quarta-feira, 15 de maio de 2024

Instinto de sobrevivência...


Instinto de sobrevivência...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Certas questões como benevolência, bondade, justiça, paciência, sinceridade, responsabilidade, comprometimento, sabedoria, ... têm transitado por uma percepção, bastante equivocada, da sociedade contemporânea. Na maioria das vezes, são tratadas como via de mão única de ações comportamentais em relação aos outros, quando, na verdade, há em todas elas um caráter de via dupla, que nos associa diretamente nesse processo.

Assim, quando pensamos a respeito de generosidade, de solidariedade, de altruísmo, de fraternidade, de empatia ou de compaixão, por exemplo, deveríamos estar conscientes de que o fato de agirmos movidos por esses sentimentos é um sinal claro de que, no fundo, o fazemos mediante a consciência de que isso nos diz respeito, direta ou indiretamente, também.

Acontece que, na maioria das vezes, esse movimento se dá de maneira prática e sob um olhar temporal seletivo. Como se esses sentimentos estivessem atrelados, basicamente, ao imediatismo do agora. O que significa o impulso do agir, do fazer, do tentar resolver o mais rápido e possível. Sem nos dar oportunidade de uma reflexão mais ampla, mais profunda, mais inteira, do processo em si.

Então, diante dos acontecimentos recentes, da tragicidade socioambiental que se abateu sobre o estado do Rio Grande do Sul, essa reflexão me pareceu fundamental. Aliás, gostaria de salientar que o fato de não estarmos lá, presentes, não significa estarmos à margem dos acontecimentos, eles não nos são indiferentes. Sob o céu de incertezas que a vida nos impõe, aliadas aos prognósticos fundamentados cientificamente a respeito das mudanças climáticas e seus desdobramentos, qualquer um pode sim, ser a próxima bola da vez.

O que significa que nossa benevolência, bondade, justiça, paciência, sinceridade, responsabilidade, comprometimento, sabedoria, generosidade, solidariedade, altruísmo, fraternidade, empatia, compaixão, ... não podem se prender pelo olhar exclusivista do momento atual. Na verdade, todos esses sentimentos precisam abrigar um recorte histórico-temporal que vai muito além do que se possa imaginar.

Infelizmente, não basta o exercício desses sentimentos no ápice da crise, quando milhares de seres humanos estão frágeis, vulneráveis, desprotegidos. É preciso que eles nos movam em direção às lutas que precisam ser empenhadas para dar-lhes a sua verdadeira materialidade. É preciso que eles nos façam pensar no processo da crise.

Por que fomos tão benevolentes e permissivos? Por que nos desviamos dos caminhos da justiça?  Por que nos abstivemos das nossas responsabilidades cidadãs? Por que concordamos em abdicar da sabedoria científica? ... Por que?  É preciso responder, dar a devida vazão a todas essas perguntas. Não se pode silenciar, negar, declinar, diante delas ou de outras tantas.

Percebem, agora, como nossas virtudes precisam extrapolar certas limitações? Benevolência, bondade, justiça, paciência, sinceridade, responsabilidade, comprometimento, sabedoria, generosidade, solidariedade, altruísmo, fraternidade, empatia, compaixão, ... demandam inteireza na sua manifestação, por cada indivíduo. Não dá para se abster das situações, quando elas se agigantam, parecem mais difíceis e/ou insolúveis, lançando-as sobre os ombros de quem possa interessar.

Basta lembrar que viver em sociedade pressupõe que os indivíduos, em todas as suas singularidades, sejam capazes de uma convivência conjunta, ordenada e organizada, consciente e coletivamente, em prol de um denominador comum. Difícil? Sim; mas, não impossível. A verdade é que a compreensão em torno do papel das virtudes é uma voz social extremamente potente.

Quem nunca ouviu falar sobre o peso da opinião pública em assuntos importantes ou fundamentais? Ora, trata-se do impulso delas, levando milhares de pessoas a se manifestar (individual e coletivamente), em favor de algo ou alguém. Haja vista, por exemplo, uma onda de descontentamento entre jovens norte-americanos que tem culminado em manifestações nos campi universitários, nos EUA, contra a guerra em Gaza 1; ou, o caso em que um “Tribunal decide que Suíça violou direitos de idosas ao não conter mudanças climáticas” 2.

O mundo precisa de benevolência, bondade, justiça, paciência, sinceridade, responsabilidade, comprometimento, sabedoria, generosidade, solidariedade, altruísmo, fraternidade, empatia, compaixão, ... em tempo integral. Precisa de reflexão, de análise, de vozes e ações, no contexto do hoje, do amanhã, do depois. Simplesmente, porque é disso que depende a minha, a sua, a nossa sobrevivência e de todos os demais seres vivos.  Nossas virtudes dizem respeito às nossas expectativas e perspectivas em torno da vida.