sexta-feira, 15 de novembro de 2024

Reflexões sobre o trabalho

Reflexões sobre o trabalho

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Segundo a Oxford Languages, dentre os verbetes que definem o trabalho, aquele que se apresenta de maneira mais verdadeira é “conjunto de atividades, produtivas ou criativas, que o homem exerce para atingir determinado fim”. Digo isso, considerando o fato de se tratar de algo atemporal na historicidade humana. O trabalho, nesse contexto, sempre esteve presente na realidade dos indivíduos, independentemente, de qualquer situação.

No entanto, foi a partir do cenário pré-capitalista, que ele transitou do sistema de trocas para o sistema remunerado por moeda, efetivamente. Daí para a Revolução Industrial, a qual também revolucionou as relações de trabalho, muita coisa mudou! O ser humano viu-se obrigado a compatibilizar o seu dia entre diferentes atividades, ou seja, vida pessoal, vida em família, trabalho, descanso, alimentação, lazer, ... Então, de repente, a conta das horas deixou de fechar!

O modo como a humanidade estabeleceu a distribuição do tempo diário, em 24 horas, passou a ser insuficiente para atender a todos os papeis sociais da humanidade. Afinal de contas, o tempo do trabalho não se restringe ao tempo no ambiente de trabalho. Há todo um conjunto de atividades a serem cumpridas. Higiene pessoal. Organização dos materiais de trabalho. Refeição. Deslocamento ida e volta.  Enfim... Enquanto isso, os segundos do relógio estão em ritmo frenético!

E essa jornada repetida diariamente ao longo de semanas, meses e anos, por mais que ela represente algo importante e significativo para o indivíduo, isso não o exime da exaustão. O trabalho nos moldes da realidade contemporânea é extremamente pesado, para uma imensa maioria da população. A flagrante desigualdade salarial impõe, aos milhares de cidadãos, da grande base da pirâmide social, o cumprimento de jornadas múltiplas para conseguir uma renda minimamente satisfatória.

Acontece que, para atender ao ritual que precede a ida para cada trabalho, o tempo necessário para as demandas existenciais se torna cada vez mais exíguo. Sobretudo, quando se considera a geografia das cidades. As distâncias para deslocamento são um dos maiores inimigos dos trabalhadores. Dentro dos diversos meios de transporte, eles perdem um tempo precioso, em razão de acidentes, congestionamentos, interrupção de vias, violência, alagamentos, ... até conseguirem, finalmente, chegar ao local de trabalho. Isso antes de pensar como pode ser o trajeto de volta para casa.

Não é à toa que a classe trabalhadora venha se mostrando cada vez mais doente. A rotina extenuante da sobrevivência expôs o corpo, a mente e a alma, a um nível de tensionamento e sobrecarga inimaginável. A expectativa de vida para os habitantes de grandes cidades e regiões metropolitanas tem sido cada vez menor, se comparada a lugares onde os impactos da urbanização e do desenvolvimento são menos expressivos. E essa é uma das consequência da constante busca por mais e melhores oportunidades de trabalho, nos grandes centros.

O que significa que o cidadão sacrifica diretamente a sua qualidade de vida, ou seja, o conjunto de fatores relacionados com a sua condição física, social e psicológica, comprometendo, então, a sua expectativa de vida. Algo facilmente percebido através da aferição do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), concebido pela Organização das Nações Unidas (ONU), visto que ele ao buscar avaliar a qualidade de vida e o desenvolvimento econômico, através dos parâmetros longevidade, educação e renda, espera encontrar um contexto de equilíbrio.

Por isso, o mundo vem realizando uma verdadeira cruzada no sentido de desconstruir certas práxis e paradigmas do mundo trabalho. Um dos temas mais discutidos tem sido a redução da carga horária semanal. A própria Organização Internacional do Trabalho (OIT) em conjunto com a Organização Mundial da Saúde (OMS) já dispõem de estudos que mostram o crescimento de mortes por doenças cardíacas e por acidente vascular cerebral, devido a longas jornadas de trabalho. Cada vez mais, o mercado de trabalho tem lidado com situações de acidentes e afastamentos causados por doenças profissionais, aquelas que ocorrem por exposição contínua do trabalhador aos agentes de risco, ou por doenças do trabalho, aquelas que resultam das condições do ambiente ocupacional.

Isso possibilita entender que trabalhadores extenuados são uma realidade contraproducente. Daqui e dali proliferam casos de Distúrbios Osteomusculares Relacionados ao Trabalho (DORT), Lesão por Esforço Repetitivo (LER), Síndrome de burnout, Transtornos Mentais (depressão, síndrome do pânico, ansiedade, estresse pós-traumático). Desse modo, adoecidos, desmotivados, cansados, eles não conseguem, por mais que se dediquem e se esforcem, cumprir as metas e os objetivos que lhes são impostos. Nem tampouco, se dedicarem a um processo de formação continuada para melhorar a sua qualificação.

O poeta gaúcho Mario Quintana escreveu, “Existe um momento na vida de cada pessoa que é possível sonhar e realizar nossos sonhos ... e esse momento tão fugaz chama-se presente e tem a duração do tempo que passa”. Pois é, um lembrete poético a todos os seres humanos de que o trabalho faz parte da vida e precisa, necessariamente, se equilibrar à dinâmica que estabelece com ela. Segundo o escritor inglês Aldous Huxley, “Todo excesso traz, em si, o germe da autodestruição”. Portanto, não nos esqueçamos de que o trabalho seja para viver e não, um viver somente para trabalhar. 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

Promessas ...

