sábado, 18 de maio de 2024

E ligaram o modo ... CANCELAR!


E ligaram o modo ... CANCELAR!

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Só para constar, não são apenas as celebridades 1 que padecem os infortúnios da práxis do cancelamento. Na verdade, esse é só mais um viés desagradável da tecitura contemporânea, no que diz respeito às relações sociais, em geral.

É uma pena; mas, vivemos tempos demasiadamente narcísicos e como já cantava Caetano Veloso, em 1978, “Narciso acha feio o que não é espelho” 2. Pois é, independentemente de estar escrito ou não, o ser humano decidiu por conta própria que o outro tem que se moldar e caber dentro das suas expectativas, da sua idealização, e ponto final. Bom, mas faltou combinar com a parte interessada!

Gente, cada um é um. Com a sua identidade própria. Com seus gostos e predileções. Com suas crenças, princípios e convicções. Com a sua diversidade e pluralidade existencial. E está tudo certo! É assim mesmo que tem que ser! Aliás, são as nossas singularidades e especificidades que nos fazem destacar pelos caminhos da vida.

Acontece que, agora, todos querem homogeneizar o mundo, colocar limites e fronteiras, segundo a sua própria percepção e interpretação. Se fulano, beltrano ou sicrano destoa um bocadinho que seja da minha idealização, pronto! Já é razão suficiente para lançá-lo ao modo cancelar, anular, apagar, banir. Êpa! Já dizia Coco Chanel, “Ninguém pode viver com horizontes tão estreitos”!

Mas, falando bem sério, esse comportamento significa mais do que uma tentativa de homogeneização social, no fundo, ele representa o absoluto fracasso da civilização, no sentido da convivência e da coexistência humana. Querer igualar, uniformizar, nivelar as pessoas a um mesmo padrão, é a forma mais sutil de dizer que elas não são aceitas ou respeitadas, sendo quem são.  

Daí as relações humanas estarem se tornando tão superficiais, tão efêmeras. Porque não há disposição ou interesse em aceitar o outro como ele realmente é. Como se tivessem esquecido de que todo ser humano é um ser em construção, inacabado, imperfeito, enfim... repleto de virtudes e de defeitos.

Não é à toa que Zygmunt Bauman escreveu “A internet e o Facebook nos tranquilizam e nos dão a sensação de proteção e abrigo, afastando o medo inconsciente de sermos abandonados. Na verdade, muitas vezes você está cercado de pessoas tão solitárias quanto você”.

Mas, eu vou além nesse raciocínio. Mais do que isso, estamos falando de personagens que se moldam ou se ajustam para serem aceitos no mundo virtual. Sim, porque ninguém sabe, exatamente, quem é o outro que está por trás daquele perfil. Ele pode, de repente, estar simplesmente surfando na onda de um “politicamente correto” para conquistar seu pseudopertencimento.

Por isso, “Nós mantemos o amor enquanto ele traz satisfação, depois trocamos para outro que traz mais satisfação ainda”, algo que se traduz dentro de uma nova lógica que diz que “Ninguém pode manter segura sua subjetividade sem reanimar, ressuscitar e recarregar de maneira perpétua as capacidades esperadas e exigidas de uma mercadoria vendável” (Zygmunt Bauman).  

O que se vê, portanto, na práxis do cancelamento é a mais brutal desumanização para fazer emergir a objetificação. E ao ser transformado em uma coisa, pode-se exigir do ser humano que ele satisfaça todas as expectativas e idealizações. Dessa forma, ele está liberado para pertencer ao rol de interesses do outro. Entende, então, por que “Somos permanentemente checados, monitorados, testados, avaliados, apreciados e julgados” (Zygmunt Bauman) 3?

Porque não se pode pertencer à sociedade contemporânea, apresentando qualquer desalinho de afinidade. Andar ostentando a própria identidade se tornou pecado mortal! Não basta vestir a personagem, é preciso incorporá-la até a última gota. Qualquer erro. Qualquer deslize. Qualquer passo em falso. ... E a possibilidade de pertencer ao clube dos escolhidos se esvai por entre os dedos.  

Quem diria! A sensação que se tem, vivendo na contemporaneidade, é que “As pessoas nascem sempre sob o signo errado, e estar no mundo de forma digna significa corrigir dia a dia o próprio horóscopo” (Umberto Eco) 4. É tanto esforço que precisa ser dedicado para conviver e coexistir, nesses tempos (e nesses termos), que é essencial ponderar se vale realmente a pena! Afinal, “A paz interior começa no momento em que você optar por não permitir que outra pessoa ou evento controle suas emoções” (Buda).   



2 SAMPA (1978) – Caetano Veloso - https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/41670/

3 BAUMAN, Z.; YOON, D. Vigilância Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2014. 160p.

4 ECO, U. O pêndulo de Foucault. Rio de Janeiro: Record, 1988. 672p.