A atemporalidade
da estereotipização feminina
Por Alessandra
Leles Rocha
Diante da citação de Gilberto
Freyre, “A civilização do açúcar teve suas santas; suas mulheres, grandes
sofredoras, que humilhadas, repugnadas, maltratadas, criaram filhos numerosos,
às vezes os seus e os das outras mulheres mais felizes que elas; cuidaram das
feridas dos escravos; dos negros velhos; dos moradores doentes dos engenhos. (...)
Teve as suas Dona Mariazinhas, Donas Francisquinhas, Donas Mariquinhas que
desde meninas, desde a Primeira Comunhão, não fizeram senão cuidar dos maridos,
dos filhos, dos escravos, dos santos” (Nordeste, 1937), foi impossível não
traçar uma reflexão sobre o papel da mulher na sociedade brasileira.
Para uns e outros pode não
parecer; mas, essa citação é totalmente atemporal. Ainda que propicie um olhar
bastante atrelado à gênese colonial brasileira, no mais profundo de sua essência,
essa não é uma imagem idealizada da mulher; mas, um retrato de como ela aparece
no imaginário coletivo nacional.
Sim, “a bela, recatada e do
lar” é a marca impressa no DNA feminino brasileiro, apesar de todas as idas
e vindas do tempo em transformação. Afinal, foi essa a construção histórica
dessa figura tão importante.
Você pode virar daqui mexer dali
trazer à tona todos os avanços e conquistas femininas ao longo dos séculos;
mas, palavras como santas, sofredoras, humilhadas, repugnadas, maltratadas,
cuidadoras, permanecem compondo as mais recentes contextualizações sobre as
mulheres brasileiras.
Talvez, não ditas tão
explicitamente; mas, muito bem subentendidas nas entrelinhas dos registros
sociais. Especialmente, daqueles em que elas aparecem como vítimas frequentes
das violências; sobretudo, as contemporâneas.
Ora, não é fácil de desconstruir ideias
tão arraigadas quanto aquelas que permeiam a objetificação feminina. Por mais
lamentável que seja, mulheres ainda permanecem, de um jeito ou de outro,
figurando sob o estereótipo de propriedade dos homens, em um universo onde eles
mandam e desmandam, queiramos ou não admitir.
Apesar dos anos de escolaridade a
mais, das sucessivas demonstrações de competências e habilidades profissionais
diversas, basta um senão qualquer para que sejam abruptamente desqualificadas, invisibilizadas,
marginalizadas.
Pois, ainda que o mundo contemporâneo
saiba que não pode renunciar aos talentos, a força, a capacidade produtiva
feminina, soa desconfortável e indigesta a ideia de trazê-las a um patamar de
equidade e igualdade social efetivamente real.
Aliás, a impressão que se tem é
de que muitos gostariam de usufruir dos resultados da participação social
feminina; mas, tendo absoluto controle e vigilância sobre o seu modo de
desempenho das funções. Algo do tipo, voe; mas, não tão alto, não tão livre!
De modo que, por mais obstinadas
a tecer uma realidade diferente para suas vidas, muitas acabam rendidas diante
dos obstáculos presentes em seu caminho. Aliás, vale ressaltar que não são quaisquer
embaraços.
Do ponto de vista objetivo ou
subjetivo há um rol significativo de impedimentos, muito bem alicerçados por
discursos conservadores historicamente estabelecidos. E são eles os grandes promotores
de uma realidade extenuante para a maioria das mulheres.
Vai dizer que é fácil equilibrar
os pratos de uma rotina multitarefas? É difícil cuidar da casa, dos filhos, do
marido, da profissão, da beleza, da saúde, dos compromissos sociais, 24 horas
por dia, 365 ou 366 dias ao ano. Então, ela acaba doente do corpo, da mente, da
alma, porque é levada ao limite da sua capacidade humana.
Porque não basta administrar
todas essas questões. Por trás delas existe um protocolo velado, imposto pela
sociedade, o que eleva o sarrafo desse desempenho. De um jeito ou de outro a
cobrança social chega.
É como se houvesse milhares de
julgadores à espreita, observando a dinâmica do cotidiano e apontando notas e
comentários a respeito, sem dó e nem piedade. Algo de uma desumanidade, sem
tamanho! Que mina os esforços, a autoestima, a dignidade da mulher. Afinal, ela
acredita que não pode errar, falhar, adoecer, faltar com todas as suas
obrigações.
De fato, houve um tempo em que
esse tribunal inquisidor acontecia apenas no campo doméstico. Porém, mais do
que atender às transformações sociais do mundo, as mulheres foram alçadas ao
exterior de suas casas pelas pressões das demandas socioeconômicas, e aí a
inquisição pegou fogo de verdade!
Diante de tantas rotinas a serem
cumpridas, muitas vezes, sem quaisquer redes de apoio, as mulheres contemporâneas
vêm sendo, cada vez mais, soterradas por uma realidade asfixiante.
Nesse sentido, é preciso entender
que nas entrelinhas desse nível atroz de exigências está o fato de elas permanecerem
presas a esse estereótipo objetificante imposto pela sociedade, o que retira
delas a sua humanidade.
Ora, objetos não sentem, não
cansam, não reclamam, não ficam doentes, não questionam, ... Então, é
exatamente isso o que a sociedade espera das mulheres. Que elas aceitem a sua “sina”,
o seu “destino”, como fizeram as Dona Mariazinhas, Donas Francisquinhas,
Donas Mariquinhas e todas as gerações de mulheres que as sucederam. Como se
isso fosse legítimo, aceitável, natural.
Quando penso sobre essa
desumanização, de pronto, me lembro do filme O Sorriso de Mona Lisa 1, de 2003, que trata exatamente desse
tema. Ambientado na Wellesley College, uma das mais tradicionais escolas
norte-americanas, onde as melhores e mais brilhantes jovens mulheres, na década
de 1950, recebiam uma dispendiosa educação, para se transformarem em cultas
esposas e responsáveis mães; até que, uma professora faz com que suas alunas
assumam suas identidades culturais, como seres sociais e históricos.
Vejam só, décadas vêm e vão e a
desumanização objetificante das mulheres permanece intocada. Mudam-se as
personagens, os cenários; mas, os roteiros, os diálogos, são os mesmos,
infelizmente. Bom, isso significa que as dores, os sofrimentos, as humilhações,
os maus tratos e as marginalizações, continuam reverberando sem indicativo de
fim.
E nenhum ser humano merece viver
dessa maneira. Ninguém merece ser desqualificado e obrigado a se submeter a um
conjunto de indignidades ferinas e cruéis, porque está condenado a viver à
margem, despido do próprio protagonismo.
É por essas e por outras que Coco
Chanel fazia a seguinte pergunta: “Não importa o lugar de onde você vem. O que
importa é quem é você! E quem você é? Você sabe?”; afinal, “Para ser insubstituível,
você precisa ser diferente”.
É nos detalhes, tantas vezes sutis,
que se constrói a verdadeira validação de quem somos, o que significa que “A
pessoa mais qualificada para liderar não é a pessoa fisicamente mais forte. É a
mais inteligente, a mais culta, a mais criativa, a mais inovadora. E não
existem hormônios para esses atributos” (Chimamanda Ngozi Adichie).
Lembrar disso é muito importante;
pois, “A linguagem é o repositório de nossos preconceitos, de nossas
crenças, de nossos pressupostos” (Chimamanda Ngozi Adichie). Portanto, já
passou da hora de rompermos com essa tóxica retroalimentação de ideias desumanizantes.