Promessas ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Promessas não representam garantias. O mundo contemporâneo não se cansa de fazê-las, esquecendo-se voluntariamente da responsabilidade que isso implica. Vendendo a máxima de que qualquer sonho pode ser satisfeito através do consumo de um bem, produto ou serviço, bastando apenas o dinheiro para adquiri-lo, a contemporaneidade é o poço das ilusões.

Afinal, a teoria é uma. A prática é bem outra. Não, não se pode esquecer de que a historicidade humana é marcada pelas desigualdades sociais, o que torna essa dinâmica distante de qualquer igualdade, de qualquer equidade.

E enquanto o frenesi contemporâneo não para, a raça humana vai deteriorando, de maneira intensa e ininterrupta, a sua saúde mental, através de uma luta inglória imposta por tantas promessas sem garantias.

Bem, se engana quem pensa que a saúde mental diz respeito somente ao estresse, à fadiga, à ansiedade, à depressão, aos distúrbios do sono, aos pensamentos suicidas, ...

Todos esses sintomas e manifestações constroem uma dinâmica psico-comportamental demasiadamente fragilizada e vulnerabilizada. O que faz o indivíduo perder o seu balizamento em relação à satisfação pessoal, ao seu bem-estar, às suas capacidades, às suas realizações.

E quanto mais ele se distancia das suas esperanças, das suas expectativas, das suas perspectivas, mais ele se torna um alvo dos discursos e manipulações ideológicas, cujo viés objetiva enredá-lo a um contexto de mais promessas.

Na medida em que elas são construídas exatamente para satisfazer às suas frustrações, decepções, angústias, perdas, o ser humano vai se permitindo alienar, a tal ponto em que desenvolve um fanatismo, uma obsessão, em torno de certas ideias.

Ora, as promessas funcionam como verdadeiras boias de salvação, um porto seguro em meio a um mar de incertezas. De modo que, inadvertidamente, o ser humano acaba sendo induzido a se render a elas. Como um analgésico de efeito imediato e polivalente, capaz de aliviar os sofrimentos que lhe habitam o consciente e o inconsciente.

Mas, como toda medicação, seu efeito colateral mais importante é a destruição identitária. O indivíduo perde a manifestação do seu protagonismo identitário e passa a ser mais um, no chamado efeito manada.

O fanático é um ser despojado da sua personalidade, da sua identidade. Ele é um ser submisso, dependente, dominado, serviçal, ao que uma realidade paralela seja capaz de lhe oferecer em termos de satisfação pessoal. Porque essa promessa idealizada é o que parece lhe trazer sentido existencial.

O fanatismo, no fundo, é uma experienciação daquilo que não se é; mas, gostaria de ser. Quem não se lembra dos Kamikaze, os pilotos dos aviões japoneses, durante a Segunda Guerra Mundial, que realizaram ataques suicidas contra os navios dos Aliados? Eles se voluntariavam sob a justificativa patriótica de se sacrificar pelo imperador japonês. Uma demonstração de nacionalismo heroico.

Como escreveu Umberto Eco, em O Nome da Rosa (1980), “Teme, Adso, os profetas e os que estão dispostos a morrer pela verdade, pois de hábito levam à morte muitíssimos consigo, frequentemente antes de si, às vezes em seu lugar”.

Portanto, a análise a se fazer é de natureza ética e moral. Não é sobre o fanático; mas, aquele, cuja promessa, o induz ao fanatismo, à obsessão.  Afinal, aproveitando-se da fragilidade e da vulnerabilidade existencial humana, impõe-se uma pseudoverdade até as últimas consequências.

O que significa que as promessas contemporâneas estão banhadas pela perversidade, pela crueldade, pelo desrespeito ao ser humano. Elas têm objetificado cada vez mais os indivíduos, para que sirvam de instrumento para a realização dos interesses de outros.

As promessas tornaram-se expressões máximas da violência. Por trás de suas diferentes formas e conteúdos estão massas de manobra dispostas em diversos cantos do planeta. Promessas políticas. Promessas religiosas. Promessas de prosperidade. Promessas de poder. Promessas de liberdade. ...

Desse modo, não vejo outro caminho a não ser concordar com Eduardo Galeano, quando escreveu que “No manicômio global, entre um senhor que julga ser Maomé e outro que acredita ser Buffalo Bill, entre o terrorismo dos atentados e o terrorismo da guerra, a violência está nos arruinando”.  

segunda-feira, 11 de novembro de 2024

O essencial e o supérfluo

O essencial e o supérfluo

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Dois pesos e um milhão de medidas. Essa é a receita rançosa que os descendentes diretos da herança colonial brasileira empregam, quando almejam defender seu conjunto histórico de regalias e privilégios. Haja vista a proposta do corte de gastos, pelo governo federal, sob imensa pressão de representantes e simpatizantes da direita nacional e de seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas.

Para essa gente, o que importa é o topo da pirâmide social. O resto é, literalmente, resto. E esse é um pensamento velho e roto! Na história do mundo, as camadas mais frágeis e vulneráveis das sociedades sempre foram alvo preferencial da sanha econômica das elites dominantes. Figurando à beira da indignidade, como os verdadeiros pagadores de impostos.

