sexta-feira, 29 de março de 2024

Nem só de dor e sofrimento existe o luto


Nem só de dor e sofrimento existe o luto

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Vejo na Paixão de Cristo a síntese do luto em todas as suas dimensões, as quais ultrapassam os limites ou fronteiras religiosas, para adquirir o afago e a compreensão emanados pela fé.

Sei que é difícil falar e lidar com certas temáticas, tais como a perda, a morte, a ausência; sobretudo, para nós ocidentais. Daí eu considerar a morte do nazareno, algo tão importante e significativo, do ponto vista em que ela nos permite enxergar e compreender essa situação inevitável.

Jesus crucificado nos permite olhar para si e para o outro na perspectiva da finitude, da efemeridade, da incerteza, que nos acompanha desde sempre. Sob a forma de gente de carne e osso, não há absolutamente nada que subtraia a nossa vulnerabilidade existencial. Nascemos e vamos morrer.

Não, não somos infalíveis, indestrutíveis, imbatíveis ou superpoderosos. Somos apenas seres em elaboração, em construção, em evolução, que precisam provar do sal e do mel, para caberem na sua identidade, na sua missão de vida.

Por isso, vida e morte não se dissociam. Ninguém nasce sabendo exatamente o local, o dia e a hora da partida. O que demonstra a necessidade de se buscar fazer mais e melhor, antes que as luzes se apaguem, que as cortinas se fechem, que o silêncio se manifeste.

Um aviso sutil de que a morte deveria ser sempre o desfecho de uma vida produtiva, proveitosa, útil, profícua. Para desse modo reduzir o pesar, a tristeza e o desconforto de não ter mais tempo para ser e realizar. Como foi a vida do Cristo.

Ele viveu pouco, mas intensamente. Seguiu à risca os seus propósitos. Não deixou nada por fazer. Partiu leve, sem bagagens, sem amarras.

Ciente de que a vida e a morte tinham cumprido perfeitamente o seu papel. O que possibilita olhar para o luto de Cristo de uma perspectiva muito especial.

Todo o repugnante ciclo de calvário, ao qual Ele foi arbitrariamente submetido, é óbvio que reacende a dor, a indignação, o inconformismo, ... como em qualquer situação de luto.

Entretanto, na brevidade com que se estabelece a Páscoa, o momento da ressurreição, do renascimento, é possível assimilar o luto pelo legado de Cristo.

A vida retorna através da obra e de seus desdobramentos sobre os que ficaram, sobre o mundo. O luto começa a se apaziguar, quando as lembranças, as memórias, deslocam a tristeza, a saudade, o inconformismo, para espaços mais distantes no sentir.

A reverência cristã à Semana Santa é um ato simbólico de respeito, de reflexão; mas, não, de luto. Afinal de contas, Cristo vive e convive com a humanidade através da atemporalidade do seu legado, de modo que Ele participa cotidianamente dos movimentos da vida.

É assim que todos os nossos lutos deveriam ser experenciados, ou seja, a partir dos legados que nos foram deixados. Aliás, há uma citação, de autoria desconhecida, que diz “Cada pessoa que passa em nossa vida, passa sozinha. É porque cada pessoa é única e nenhuma substitui a outra! Cada pessoa que passa em nossa vida passa sozinha e não nos deixa só porque deixa um pouco de si e leva um pouquinho de nós. Essa é a mais bela responsabilidade da vida e a prova de que as pessoas não se encontram por acaso”.

De modo que, olhando para o luto do Cristo e todas formas e expressões de luto existentes no mundo, acabo por entender a necessidade de admitir que há, por trás de todas as lágrimas, dores, angústias e consternação, um aura de gratidão sublime.

Não esquecer o que de mais belo, puro e sagrado nos foi deixado, por alguém muito especial, é motivo de profunda gratidão. É o que dá significado e significância para a existência humana.

Como dizia o jornalista e escritor Caio Fernando Abreu, “Uma pessoa não precisa estar a vida inteira ao seu lado para se tornar única e inesquecível”, simplesmente, porque “Nós não nos lembramos dos dias, nós nos lembramos dos momentos” (Cesare Pavese). Nos lembramos do legado.