Nem só de
dor e sofrimento existe o luto
Por Alessandra
Leles Rocha
Vejo na Paixão de Cristo a
síntese do luto em todas as suas dimensões, as quais ultrapassam os limites ou fronteiras
religiosas, para adquirir o afago e a compreensão emanados pela fé.
Sei que é difícil falar e lidar
com certas temáticas, tais como a perda, a morte, a ausência; sobretudo, para
nós ocidentais. Daí eu considerar a morte do nazareno, algo tão importante e
significativo, do ponto vista em que ela nos permite enxergar e compreender essa
situação inevitável.
Jesus crucificado nos permite
olhar para si e para o outro na perspectiva da finitude, da efemeridade, da
incerteza, que nos acompanha desde sempre. Sob a forma de gente de carne e
osso, não há absolutamente nada que subtraia a nossa vulnerabilidade
existencial. Nascemos e vamos morrer.
Não, não somos infalíveis, indestrutíveis,
imbatíveis ou superpoderosos. Somos apenas seres em elaboração, em construção, em
evolução, que precisam provar do sal e do mel, para caberem na sua identidade,
na sua missão de vida.
Por isso, vida e morte não se
dissociam. Ninguém nasce sabendo exatamente o local, o dia e a hora da partida.
O que demonstra a necessidade de se buscar fazer mais e melhor, antes que as
luzes se apaguem, que as cortinas se fechem, que o silêncio se manifeste.
Um aviso sutil de que a morte deveria
ser sempre o desfecho de uma vida produtiva, proveitosa, útil, profícua. Para desse
modo reduzir o pesar, a tristeza e o desconforto de não ter mais tempo para ser
e realizar. Como foi a vida do Cristo.
Ele viveu pouco, mas
intensamente. Seguiu à risca os seus propósitos. Não deixou nada por fazer. Partiu
leve, sem bagagens, sem amarras.
Ciente de que a vida e a morte
tinham cumprido perfeitamente o seu papel. O que possibilita olhar para o luto
de Cristo de uma perspectiva muito especial.
Todo o repugnante ciclo de
calvário, ao qual Ele foi arbitrariamente submetido, é óbvio que reacende a
dor, a indignação, o inconformismo, ... como em qualquer situação de luto.
Entretanto, na brevidade com que
se estabelece a Páscoa, o momento da ressurreição, do renascimento, é possível assimilar
o luto pelo legado de Cristo.
A vida retorna através da obra e de
seus desdobramentos sobre os que ficaram, sobre o mundo. O luto começa a se
apaziguar, quando as lembranças, as memórias, deslocam a tristeza, a saudade, o
inconformismo, para espaços mais distantes no sentir.
A reverência cristã à Semana
Santa é um ato simbólico de respeito, de reflexão; mas, não, de luto. Afinal de
contas, Cristo vive e convive com a humanidade através da atemporalidade do seu
legado, de modo que Ele participa cotidianamente dos movimentos da vida.
É assim que todos os nossos lutos
deveriam ser experenciados, ou seja, a partir dos legados que nos foram
deixados. Aliás, há uma citação, de autoria desconhecida, que diz “Cada
pessoa que passa em nossa vida, passa sozinha. É porque cada pessoa é única e nenhuma
substitui a outra! Cada pessoa que passa em nossa vida passa sozinha e não nos
deixa só porque deixa um pouco de si e leva um pouquinho de nós. Essa é a mais
bela responsabilidade da vida e a prova de que as pessoas não se encontram por
acaso”.
De modo que, olhando para o luto do
Cristo e todas formas e expressões de luto existentes no mundo, acabo por entender
a necessidade de admitir que há, por trás de todas as lágrimas, dores, angústias
e consternação, um aura de gratidão sublime.
Não esquecer o que de mais belo,
puro e sagrado nos foi deixado, por alguém muito especial, é motivo de profunda
gratidão. É o que dá significado e significância para a existência humana.
Como dizia o jornalista e escritor Caio Fernando Abreu, “Uma pessoa não precisa estar a vida inteira ao seu lado para se tornar única e inesquecível”, simplesmente, porque “Nós não nos lembramos dos dias, nós nos lembramos dos momentos” (Cesare Pavese). Nos lembramos do legado.