Entre a
ficção e a realidade ...
Por Alessandra
Leles Rocha
Os ataques orquestrados da ultradireita
internacional, contra o Brasil, só me fazem lembrar da interpretação impecável da
personagem Lex Luthor, por Gene Hackman, em Superman – O filme (1978) 1 e Superman II – A aventura continua
(1980) 2.
Nesses dois filmes emblemáticos, Lex
Luthor se autoproclama “a mente criminosa mais brilhante do século XX” 3. Embora seja um bilionário, suas
atitudes demonstram a sua pequenez e a sua limitação através de uma vaidade exacerbada,
uma arrogância infundada, uma bajulação caricata. Mesmo assim, Luthor é uma
ameaça na medida em que nutre uma obsessão descomunal pelo poder.
Está certo que essa interpretação
estava contextualizada em um outro momento da realidade social contemporânea. Não
havia redes sociais. Não havia polarização política. A divisão do pensamento
social se dava, simplesmente, pela dicotomia entre o bem e o mal. Lex Luthor não
aceitava que ninguém se colocasse no seu caminho, especialmente, o seu
arquirrival, o Super-Homem, “defensor da justiça, da verdade, dos fracos e
oprimidos”.
A vilania era explicitamente
materializada em ações, afinal de contas, eram tempos da Guerra Fria, pairando
sobre o planeta. O peso da linguagem,
como se vê na construção da pós-verdade e na disseminação de Fake News, era um
pouco diferente. A sociedade ainda estava conectada aos fatos, no que diz
respeito ao despertar do posicionamento e das opiniões das pessoas.
Acontece que, de repente, o
desenrolar da contemporaneidade trouxe um novo realinhamento em termos de
canalhice, infâmia, mesquinhez, torpeza ou ultraje. O ser humano não precisa mais
dar a sua cara, se expor na linha de frente dos acontecimentos, bater, chutar,
guerrear como de costume. As mentes criminosas mais brilhantes do século XXI
estão nas sombras, por trás das telas, nas mídias sociais.
A tecnologia trouxe os conflitos
para uma outra arena de embate, o mundo virtual. É desse ponto que a reflexão
deve partir. A vida humana está regida pela pressa, pelo imediatismo, pelo
volume avassalador de informações. O que significa que há um franco
esgarçamento na capacidade analítica e crítica dos indivíduos.
Isso sem contar, que o invólucro
tecnológico encapsulou os indivíduos em bolhas de individualismo, demasiadamente
narcísico, que os arrasta cada vez mais para uma teia de afinidades, a qual seletiviza
de maneira impositiva o que é e o que não é importante. Vivemos tempos de um
efeito manada verdadeiramente desagregador, na medida em que expõe a seguinte
condição: ou está comigo ou está contra mim. Em suma, o ódio está no ar!
Vejam, é preciso pensar nesse
cenário objetivamente. Há método, planejamento, para tudo isso. A tecnologia
tomou de assalto a realidade, a tal ponto, que a commodity mais valiosa é o
tempo. Há máquinas para tudo, ou quase tudo; mas, as 24h do relógio se mostram mais
e mais insuficientes. Somos intensamente pressionados, persuadidos, por estratégias
tecnológicas diversas que desejam capturar nossa atenção e consumir o nosso
tempo.
Esse é o que se pode chamar um
verdadeiro golpe de mestre! Ora, tempo é dinheiro! É nessa ciranda frenética
que somos induzidos a correr, correr, correr, trabalhar, trabalhar, trabalhar,
a fim de pagar e fortalecer o enriquecimento das Big Techs, das mídias
sociais, da indústria tecnológica, enfim. Pois é, vendemos e consumimos o nosso
precioso tempo, muitas vezes, sem se dar conta!
Acontece que essa dinâmica compromete
a suficiência e a eficiência da nossa capacidade cognitiva e intelectual. Estamos
cada vez mais cansados, exaustos, desgastados física, emocional e mentalmente.
Se não há tempo suficiente para realizar atividades essenciais e vitais para a sobrevivência
humana, o que dirá para decantar as informações e construir um conhecimento, uma
sabedoria autônoma e autoral.
Estamos literalmente soterrados
pelo volume de atividades, de afazeres, de compromissos, de notícias, ... Desse
modo, estamos ficando rasos. Meros leitores de títulos e subtítulos, ao invés
de conteúdos na íntegra. Crédulos seguidores do alarmismo disseminado nas redes
sociais.
É assim que milhares de pessoas
caem nas armadilhas dos Lex Luthor contemporâneos. Sem saber exatamente quem,
onde, quando e por quê, elas são induzidas e manipuladas a se colocarem
partidárias e defensoras de questões, as quais não fazem a mínima ideia do que
se trata efetivamente. Tornam-se consumidoras de um ativismo extremista,
radical, que vai às últimas consequências, sem se preocupar em preservar
quaisquer parâmetros éticos, morais e humanitários.
A ideia desse efeito
multiplicador é, simplesmente, garantir legitimidade aos propósitos dos Lex
Luthor contemporâneos. Impor pela força numérica, uma nova ordem social. Não
é à toa que a história da humanidade esteja marcada pela existência de diversas
seitas. Afinal, é disso que estamos tratando. Vez por outra, em nome de diferentes
causas, certos indivíduos promovem a aglutinação de pessoas a fim de professar alguma
ideologia, doutrina ou sistema político, filosófico, contrário ao sistema
dominante.
Tomadas por um sentimento de
liberdade irrestrita de expressão e de opinião, ou de poder de escolha, ou da
descoberta de alguma “verdade absoluta”, essas pessoas se engajam sem maior
resistência. Passando a defender, sem quaisquer questionamentos, as orientações
de suas lideranças. Elas perdem o senso de individualidade, de identidade, para
servir a um interesse coletivo profundamente massificado e aprisionante.
E com pensamentos do tipo “Algumas
pessoas leem ‘Guerra e Paz’ e acham que é um simples romance. Outras pessoas
leem uma embalagem de chiclete e desvendam os segredos do universo” ou “Eu
não quero fazer coisas boas. Quero fazer coisas grandiosas”, que a
personagem Lex Luthor trabalha o inconsciente das pessoas, na perspectiva de
uma realidade que lhes torna vulneráveis a considerar essas palavras como um
verdadeiro arauto de esperança. Assim surge a legião de seguidores.
Ao traçar essa analogia entre a
ficção dos quadrinhos e a realidade atual, de alguma forma, abre-se espaço para
expandir o olhar sobre camadas, ainda obscuras, da sociedade contemporânea. A ficção
sempre possibilita trazer personagens para expiação de nós mesmos, no intuito
de traduzir aspectos não percebidos ou indesejados da própria personalidade humana.
Afinal, como dizia Oscar Wilde, “Nunca
o homem deixa tanto de ser ele mesmo como quando fala por sua própria conta. Fornecei-lhe
uma máscara e logo vos dirá a verdade”.