Não é à toa que, um belo dia, viu-se acontecer a primeira revolução popular da história, a Revolução Francesa! O limite da espoliação social culminou na insurreição popular. A desigualdade social afrontou a tirania dos poderosos. De repente, a liberdade, a igualdade e a fraternidade invadiram as ruas de Paris, no século XVIII, para jamais serem esquecidas.

E mesmo, com todos os esforços da Revolução Industrial, na segunda metade do século XVIII, na Inglaterra, para silenciar os arroubos populares pela Europa, o precedente havia sido aberto. A discussão, a reflexão, a crítica, sobre as relações sociais estavam postas para sempre. Um lampejo de visibilidade havia sido ofertado às camadas populares. Desde esse momento, então, a luta contra as desigualdades sociais vem sendo travada, mundo afora.

No Brasil, com sua historicidade colonial muito bem marcada, não poderia ser diferente. O modelo social não foi alterado a partir da ruptura da condição de ex-colônia de exploração portuguesa. Os herdeiros diretos da monarquia e da burguesia permaneceram repetindo os mesmos valores, crenças, princípios e protocolos, presentes entre os séculos XVI e XIX. O que significa que as camadas populares permaneceram alijadas dos seus direitos humanos e cidadãos.

De modo que é dessa conjuntura que emerge o ódio da direita nacional e de seus matizes; sobretudo, os mais radicais e extremistas, contra a esquerda. Que ultrapassa as fronteiras e limites das divergências ideológicas para alcançar um desejo incontrolável de banimento social de determinados indivíduos. Algo que se materializa pelas atitudes contínuas de reafirmação da necropolítica 1, no país. Relembrando a sabedoria poética de Chico Buarque, “Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir / A certidão pra nascer e a concessão pra sorrir / Por me deixar respirar, por me deixar existir / Deus lhe pague ...” 2.

Então, quando se tenta inviabilizar um governo de esquerda, tomando como alvo o enrijecimento dos seus recursos econômicos, segundo os parâmetros e perspectivas impostos pelas forças direitistas, se estabelece uma inviabilização dos projetos de políticas públicas. De maneira simplista, o tensionamento impositivo para cortes de gastos profundos, sob pretexto de equilíbrio fiscal do país, não passa, na verdade, de uma camada da necropolítica.

Afinal de contas, quando observados os detalhes e as entrelinhas desses cortes, ficam evidentes todos os tipos de desigualdade. As camadas mais frágeis e vulneráveis irão pagar pelo ônus dos seus prejuízos sociais, na medida em que suas históricas demandas e mazelas permanecerão à margem de qualquer solução concreta e efetiva. Demonstrando como os cortes de gastos governamentais têm sim, um caráter de impedir qualquer melhoria que possa desencadear esperança de uma futura mobilidade social.  

Além disso, atingir as políticas públicas através de cortes orçamentários profundos representa uma maneira sutil de esgarçá-las até o ponto de se chegar a um discurso justificante para privatizar questões de suma importância social.  Saúde. Educação. Segurança. ... Levando à uma precarização total da dignidade humana e, por consequência, inevitável, do país.  

Infelizmente, não é de se espantar que as políticas públicas sejam entendidas como gastos. Porque a história política e social brasileira foi constituída invisibilizando parcelas inteiras da população. Os direitos, os poderes, as regalias e os privilégios eram de propriedade exclusiva das elites nacionais, dos donos dos meios de produção, das oligarquias. Como uma herança que se transmitiu de geração em geração até os dias atuais.

Mas, observando com total atenção a realidade contemporânea, fico me questionando quanto ao estrabismo intelectual dessas pessoas, ao não perceberem que o engessamento econômico que estão impondo, tão severamente, pode ruir, não pelas demandas populares; mas, pela força impetuosa dos agentes imponderáveis que rondam o planeta. Suas certezas podem virar fumaça, de uma hora para outra, à revelia de suas vontades e quereres.

quarta-feira, 6 de novembro de 2024

Mais um capítulo da história estadunidense

Mais um capítulo da história estadunidense

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não, o mundo não acabou! A Terra continua girando na imensidão azul! É preciso recapitular o óbvio, quando milhares de pessoas estão exercitando sua futurologia apocalíptica a respeito do resultado das eleições nos EUA.

Sim, porque apesar de fatos e informações fornecidas pelo próprio vencedor, entre o discurso e a prática existe um espaço de incertezas que não pode ser jamais desconsiderado. Essa lacuna misteriosa faz toda a diferença para o curso da história!

Nem mesmo a grande potência global está isenta das conjunturas e do imponderável. O poder não manda e desmanda, como acredita ser possível. Tudo esbarra em limites, os quais nem sempre são contornáveis ou intransponíveis.

A cadeia de acontecimentos, que rege a dinâmica cotidiana, carrega em si uma cota de desdobramentos inimagináveis. Afinal, a vida não é um script muito bem definido e linear. Por mais que se planeje, se organize, de repente, tudo foge ao controle e o resultado não é o esperado.   

Ora, o mundo não é só os EUA. Cada nação está travando suas próprias batalhas contemporâneas, que já se mostram bastante desafiadoras e complexas. De modo que são os resultados dessas equações enigmáticas que fazem mover as engrenagens da geopolítica global.

