Nada é, tudo
está ...
Por Alessandra
Leles Rocha
Carl Gustav Jung afirmava que “Sua
visão só ficará clara quando você olhar em seu coração. Quem olha fora, sonha. Quem
olha dentro, desperta”. Verdade! Seja para o bem ou para o mal, nossas
escolhas e decisões são sim, balizadas por aquilo que diz o nosso (in)consciente.
Por isso resolvi tecer algumas
considerações relativas ao negacionismo contemporâneo, com foco no Brasil, tendo
em vista que ele não me parece uma questão irrefletida, um modismo qualquer,
uma teimosia infantiloide. Afinal, como escreveu Clarice Lispector, “Até
cortar os próprios defeitos pode ser perigoso. Nunca se sabe qual é o defeito
que sustenta nosso edifício inteiro”.
E penso eu que o nosso maior
defeito brasileiro é a herança colonial. Pouco mais de 500 anos de história e
permanecemos umbilicalmente ligados a um padrão de organização social, política
e econômica, o qual se permite reafirmar e focalizar nas percepções e experiências
coloniais, como se o mundo não tivesse avançado no seu progresso e
desenvolvimento.
Nesse contexto, um aspecto merece
bastante atenção. O poder rural. Depois do extrativismo vegetal e mineral, a
agropecuária se estabeleceu como carro-chefe da economia nacional e seus
representantes como as figuras de maior influência e poder no país.
Eram os tempos das plantations.
Sim, o sistema de produção agrícola criado no período Mercantilista, entre os
séculos XV e XVIII, que fora implantado pelas metrópoles europeias em suas colônias.
Estamos falando, portanto, de latifúndios voltados para monoculturas, onde o
trabalho era garantido pela força da mão de obra escrava e o propósito era
atender aos interesses do mercado exterior.
Assim, não é difícil perceber que
em essência nada mudou! Houve inovação científica e tecnológica nos modos de
produção, houve mecanização; mas, para por aí. Esse segmento da elite
brasileira se mantém inabalável na manutenção da sua estrutura histórica, à
revelia do que possa manifestar ou indicar a realidade contemporânea.
O recente caso de desmatamento
químico realizado por um pecuarista, na região do Pantanal 1,
diz muito a esse respeito. Desconsiderando quaisquer discussões nacionais ou
internacionais, quaisquer estudos e legislações socioambientais vigentes, a
ideia de destruir áreas de extrema importância ecossistêmica e assim, ampliar os
espaços de pastagem para o gado, explica como esse tipo de episódio culmina em desastres
ambientais de proporções inimagináveis. Como o rastro do extrativismo exploratório
das madeiras de lei, incluindo o pau-brasil, durante as primeiras décadas da
colonização brasileira.
Mas, não é só isso o que perturba
e desconforta! Segundo dados do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania,
“O Brasil registrou, em 2023, o maior número de denúncias de trabalho
escravo e análogo à escravidão da história do país. Segundo a pasta, foram
3.422 denúncias protocoladas em 12 meses” 2.
Fatos que levaram o Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da Secretaria de
Inspeção do Trabalho, a criar um cadastro a respeito, denominado “Lista Suja”
3, o qual indicou que dentre as
atividades econômicas com maior número de empregadores inclusos estão: “trabalho
doméstico (43) 4, cultivo de café
(27) 5, criação de bovinos (22),
produção de carvão (16) e construção civil (12)”.
E enquanto o Ministério da
Agricultura e Pecuária, por meio da Secretaria de Comércio e Relações
Internacionais, divulga que “Os cinco principais setores exportadores do
agronegócio brasileiro em março foram: complexo soja (44,3% de participação nas
exportações do agronegócio brasileiro); carnes (12,8% de participação);
complexo sucroalcooleiro (11,3% de participação); produtos florestais (9,4% de participação);
café (5,7% de participação)” 6, o
Anuário Estatístico da Agricultura Familiar 2023, divulgado pela Confederação
Nacional dos Trabalhadores Rurais Agricultores e Agricultoras Familiares
(Contag), “aponta que a agricultura familiar brasileira é a principal
responsável pelo abastecimento interno, com produtos saudáveis e manejo
sustentável dos recursos ambientais” 7.
Mas, não se pode esquecer,
também, da questão do Marco Temporal, uma tese jurídica na qual os povos indígenas
têm o direito de ocupar apenas as terras que ocupavam ou já disputavam na data
da promulgação da Constituição Federal de 1988. Acontece que “um movimento
capitaneado por parlamentares da bancada ruralista no Senado liderou a
aprovação por 43 votos a favor e 21 contra de um projeto de lei que estabelece
o marco temporal e uma série de outras medidas”, o que segundo parlamentares
governistas, ambientalistas e lideranças indígenas representa um “retrocesso
a 1500 (ano de chegada dos portugueses ao Brasil)” 8.
A verdade é que há muito mais a
se refletir a respeito 9. Acontece
que para essa reflexão é necessária disposição, vontade genuína; posto que,
estamos tratando de pouco mais de 500 anos de história, de questões intrínsecas
à identidade nacional. É difícil desconstruir velhos paradigmas, velhas práxis.
Mas, pouco importa. Independentemente
de mim, de você, do outro, a força das conjunturas é sempre implacável e, no
momento exato, que só ela sabe qual é, não se curvará mais às vontades e
quereres de ninguém.
Quando menos se esperar, o insólito
roubará a cena e mudará o curso da realidade, sem qualquer cerimônia. Por isso,
tenhamos sempre em mente que nada é, tudo está. Esse é o fluxo natural da transitoriedade
do mundo, a vida em si, a grande lição a ser aprendida e respeitada.
1 https://g1.globo.com/fantastico/noticia/2024/04/14/agente-laranja-pecuarista-desmata-o-pantanal-com-substancia-altamente-toxica.ghtml
2 https://g1.globo.com/politica/noticia/2024/01/05/brasil-registrou-maior-numero-de-denuncias-de-trabalho-escravo-da-historia-em-2023-diz-governo.ghtml
3 https://www.gov.br/trabalho-e-emprego/pt-br/noticias-e-conteudo/2024/Abril/mte-atualiza-o-cadastro-de-empregadores-que-submeteram-trabalhadores-a-condicoes-analogas-a-escravidao
4 https://www.terra.com.br/nos/casal-e-condenado-a-mais-de-14-anos-de-prisao-por-manter-domestica-em-trabalho-analogo-a-escravidao,b761b44b913d137e3637fd155cc713511p6cpa4k.html
6 https://www.gov.br/agricultura/pt-br/assuntos/noticias/exportacoes-do-agronegocio-brasileiro-batem-recorde-no-primeiro-trimestre-de-2024-e-atingem-us-37-44-bilhoes/Notaimprensa03_2024ANO.docx#:~:text=Os%20cinco%20principais%20setores%20do,8%25%3B%20produtos%20florestais%2C%20com
7 https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-07/agricultura-familiar-e-8a-maior-produtora-de-alimentos-do-mundo#:~:text=O%20anu%C3%A1rio%20da%20Contag%20aponta,manejo%20sustent%C3%A1vel%20dos%20recursos%20ambientais