A morte
não é mesmo o fim...
Por Alessandra
Leles Rocha
É, a morte não é mesmo o fim. Especialmente,
quando ela chega através do crime. A morte criminosa é uma história que não tem
ponto final, ela tem reticências que reverberam os acontecimentos, à revelia de
quem quer que seja. Como se a verdade precisasse ser digerida, processada, diversas
vezes, até esgotar o seu limite. Não é à toa que dentro do universo jurídico há
quem não se canse de afirmar que não exista crime perfeito.
Não mesmo! Crimes não são solução
de nada. Quase sempre, eles amplificam as situações de maneira terrível e
irreversível. Haja vista os crimes de natureza política. Não se manda “recado”
através de uma figura pública. Figuras públicas nunca estão sós. Há sempre um
rol de seguidores, de apoiadores, de simpatizantes, dispostos a prosseguir defendendo
suas ideias, seus projetos, seu legado.
Acontece que não para por aí. Mortes
criminosas levantam suspeitas, especulações, teorias da conspiração, ... que
visam, única e exclusivamente, obter respostas claras e objetivas em relação
aos fatos ocorridos. Portanto, elas causam de imediato um desassossego, uma
aflição, uma angústia, fazendo emergir uma corrente investigativa de amplo
espectro. Quase como um trabalho de formiguinhas.
Assim, a morte não é só a morte;
sobretudo, quando é criminosa. É como diz a expressão popular, “Atira no que
viu e acerta no que não viu”; pois, verdade seja dita, todo crime se deita
sobre uma cama de promiscuidade social. Uma teia de ligações perigosas, de
interesses, de poderes, de ambições, de regalias e de privilégios, que não
podem ser desestabilizadas por nada nem por ninguém.
Essa é a razão que explica o
frisson em torno da prisão dos suspeitos de terem assassinado a ex-vereadora
carioca, Marielle Franco, e seu motorista, Anderson Gomes 1.
Considerando o histórico brasileiro, que desenhou uma estrutura social muito
bem definida, na qual o poder econômico de uma ínfima minoria é o que determina
os rumos do país, o Brasil não é um país de todos; mas, de muito poucos.
E são esses, dotados de todas as
prerrogativas sociais elitistas, que mandam e desmandam, que fazem e acontecem,
nutridos de uma consciência de profunda importância social. Sentem-se acima do
bem e do mal. Superiores. Inatingíveis. Extraordinários. Distintos. ...
Eis que, de repente, neste caso, a
consciência de que houve um crime político se expande para entender que o
criminoso é o próprio Estado brasileiro. Todas as figuras envolvidas, apontadas
direta ou indiretamente, estão relacionadas ao poder estatal. Como num passe de
mágica, Marielle se tornou apenas a ponta de um iceberg que desnuda o gigantesco
bloco a representar as mais abjetas e nefastas relações sociais, políticas e
institucionais, brasileiras.
Estado, polícias, milícias, crime
organizado, contravenção, ... tudo junto e misturado, ao melhor estilo novelístico
nacional. Aliás, a última cena do filme Tropa de elite 2: O inimigo agora é
outro 2, de 2010, já mostrava isso com muita
propriedade!
Não é à toa que o modelo de
organização de poder, no país, transcorra dessa forma. Essa é uma estrutura
histórica, de pouco mais de 500 anos. O que lhe garante é o capital,
independentemente da sua origem. Portanto, o poder capital foi e é o fiador
absoluto de todos os demais poderes e influências, no país.
Isso explica, por exemplo, o imenso
desafio em se combater a corrupção nacional, na qual uma das suas manifestações
mais contundentes é o fisiologismo político. Que nada mais é do que permitir
estabelecer um tipo de relação de poder, em que as ações e decisões são
pautadas pela troca de favores, favorecimentos e inúmeros outros tipos de benefícios
a interesses privados, em prejuízo do bem comum. Afinal de contas, o poder
capital também é o fiador da impunidade nacional.
Nesse sentido, a prisão dos
suspeitos do Caso Marielle Franco encerra um capítulo; mas, não encerra a
história. Porque as vísceras do poder capital estão à mostra. A dinâmica da teia
de ligações perigosas, de interesses, de poderes, de ambições, de regalias e de
privilégios, foi revelada; mas, não foi interrompida.
O que significa que permanece,
pairando no ar, especialmente, em anos eleitorais, o risco de que as velhas práxis
criminosas possam operar. Basta que se sintam ameaçados de alguma forma, dando início
a uma nova saga de apurações e responsabilizações, mantendo a ideia desse ciclo
vicioso nacional.
Assim, sinto que a síntese dessas
horas cabe, perfeitamente, nas palavras do Padre Antônio Vieira, no século
XVII, “Há seres humanos que são como velas; sacrificam-se queimando-se para
dar luz aos outros”. Marielle cumpriu esse papel. Trouxe luz. Trouxe verdade.
Trouxe reflexão. Trouxe indignação. Nesse contexto, então, “A questão não é
se existe vida depois da morte. A questão é se você viveu antes da morte”
(Osho). E ela não só viveu, como permanece vivendo. Porque a morte não é mesmo
o fim.