Por mais individualista, ou narcísico, ou egoísta, que se mostre um país, na mesa de negociações o pragmatismo da governança se impõe.  Interesses nacionais e estratégicos se priorizam frente aos interesses egóicos dos governantes.

Haja vista a recente história brasileira, no seu recorte entre 2019 e 2022. Anos difíceis, concordo! No entanto, vamos e convenhamos, nada foi exatamente como haviam planejado.  Os planos infalíveis falharam!

Toda a ardilosa tecitura da ultradireita nacional, respaldada pelo forte apelo da legalidade do verniz jurídico, começou a se esfacelar diante de milhões de olhos estupefatos. Atos e figuras foram desnudos, trazendo à tona verdades bastante indigestas e inconvenientes.

E o entorpecimento gerado pelo delírio de poder, esgarçou qualquer vestígio remanescente da ética e da moral, pelos corredores da República.  Simplesmente, meteram os pés pelas mãos, de uma maneira constrangedora.

Sim, porque apesar da dimensão dos delitos cometidos, a covardia não lhes permitiu assumi-los. Tentaram ganhar tempo, conclamando uma insurreição abjeta, com o intuito de transformar o absurdo em verdade conveniente e colar os caquinhos do seu projeto de (des) governança, para permanecer no poder.

Mas, no fim das contas, as linhas tortas da história os levaram a ficar próximos de acertar a fatura, de seus gestos e atitudes reprováveis, com a Justiça brasileira.  Não adiantou o teatro autoritário, a verborragia, a bravata, o menosprezo ao país, enfim ...

Uma prova de que ganhar não representa o ponto final. A vida segue, caro (a) leitor (a)! O tempo não para de correr! De modo que as perspectivas do poder não são absolutas. Muito pelo contrário! Elas são totalmente relativas.

Portanto, não há, de fato, a mínima necessidade de se aborrecer ou se amedrontar pelo amanhã. Reside nas conjecturas uma toxicidade que é muito perigosa, porque ela nos afeta diretamente a razão, na medida em que cria uma ansiedade exacerbada sobre algo que, talvez, possa acontecer.

Veja, é preciso admitir que a vida não assinou qualquer compromisso em ser exatamente, segundo as nossas idealizações e projeções. Por mais que tenhamos bons argumentos para defendê-las, a vida não se sujeita às determinações alheias. Ela é livre, autônoma, imprevisível, incerta. Tudo pode acontecer. Tudo pode mudar.

Portanto, cabe aos viventes um dia de cada vez e a dedicação em atentar-se ao que está bem diante do nariz, ou seja, “Estamos a avançar rapidamente rumo a uma tempestade perfeita, desencadeada por um excessivo consumo de energia, excessivo crescimento populacional e escassez de alimentos e de água que não poupará ninguém, sejam ricos ou pobres” (Parag Khanna – Como governar o mundo, 2011).

É sobre isso que a raça humana deveria realmente se preocupar. Afinal, “Não podemos mudar o passado; podemos ter arrependimentos, remorsos, lembranças de momentos felizes. O futuro, pelo contrário, é incerteza, desejo, inquietude, espaço aberto, talvez destino. Podemos vivê-lo, escolhê-lo, porque ainda não existe; nele tudo é possível ... O tempo não é uma linha com duas direções iguais: é uma seta, com extremidades diferentes” (Carlo Rovelli – A ordem do tempo, 2017). 

quinta-feira, 31 de outubro de 2024

Para refletir ...

Para refletir ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Depois de uma espera de pouco mais de 6 anos, a justiça em relação ao assassinato de Marielle Franco e seu motorista Anderson Gomes começa a ser materializada, a partir do julgamento e condenação dos seus executores. A justiça tarda, mas não falha.

Acontece que esse caso é um bom exemplo para se tecer uma análise sobre a realidade brasileira. Começando pela demora na sua elucidação. Não se engane, essa não foi uma questão de polarização política, de Direita ou de Esquerda, pura e simplesmente.

Trata-se do resistente ranço histórico do colonialismo nacional, que coloca na dianteira dos exercícios de poder as elites herdeiras da burguesia e da corte metropolitana. Gerações que se sucedem, secularmente, mantendo suas regalias, privilégios e influências, conquistadas ao peso do poder capital acumulado.

Basta um breve levantamento da historicidade brasileira para se perceber como o ideário progressista levou tempo para se firmar no ponto mais alto do poder. Majoritariamente, o Brasil foi conduzido não só pelos herdeiros do colonialismo; mas, pelas práxis políticas e sociais por eles defendidas.

Daí o progressismo, no Brasil, encontrar tamanha resistência para se afirmar. Além das construções ideológicas deturpadas, com o objetivo de desqualificar seus integrantes e suas propostas, reforçando um discurso de medo e ódio a seu respeito, falta-lhes o equilíbrio do poder capital para disputar os espaços sociais em critério de igualdade.

Assim, qualquer um que defenda a sua identidade progressista, no campo político brasileiro, corre sim, o mesmo risco que Marielle correu. Afinal, é preciso admitir que o conservadorismo, cujas raízes profundas estão fixadas nos tempos coloniais, está devidamente capilarizado dentro da estrutura organizacional e institucional, do país.

