(Des)
Humanos
Por Alessandra
Leles Rocha
Cada dia mais me convenço de que
a desumanidade é a medida da infelicidade. O desumano nunca é feliz. Aquele que
padece os atos maldosos, atrozes, bárbaros, cruéis, impiedosos, também, não. Portanto,
ela é triste em si mesma, na ausência de um retorno mais produtivo, mais
edificante, mais significativo.
Não é à toa que seja tão fácil percebê-la
nos campos da guerra. Pena que não é somente lá! Há desumanidade em toda parte.
A grande questão é que ela vem sendo repetidamente relativizada, passando a ser
mais ou menos visibilizada, segundo as conveniências, os oportunismos. Afinal de
contas, não é fácil admitir que o ser humano possa ir tão fundo na sua ausência
de empatia, de alteridade.
O que explica porque razão é mais
fácil de perceber os horrores de uma guerra, por exemplo, do que aqueles que
ocorrem diariamente nas esquinas da vida. Talvez, porque a matemática da guerra
seja mais expressiva. Números de mortos, de armas, de destruições, de
mutilados, enfim... Talvez, porque a guerra seja um assunto a ser deliberado
por governos e entidades maiores do que os próprios seres humanos. Talvez, por
conta da distância geográfica que, por si só, já favorece um álibi de
impossibilidade de ação ou intervenção. Enfim...
Enquanto isso, todas as outras
desumanidades existentes circulam sem maiores constrangimentos entre nós. Infelizmente,
é exatamente isso que se vê acontecer amiúde. Daqui e dali os indivíduos se
comportam de maneiras distintas e equivocadas diante da crueldade, da barbárie,
da perversidade, da maldade, ... Como se pudesse existir milhões de pesos para
outros milhões de medidas, quando o assunto é a desumanidade!
Ora, ela se revela nas mais
diversas camadas da dinâmica cotidiana das relações sociais. Ela está na
aceitação condescendente com tudo o que fere e ofende à dignidade humana.
Miséria. Fome. Precarização do trabalho. Analfabetismo. Evasão escolar.
Violência urbana. Racismo. Misoginia. Xenofobia. Etarismo. Aporofobia. Trans e
homofobia. ... Em episódios que acontecem a todo instante, no Brasil, no mundo.
Portanto, é o modo como reagimos,
ou aceitamos, ou compactuamos, com tamanha insensibilidade, o que define a
nossa identidade humanitária. Aliás, Eduardo Galeano tem uma análise muito
pertinente, nesse sentido, que diz: “Eu não acredito em caridade, eu
acredito em solidariedade. Caridade é tão vertical: vai de cima para baixo. Solidariedade
é horizontal: respeita a outra pessoa e aprende com o outro. A maioria de nós
tem muito o que aprender com as outras pessoas”.
De fato, ele tem toda razão. No
caso brasileiro, por exemplo, considerando nossa raiz colonial, a ideia da
caridade é muito utilizada para mascarar a nossa desumanidade. Basta ver como
uma parcela significativa da sociedade se compraz na distribuição de esmolas,
de donativos, enquanto abomina quaisquer iniciativas de combate as
desigualdades sociais, no país.
Porque, ao que chamam caridade,
não passa de um modo de aplacar as suas consciências em relação às suas práxis desumanas,
cometidas diariamente. Algo que funciona, de certo modo, como a paga de indulgência.
O tributo que é devido pelo seu silêncio, ou sua omissão, ou sua tirania. O que,
em linhas gerais, traduz a caridade como um caminho que retroalimenta a
indignidade humana, na perspectiva massacrante de uma eterna assimetria social.
De modo que não parece existir
outro remédio para a desumanidade senão a solidariedade. Somente quando rompemos
com certas dicotomias, do tipo superior e inferior, melhor e pior, importante e
desimportante, para nos referirmos uns aos outros, é que percebemos com clareza
a essência humana contida em cada indivíduo. Acima de qualquer adjetivação, somos
simplesmente seres humanos.
Bem, a linha tênue que separa os indivíduos
entre humanos e desumanos pode ser bem exemplificada pelas palavras de José
Martí, ou seja, “Quem não se sentir ofendido com a ofensa feita a outros
homens, quem não sentir na face a queimadura da bofetada dada noutra face, seja
qual for a sua cor, não é digno de ser homem”. Pois elas nos oferecem a
possibilidade de compreender que “O pior crime para com os nossos semelhantes
não é odiá-los, mas demonstrar-lhes indiferença: é a essência da desumanidade”
(George Bernard Shaw).
Mas, se não for o suficiente, leia
quantas vezes forem necessárias o poema A Rosa de Hiroshima (1954) 1, de Vinícius de Moraes, ou o escute, na
voz dos Secos e Molhados 2. Afinal,
tudo ali está tão claro, tão límpido, que o choque de realidade promovido pelas
palavras afeta, no mais profundo limite, o nosso senso de (des)humanidade. De
repente somos nivelados na consciência da nossa mortalidade, falibilidade, fragilidade
e incompletude, à revelia da nossa altivez friamente tirânica.