A
precificação da desobediência jurídica
Por Alessandra
Leles Rocha
Diante de recentes
acontecimentos, dois exemplos chamaram a atenção de como o poder capital tem
precificado a desobediência jurídica, no sentido de uma flexibilização
tendenciosa do cumprimento das decisões dos tribunais.
Após condenação por estupro,
jogador de futebol brasileiro pagou fiança de 1 milhão de euros para aguardar
em liberdade os trâmites dos recursos impetrados junto à justiça espanhola.
Mesmo com decisão do Tribunal de Justiça
de São Paulo, barrando o evento no Teatro Municipal, em homenagem a ex-primeira
dama do país, com imposição de multa a um eventual descumprimento, a Prefeitura
da capital paulistana não desistiu de realizá-lo.
Há quem não veja gravidade nessas
situações; mas, há. Quando o dinheiro é colocado a serviço de uma manipulação
enviesada do ordenamento jurídico, no contexto de uma flagrante afronta à
Justiça, isso representa sim, um acirramento da desigualdade, uma ruptura com o
princípio da igualdade e da equidade social.
Trata-se de uma maneira de precificar
o delito, o crime, a infração. Aquele que pode pagar, que dispõe de poder
capital suficiente para arcar com determinado custo, é beneficiado de certas
regalias e privilégios. Como se lhe fosse dado um aval para infringir a lei.
Isso não só transmite uma ideia
de impunidade aos que detém o poder capital, como banaliza o delito, o crime, a
infração, construindo um movimento de insegurança jurídica, na medida em que possibilita
divergências e tendenciosidades na interpretação do ordenamento legal. Diante de
diversos pesos e medidas, a lei se perde no resguardo do direito, mediante o
peso do poder capital.
Acontece que isso, de certa
forma, desnuda uma verdade histórica. A velha máxima de uma justiça cega, que advém
necessariamente desse modelo. É preciso olhar com atenção, e isenção, para
entender que a justiça é constituída e estruturada por um padrão social elitista,
por um grupo restrito e privilegiado de pessoas.
De modo que sua aplicação, ao
longo de séculos e séculos, nunca foi homogênea. Houve sempre um protecionismo,
uma parcialidade, um partidarismo, nos cursos processuais e decisórios. O que
significa um trato assimétrico à população.
Não é uma questão de instância,
ou de foro. Desde o início dos trâmites legais já se percebe a desigualdade e,
por consequência, o conjunto de impossibilidades que tendem a marcar o
desenrolar do processo. Afinal de contas, as marcas do poder capital não deixam
dúvidas como os seres humanos são, ainda, em pleno século XXI, tratados na base
do “vale quanto pesa”.
O que explica essa epidemia contemporânea
de superioridade que se alastra, cada vez mais desumana, por todo o planeta. Parece
existir um temor tão grande, tão exacerbado, por parte dos grupos sociais
dominantes, quanto a perder suas regalias e privilégios históricos ou
conquistados em razão da sua imersão em classes emergentes, que eles não se
constrangem em usar o artifício do poder capital para moldar a justiça, segundo
seus interesses.
Precificar o delito, o crime, a
infração, é, então, uma manifestação de caráter narcísico. Um modo de reafirmar uma liberdade que não
encontra limites ou obstáculos, de nenhuma natureza. Que amplifica a sensação de
poder absoluto sobre o mundo. Que não se importa em se despir da dignidade cidadã
e humana. Em suma, uma ruptura completa com os valores éticos e morais, mais
fundamentais. Como quem manda às favas, todos os escrúpulos!
Como disse Mario Sergio Cortella, “É necessário cuidar da ética para não anestesiarmos a nossa consciência e começarmos a achar que tudo é normal”. Sobretudo, nesse país, em que o ranço colonial ainda permite que o poder capital estabeleça, em torno de uns e outros, uma aura de respeitabilidade e de reverência, a qual os absolve, de antemão, de quaisquer delitos, crimes ou infrações que tenham cometido. Infelizmente, construindo uma legião de indivíduos impunes e acima de qualquer suspeita.