Tudo transita sob a observância invisível dos membros e simpatizantes desse pacto ideológico. E quando necessário, o poder capital dessa gente entra em cena para acelerar ou desacelerar os movimentos. Algo que ultrapassa as fronteiras dos próprios poderes institucionalizados. Portanto, não é de hoje que o Brasil vive a existência de um poder paralelo, o poder conservador das elites e seus matizes, mais ou menos afortunados.

Haja vista como, nas últimas décadas, o progressismo brasileiro vem sendo asfixiado pelas práxis empregadas por esses grupos, com ou sem apoio de seus simpatizantes no cenário internacional. Eles não mediram esforços, de nenhuma maneira, a fim de interromper, ou pelo menos tentar, a ascensão progressista, no país.

Precarizaram o trabalho com a Reforma Trabalhista. Trouxeram o país de volta ao cenário da insegurança alimentar. Construíram uma Reforma da Previdência extremamente perversa e cruel. Impuseram a estrutura econômica brasileira ao alinhamento dos mercados. Retrocederam em leis ambientais importantíssimas. Fizeram emergir uma onda de casos de trabalho análogo à escravidão. Na Reforma Tributária, como já era de esperar, rejeitaram a proposta de taxar grandes fortunas. ...  

E o assassinato de Marielle Franco tem a ver, também, com as ingerências das elites conservadoras, dado o vigor da sua posição progressista na vereança, no Rio de Janeiro. Ela despontava como uma liderança importante nesse cenário e incomodava as pretensões e os interesses de seus opositores das bancadas conservadoras. Por isso calaram a sua voz.

Do mesmo modo que calaram outros progressistas, tais como Chico Mendes, Bruno Pereira, o jornalista britânico Dom Philip, a missionária Dorothy Stang. A ideia que eles consideram é de que é preciso calar as vozes do progressismo, para silenciar a população e mantê-la alienada e subserviente.

No entanto, esse tipo de silenciamento me traz uma outra perspectiva a respeito. Com toda a inserção de poder, inclusive capital, o que temem as camadas conservadoras ao ponto de precisar eliminar pessoas, as quais estão em posição de desvantagem? Será que o progressismo desaparecerá por isso?

Bem, pessoas morrem; mas, as ideias não. Especialmente, quando a realidade que as sustenta se recrudesce a cada dia e demanda por transformação. Não é á toa que Benjamin Franklin manifestou: “A justiça nunca será feita até aqueles que não são afetados se indignarem como os que são”.

Assim, diante de tamanha avidez pelo poder, por parte dos conservadores, e de todas as manifestações do imponderável que tem ocorrido sobre o planeta, o progressismo parece com o campo aberto para se consolidar e materializar a amplidão da indignação popular, antes do que se possa imaginar.   

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Mais um lance de bola fora ...

Mais um lance de bola fora ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Detesto “mais ou menos”. Especialmente, sentimentos e emoções. Sendo assim, me incomoda profundamente deparar com uma indignação mais ou menos. Os veículos de comunicação e informação, nacionais e estrangeiros, repercutiram o lamentável episódio no meio futebolístico, em que o atleta brasileiro mais incrível dos últimos tempos, um verdadeiro gênio da bola, foi preterido à Bola de Ouro 2024 1. O motivo: o racismo e o modo como ele vem lidando com o assunto.

Bem, esse é o ponto de reflexão. Qualquer um, com o mínimo senso de humanidade, de empatia, tem sim, que se indignar com todas as afrontas, desrespeitos e violências, as quais esse jovem talento do futebol vêm sofrendo, desde que foi jogar na Espanha. Mas, essa indignação tem que ser ampla e irrestrita. Tem que ser capaz de abrir os olhos e as mentes em relação ao que acontece, também, no cotidiano global.

Não só, porque o racismo é crime; mas, porque ele emerge de crenças, valores e princípios históricos e passa a compor um conjunto de práxis perversas e cruéis que legitimam as desigualdades no planeta. Simplesmente, porque ele é um conceito estabelecido pelas classes dominantes, ao longo de séculos, a fim de definir critérios de superioridade e de inferioridade, de importância e de desimportância social, de pertencimento e de não pertencimento, ...

Com o único propósito de preservar regalias, privilégios e poderes, acumulados historicamente, e sustentados com base no eurocentrismo, para designar a centralidade e a superioridade da visão europeia sobre as outras visões de mundo, dentro de diferentes aspectos. Desse modo, o racismo permanece exercendo o seu papel sem encontrar a devida resistência a respeito. A explicação é simples: as heranças do colonialismo e do imperialismo (neocolonialismo) que não se dissiparam com o tempo.  

O poder, em todas as suas instâncias, está, como sempre esteve, nas mãos daqueles que, consciente ou inconscientemente, transpiram o conceito de eugenia 2, de aporofobia, de misoginia, de sexismo, de xenofobia, de intolerância religiosa e tantas outras formas de discriminação e preconceito.  As chamadas classes dominantes, ou elites, ou oligarquias, não importa a denominação, são as responsáveis pela contínua reafirmação e disseminação desses pensamentos.

E elas têm tanta certeza de que não serão jamais incomodadas no seu espaço social, no seu protagonismo, que manifestam as suas ideias e atitudes abjetas sem quaisquer sinais de constrangimento ou incômodo. Elas se apropriam, a tal ponto, desse lugar de autoridade, que sequer temem as consequências dos seus comportamentos. Se julgam realmente acima do Bem e do Mal.

