segunda-feira, 4 de março de 2024

(Des) Humanos


(Des) Humanos

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Cada dia mais me convenço de que a desumanidade é a medida da infelicidade. O desumano nunca é feliz. Aquele que padece os atos maldosos, atrozes, bárbaros, cruéis, impiedosos, também, não. Portanto, ela é triste em si mesma, na ausência de um retorno mais produtivo, mais edificante, mais significativo.

Não é à toa que seja tão fácil percebê-la nos campos da guerra. Pena que não é somente lá! Há desumanidade em toda parte. A grande questão é que ela vem sendo repetidamente relativizada, passando a ser mais ou menos visibilizada, segundo as conveniências, os oportunismos. Afinal de contas, não é fácil admitir que o ser humano possa ir tão fundo na sua ausência de empatia, de alteridade.

O que explica porque razão é mais fácil de perceber os horrores de uma guerra, por exemplo, do que aqueles que ocorrem diariamente nas esquinas da vida. Talvez, porque a matemática da guerra seja mais expressiva. Números de mortos, de armas, de destruições, de mutilados, enfim... Talvez, porque a guerra seja um assunto a ser deliberado por governos e entidades maiores do que os próprios seres humanos. Talvez, por conta da distância geográfica que, por si só, já favorece um álibi de impossibilidade de ação ou intervenção. Enfim...

Enquanto isso, todas as outras desumanidades existentes circulam sem maiores constrangimentos entre nós. Infelizmente, é exatamente isso que se vê acontecer amiúde. Daqui e dali os indivíduos se comportam de maneiras distintas e equivocadas diante da crueldade, da barbárie, da perversidade, da maldade, ... Como se pudesse existir milhões de pesos para outros milhões de medidas, quando o assunto é a desumanidade!

Ora, ela se revela nas mais diversas camadas da dinâmica cotidiana das relações sociais. Ela está na aceitação condescendente com tudo o que fere e ofende à dignidade humana. Miséria. Fome. Precarização do trabalho. Analfabetismo. Evasão escolar. Violência urbana. Racismo. Misoginia. Xenofobia. Etarismo. Aporofobia. Trans e homofobia. ... Em episódios que acontecem a todo instante, no Brasil, no mundo.

Portanto, é o modo como reagimos, ou aceitamos, ou compactuamos, com tamanha insensibilidade, o que define a nossa identidade humanitária. Aliás, Eduardo Galeano tem uma análise muito pertinente, nesse sentido, que diz: “Eu não acredito em caridade, eu acredito em solidariedade. Caridade é tão vertical: vai de cima para baixo. Solidariedade é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A maioria de nós tem muito o que aprender com as outras pessoas”.

De fato, ele tem toda razão. No caso brasileiro, por exemplo, considerando nossa raiz colonial, a ideia da caridade é muito utilizada para mascarar a nossa desumanidade. Basta ver como uma parcela significativa da sociedade se compraz na distribuição de esmolas, de donativos, enquanto abomina quaisquer iniciativas de combate as desigualdades sociais, no país.

Porque, ao que chamam caridade, não passa de um modo de aplacar as suas consciências em relação às suas práxis desumanas, cometidas diariamente. Algo que funciona, de certo modo, como a paga de indulgência. O tributo que é devido pelo seu silêncio, ou sua omissão, ou sua tirania. O que, em linhas gerais, traduz a caridade como um caminho que retroalimenta a indignidade humana, na perspectiva massacrante de uma eterna assimetria social.

De modo que não parece existir outro remédio para a desumanidade senão a solidariedade. Somente quando rompemos com certas dicotomias, do tipo superior e inferior, melhor e pior, importante e desimportante, para nos referirmos uns aos outros, é que percebemos com clareza a essência humana contida em cada indivíduo. Acima de qualquer adjetivação, somos simplesmente seres humanos.

Bem, a linha tênue que separa os indivíduos entre humanos e desumanos pode ser bem exemplificada pelas palavras de José Martí, ou seja, “Quem não se sentir ofendido com a ofensa feita a outros homens, quem não sentir na face a queimadura da bofetada dada noutra face, seja qual for a sua cor, não é digno de ser homem”. Pois elas nos oferecem a possibilidade de compreender que “O pior crime para com os nossos semelhantes não é odiá-los, mas demonstrar-lhes indiferença: é a essência da desumanidade” (George Bernard Shaw).

Mas, se não for o suficiente, leia quantas vezes forem necessárias o poema A Rosa de Hiroshima (1954) 1, de Vinícius de Moraes, ou o escute, na voz dos Secos e Molhados 2. Afinal, tudo ali está tão claro, tão límpido, que o choque de realidade promovido pelas palavras afeta, no mais profundo limite, o nosso senso de (des)humanidade. De repente somos nivelados na consciência da nossa mortalidade, falibilidade, fragilidade e incompletude, à revelia da nossa altivez friamente tirânica.

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