivendi que aparta os ricos dos pobres, como se fossem castas e guetos. Os privilegiados
simplesmente se isolam numa barreira de indiferença para com a sina dos pobres,
cuja miséria repugnante procuram ignorar ou ocultar numa espécie de miopia
social, que perpetua a alternidade” (Darcy Ribeiro - O Povo Brasileiro: A
formação e o Sentido do Brasil, 1995).
1
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), Universidade
Federal de Pelotas (UFPel), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Universidade
Federal do Pampa (Unipampa), Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Universidade Federal da Fronteira Sul
(UFFS) – campus Rio Grande do Sul.
3 https://g1.globo.com/educacao/noticia/2024/05/17/taxa-de-analfabetismo-no-nordeste-e-o-dobro-da-media-do-brasil-na-regiao-14percent-nao-sabem-ler-e-escrever-uma-carta-simples.ghtml