José Saramago escreveu na epígrafe do seu “Ensaio sobre a Cegueira” (1995), “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”. Pois é, nosso grande problema é não levar esse sábio conselho a sério! Inadvertidamente, saímos por aí, distribuindo cordialidades, apoios e simpatias para muitos que não passam de nossos piores algozes. Gente que, meia dúzia de palavras, já seria o suficiente para destilar toda a sua ausência de empatia, de solidariedade, de respeito, de humanidade.

Mas, por incrível que pareça, continuamos mantendo laços sociais, como se nossa indignação pudesse, por alguma razão qualquer, ser flexibilizada, relativizada.  Como se fosse impossível admitir a dimensão brutal desses comportamentos e palavras, sendo preferível  abster-se de uma atitude mais efetiva. Algo que, talvez, esteja associado inconscientemente às memórias da hierarquização colonial, quando existiam dominados e dominadores, explorados e exploradores, e um sentimento de medo silenciava quem estava em desvantagem social.

Lamento, mas é essa nossa indignação mais ou menos que alimenta a perpetuação histórica do racismo e de quaisquer outras formas de discriminação e preconceito, mundo afora. Quando não nomeamos corretamente as injúrias, as ofensas, as violências cotidianas, que partem como flechas orientadas do topo da pirâmide social. Quando silenciamos diante de todo tipo de indignidade humana.

Nelson Mandela dizia que “Nascemos para manifestar a glória do Universo que está dentro de nós. Não está apenas em um de nós: está em todos nós. E conforme deixamos nossa própria luz brilhar, inconscientemente damos às outras pessoas permissão para fazer o mesmo. E conforme nos libertamos do nosso medo, nossa presença, automaticamente, libera os outros”. Portanto, se encolher, se invisibilizar, se calar, ... nada disso vai impedir que você seja quem é e/ou que as classes dominantes desconstruam seus retrógrados paradigmas.

Não nos esqueçamos de que a luta contra qualquer discriminação ou preconceito começa na afirmação legítima do ser humano, seja ele quem for, esteja ele onde estiver. Pois, segundo Angela Davis, “Numa sociedade racista, não basta não ser racista. É necessário ser antirracista”, ou seja, assumir uma postura social de ação contra o ódio, o preconceito, o racismo sistêmico e a opressão estrutural de grupos marginalizados racial e etnicamente. Afinal, de contas, “Se você fica neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor” (Desmond Tutu).

domingo, 27 de outubro de 2024

Mais do mesmo...

Mais do mesmo...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ah, por favor, nada das dicotomias clichês! Vencedores. Perdedores. Não há momento melhor, do que ao final de um pleito eleitoral, para dissecar as camadas dos acontecimentos e apurar o grau de avanço e de transformação que conseguiu-se imprimir ou não, ao processo.

E nesse ponto, surpresa zero! O trânsito do tempo, no Brasil, infelizmente, não é capaz de romper com seus ranços coloniais. Tudo parece permanecer sob a mesma lógica, com as descendências da metrópole ditando os rumos do país. Como se tal protagonismo lhes coubesse como herança.

Não só do ponto de vista do ideário propositivo; mas, de práxis que se acreditava estarem extintas do cenário nacional. O Brasil, em 2024, reencenou com tintas fortes o Brasil da Velha República (1889 a 1930). Muito voto comprado. Muita violência política. Muito conservadorismo de fachada. ... Enfim.

Apesar de uma estrutura judiciária dedicada a cuidar dos trâmites e do cumprimento à legislação eleitoral vigente, nunca se viu tanto desrespeito, tanta afronta, tanto crime configurado, sem que as medidas cabíveis e esperáveis fossem tomadas efetiva e rapidamente.

E se o silêncio do judiciário ecoa, quando não deveria, precedentes perigosos são abertos para a manutenção da Democracia. Deveríamos nos lembrar do que dizia José Saramago: “A única maneira de liquidar o dragão é cortar-lhe a cabeça, aparar-lhe as unhas não serve de nada”.

Bem, mas não foram somente as instituições que silenciaram. Houve um outro tipo de silêncio que repercutiu do próprio eleitor. Ele foi tão ruidoso que deixou atônitos os candidatos, os staffs partidários, os jornalistas, os analistas, os pesquisadores. Todos tentando compreender o que quer o eleitor?

Não sei se ele próprio saberia responder. Mas, considerando que muitas faces do comportamento do eleitor brasileiro não difere de outros, mundo afora, penso que o ponto de partida seja olhar com atenção para a contemporaneidade.

Afinal, foi ela quem fez emergir e exacerbar o individualismo, o egoísmo e o narcisismo, como pilares de sustentação da chamada sociedade de consumo. Todos querem a satisfação dos seus desejos e delírios, o tempo todo, como se isso fosse realmente possível. Acontece que não é.

Então, há tempos, pode-se observar um crescimento da incapacidade humana em lidar com os fracassos, as negativas, as impossibilidades. De modo que o não se tornou intolerável, enquanto a insubordinação, a rebeldia, a desordem e o conflito tornaram-se os instrumentos de substituição da civilidade, em seus mais diversos aspectos.

