segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

A efemeridade humana


A efemeridade humana

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Nenhuma guerra faz sentido. Nem as cotidianas. Nem as globais. Simplesmente, porque a vida humana é efêmera. Não somos, apenas estamos. De repente, nossa existência chega ao fim. Num piscar de olhos. Num suspiro. Num olhar.

É por isso, que precisamos ter certeza do quanto vale a pena a investida de nossos esforços diários. O porquê de fazermos isso ou aquilo é fundamental; sobretudo, para não desperdiçarmos tempo e energia desnecessários.

Lamento, mas nenhuma guerra garante a imortalidade, a eternidade, a invencibilidade ou a supremacia. Quaisquer diferenças que o ser humano tente apontar resumem-se a um único fato, a morte.

Todos morrem. Cedo ou tarde. De morte morrida. De morte matada. Como tão bem cantou Caetano Veloso, “Estou aqui de passagem / Sei que adiante, um dia vou morrer / De susto, de bala ou vício [...]” 1.

Então, quando se começa a criar arestas, picuinhas, rivalidades, disputas, que não levam nada a lugar algum, porque são desprovidas de qualquer racionalidade, civilidade e dialogia, torna-se necessário questionar até onde vai o instinto de sobrevivência humano.

Curioso, que ninguém se preocupe em pensar quantos mortos a Terra já viu tombar, por conta das guerras. Não, não é necessária a precisão numérica ou estatística para se ter a dimensão de que foram alguns milhões. Todos mortos sem motivo, sem razão. Afinal, nenhuma vida ceifada pela beligerância trouxe ao mundo algo de bom.

Quando penso nisso, me recordo de uma citação de Umberto Eco, em O Nome da Rosa (1980), “Teme, Adso, os profetas e os que estão dispostos a morrer pela verdade, pois de hábito levam à morte muitíssimos consigo, frequentemente antes de si, às vezes em seu lugar”.

E não é exatamente isso o que acontece em uma guerra? Uma junta de pessoas decide que milhares sejam colocados na esteira do matar e do morrer, enquanto observam à distância os rumos da carnificina.

Assim, muitos morrem convencidos pela persuasão tirânica, que não lhes permite escolha. Alguns são convencidos por algum tipo de doutrinação ideológica. E há os que representam apenas os efeitos colaterais das investidas brutais, que morrem à revelia de qualquer razão.

O pior é perceber que todos, sem distinção, são enredados por uma estupidez mórbida, totalmente, insana. Sim, porque a humanidade já fez guerras em nome de Deus, em nome de territórios, em nome de disputas egóicas, em nome de recursos naturais, em nome da escravização de indivíduos, ou seja, de quaisquer motivos que lhe pareçam oportunos.

No entanto, nenhuma delas fez do planeta um lugar melhor e mais acolhedor para se viver. Os seres humanos continuam existindo sob os signos da desigualdade, do desamparo, da violência, da indignidade, enquanto assistem bilhões de dólares nutrindo os veios da belicosidade global. Porque toda guerra demanda recursos financeiros expressivos para se manter.

Aliás, esse é um ponto importante. As guerras não acabam por decisão dos envolvidos. Elas arrefecem quando a capacidade capital deles sucumbe. Mas, até que isso aconteça, bilhões são metaforicamente enterrados nos campos de guerra, a luz dos olhos da desesperança, do sofrimento, da incompreensão.

Algo que, de certa forma, traz uma das razões pelas quais o mundo balança constantemente na corda bamba das crises econômicas. Afinal, as máquinas de guerra têm um apetite voraz de recursos e precisam ser nutridas a despeito das necessidades humanas. Assim, a engenharia da guerra mantém suas engrenagens funcionando a pleno vapor!  

Por isso, alternam-se gerações e o mundo continua reafirmando seus desvirtuados padrões. Mortos e nascidos têm seu registro marcado pelo mesmo réquiem, sem que ninguém ouse questionar o porquê ou até quando. Como se as guerras tivessem sido sumariamente incorporadas ao cotidiano da vida, ganhando ares de total banalização ou normalização.

Aí me permito questionar, será que só as democracias estão morrendo nesse processo? Penso que não. Na verdade, é a humanidade que está morrendo. Todos são inimigos entre si. Tudo pode ser estereotipado como ameaça para justificar a barbárie.

A beligerância está discursivamente legitimada pela força do poder capital, o qual se fortalece cada vez mais pela espoliação das massas populares que sustentam o topo da pirâmide social.

Como essas pessoas estão demasiadamente oprimidas pela necessidade da sua própria sobrevivência, elas não percebem, ou não entendem, que estão colaborando diretamente para fomentar a indústria da guerra.

Seus suores e lágrimas diários irrigam, portanto, a capacidade de guerrear do topo da pirâmide social. Esse é o lado do avesso da sociedade de consumo.

Enriquecer cada vez mais uma ínfima minoria da humanidade, permitindo que ela se divirta das maneiras mais abjetas e repugnantes. Algo que a ética e a moral, jamais, poderiam permitir.

E esse contexto diz muito, porque ele está predominantemente impregnado na ideologia ultradireitista, a qual tenta se reafirmar novamente na história.

A ultradireita foi, é, e sempre será, uma força beligerante. Um rolo compressor que passa, com suas crenças, valores, princípios e convicções, por cima de qualquer um que se coloque no seu caminho.

Não é à toa que “Alguém já disse que o patriotismo é o último refúgio dos canalhas: quem não tem princípios morais costuma se enrolar em uma bandeira, e os bastardos sempre se reportam à pureza da sua raça. A identidade nacional é o último recurso dos deserdados. Muito bem, o senso de identidade se baseia no ódio, no ódio por quem não é idêntico” (Umberto Eco – O Cemitério de Praga, 2010).

Pois é, questões como o ultraconservadorismo, o autoritarismo, o ultranacionalismo e o anticomunismo são o combustível para os discursos extremistas e para exacerbação do espírito odioso, presente na contemporaneidade.

Assim, os ódios que se estabelecem retroalimentam as guerras, tendo em vista que, os outros, os diferentes, estarão sempre no rol das ameaças e da necessidade de serem combatidos, subjugados, aniquilados.

Desse modo, quando eu trago essas reflexões, é impossível não pensar na seguinte citação de Osho, “A questão não é se existe vida depois da morte. A questão é se você viveu antes da morte”.

Olhando para um planeta que se transformou, literalmente, em uma praça de guerras físicas e ideológicas, não posso pensar outra coisa senão de que a maioria das pessoas estão morrendo sem viver.

Segundo a canção de Ozzy Osbourne, “[...] E aqui estamos ainda lutando por nossas vidas / Assistindo a história se repetir, dia após dia [...]” 2. Simplesmente, porque sem saber o que é uma prioridade existencial ou o que são valores humanos, ninguém vive de fato.

A vida, em si, não se traduz pelo ciclo trabalhar / produzir / consumir. O viver pede ser e não, apenas, ter. O viver pede amor, empatia, compaixão, desapego, altruísmo, solidariedade, ... Pede uma existência coletiva, fraterna. Que saiba respeitar as diferenças, na medida em que constrói pontes de afinidades em prol do bem comum.



1 Soy loco por ti, America (1968) - https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/76612/

2 Dreamer (Ozzy Osbourne) - https://www.youtube.com/watch?v=LCCiwPEdEpg