Apesar da grande massa do eleitorado não dispor da possibilidade de satisfazer suas vontades mediante o poder capital, por motivos óbvios estampados em um leque de desigualdades históricas, no país, seus pretensos representantes político-partidários conhecem o caminho das pedras para nutrir seus sonhos e esperanças.

E esse é o ponto. Nem só de promessas vive a política contemporânea!  Ela precisou se unir e tecer alianças com outros segmentos sociais capazes de manipular e persuadir seus eleitorados, a partir de uma construção discursiva acessível e objetiva.

A política foi, então, alçada aos mais diferentes espaços, reais e virtuais, pelos quais transitam seu público-alvo. Um processo de verdadeira exaustão repetitiva, de informações distorcidas, enviesadas e/ou adulteradas, realizado por quem tem vasto domínio nesse tipo de comunicação.

Diante de um recorte temporal em que a pressa, o imediatismo, a impaciência, vigoram como palavras de ordem, a importância da verdade e da realidade foi sumariamente desconsiderada. Sobretudo, quando as informações chegam a partir de indivíduos que ocupam algum tipo de autoridade social.  

Inclusive, essas pessoas são estimuladas a defender a sua liberdade, o seu poder de escolha, quando, na verdade, estão subjugadas a mais profunda alienação política, que visa atender a determinado interesse político-partidário. Elas são simplesmente massa de manobra de um projeto político, muitas vezes, alheio as suas próprias demandas.

Portanto, nada diferente do que tem ocorrido na história brasileira, há pouco mais de 500 anos. Desde sempre, as escolhas, as decisões, o futuro do país, é realizado nos bastidores, na surdina, pelas oligarquias detentoras do poder. O voto, o símbolo maior da Democracia, não passa de instrumento legitimador da manutenção oligárquica, no país. Não há, então, a materialização da representatividade popular, no que diz respeito aos seus anseios e necessidades.  

Assim, “tudo como dantes no quartel de Abrantes”. Mais um pleito eleitoral e uma história requentada.  O pior é saber que há desejosos por alianças, por frentes-amplas, que no fundo só fazem garantir a manutenção de membros das oligarquias nos governos, a fim de que suas regalias e privilégios não sejam minimamente perturbadas ou interrompidas. Haja vista, o exemplo que se tem, nesse momento, no Congresso da República.   

sábado, 26 de outubro de 2024

Escolhas ...

Escolhas ...

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Amanhã será o 2º turno das eleições, em diversos municípios brasileiros. Mais um momento de reafirmação democrática, a partir da escolha representativa popular. Algo que esconde, para uma imensa maioria, a dimensão da importância e da complexidade desse ato. Afinal de contas, entre o ideal e a realidade, as marcas da historicidade nacional impossibilitam a inexistência de uma profunda frustração.

Começando, pelo fato de que em muitos lugares a representatividade político-partidária conserva elementos de um ranço colonial que contraria flagrantemente certos valores prezados pela democracia, como é o caso da liberdade e da autonomia no exercício do voto. Reafirmando, então, um sentimento de subserviência e de obediência às forças de dominância do poder local.

Depois, há de se considerar um quadro histórico de inércia repetitiva que aponta para a incapacidade de transformação social através do voto. De modo que, até mesmo, o cidadão menos letrado, consegue ver a ineficácia da sua escolha representativa, quando essa não consegue materializar, seja no legislativo ou no executivo, nenhum sinal de melhoria para a sua condição social. Em suma, ter um representante político-partidário não significa ser efetivamente representado nas esferas do poder.

Tanto que, em pleno século XXI, há quem barganhe o voto, como último recurso para materializar alguma melhoria na sua condição social. Alguns recebem dinheiro para votar em um determinado candidato. Outros recebem benefícios, tais como cesta básica, pintura da casa, atendimento médico-odontológico, ... Outros aguardam por alguma oportunidade no serviço público. Como se o voto pudesse valer o tamanho da necessidade do eleitor.

Assim, a percepção em relação ao exercício democrático do voto se distancia do que ele realmente representa na dinâmica da vida cotidiana. O cidadão passa a não estabelecer uma associação entre as suas escolhas representativas e as suas expectativas quanto aos ganhos ou prejuízos decorrentes delas. Há, portanto, um sentimento descompromissado em relação ao voto, que tende a legitimar todo o processo deteriorativo da política nacional.

Não é à toa que há quem fale em votar no menos pior. Outros, em anular o voto. E aqueles que simplesmente decidem por se abster em comparecer à sessão eleitoral. Tamanho o descaso que marca o inconsciente coletivo nacional, quando se trata da escolha de um representante político-partidário. Mas, não para por aí. Com o advento das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), o descaso ganhou outros vieses.

A propagação de inverdades, a distorção de fatos, a destruição de reputações, a violência cibernética, ... por meio das mídias sociais, vem comprometendo a integridade do exercício democrático. Há um desvirtuamento completo em relação ao papel da construção política para o cotidiano da população. Muitos não entendem que más escolhas podem sim, repercutir terrivelmente sobre suas vidas.

Desse modo, lamentavelmente, chegamos a um nível de deformação de nossa incipiente consciência cidadã, que se pode dizer, em termos políticos, que o peso de ideias pré-fabricadas tem tido mais importância do que a resolução de problemas graves e reais, os quais assolam as unidades da Federação diariamente.   

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Qual é a Democracia que desejamos para o futuro da humanidade?

Qual é a Democracia que desejamos para o futuro da humanidade? 

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Fim de linha para o modelo social contemporâneo? Ao que tudo indica, sim. Não há possibilidade de se manter em cima do muro; sobretudo, quando o assunto é a Democracia. E isso não significa que alguém irá cobrar por um posicionamento a respeito. Na verdade, é no silêncio da consciência de cada indivíduo que as conjunturas se propuseram ressoar para a manifestação de uma escolha.

Enquanto, um empresário multimilionário, naturalizado norte-americano, pretende distribuir milhões de dólares por votos ao partido Republicano 1, nas eleições à Presidência dos EUA, em novembro, José Mujica, ex-Presidente do Uruguai, conhecido mundialmente por seu estilo de vida simples e suas ideias progressistas, fez, talvez, seu último discurso durante um comício do candidato uruguaio 2, no último sábado.

Duas figuras diametralmente opostas, cujas recentes manifestações públicas nos impõem uma das mais importantes reflexões contemporâneas, ou seja, qual é a Democracia que desejamos para o futuro da humanidade?  Pode ser que uns e outros, por aí, considerem essa pergunta complexa ou difícil de responder, pelo quão desafiadora ela é, no sentido de nos confrontar com nossos mais profundos valores, crenças, princípios, emoções e sentimentos.

Algo que inevitavelmente abre um leque de ponderações entre o TER e o SER, sob perspectivas diversas. Porque o TER transita pela materialidade capital da aquisição e da manutenção da Democracia, abdicando da liberdade de escolha que é o primeiro passo da construção democrática.

Já o SER, representa a genuína apropriação do caráter democrático pelo indivíduo, incapaz de se render a quaisquer apelos materialistas para existir. Há uma clareza indiscutível no ser democrático, porque ele é, ele não está. Ele não depende de nada além da própria consciência.

De modo que esse panorama nos provoca quanto à nossa resistência em não ceder às conveniências imediatistas, aos apelos ilusórios, aos efeitos manada do mundo. O que se espera é uma consciência do papel social da Democracia, verdadeiramente plena.

Ao contrário de uma mera interpretação pessoal e enviesada. Porque isso, caro (a) leitor (a) não só não é Democracia, como abre precedentes perigosos em relação a outras questões importantes para o equilíbrio da convivência e da coexistência social.

A defesa da Democracia pede uma convicção absoluta sobre o que ela realmente significa, ou seja, um sistema político pautado pelo respeito aos princípios que regem a liberdade humana, baseando-se em uma governança majoritária; mas, ao mesmo tempo, observando o equilíbrio em relação aos direitos individuais e minoritários.

Pois é, a Democracia não se orienta pelo individualismo, pelo egoísmo, pelo narcisismo, tão comuns na contemporaneidade. Ela tem um olhar social coletivo, plural, multifacetado. O que explica porque a Democracia é tão desafiadora.

Ora, equilibrar as diferenças em busca de um denominador comum, não é tarefa para qualquer indivíduo. A Democracia pede uma disposição dialógica incomensurável, um exercício argumentativo aguerrido, uma capacidade de negociar inimaginável. E tudo isso é sim, bastante desafiador, para certas personalidades humanas.

Reconhecer que há limites, que há pontos de vista diferentes, que há necessidade de observância das realidades, ... não deveria ser; mas, acaba se tornando um gigantesco obstáculo para a Democracia. Especialmente, quando o contexto contemporâneo tem buscado legitimar o arraigamento das posições, das escolhas, das decisões.

Daqui e dali criam-se polos de divergência, tentando sobrepor ideias e opiniões a qualquer preço. Fazendo com que a Democracia esteja constantemente sob ataque nas trincheiras de conflitos e guerras, na medida em que a ideologia antidemocrática se utiliza de crises econômicas, desastres naturais e, sobretudo, ameaças à segurança.  

Por essas e por outras, é que os dois exemplo citados acima, do empresário multimilionário e do ex-Presidente do Uruguai, tornam-se verdadeiras provocações ao senso democrático contemporâneo. Na materialidade de suas biografias, de suas atitudes e comportamentos, cada um nos permite traçar uma análise crítica e reflexiva sobre os nossos próprios parâmetros democráticos.  

Qual deles está mais próximo ou distante de nós? É, um exercício bastante revelador! Mas, como dizia o escritor e poeta gaúcho, Mario Quintana, “Democracia é oportunizar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, depende de cada um”. Afinal de contas, “A democracia é atividade criadora dos cidadãos e aparece em sua essência quando existe igualdade, liberdade e participação” (Marilena Chauí).

sábado, 19 de outubro de 2024

A estarrecedora monetização da vida

A estarrecedora monetização da vida

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

De fato, é estarrecedor como a monetização da vida, em seus mais diferentes vieses, tem contribuído para a deterioração da ética e da moral social. Os recentes casos que estamparam as páginas dos veículos de comunicação e de informação, um falando sobre erros em exames de DNA e outro de pelo menos 6 pacientes infectados por HIV, após receberem um transplante de órgãos, exemplificam bem a situação.

Fala-se muito de humanização da saúde; mas, vira daqui e mexe dali, se esbarra, na verdade, com muita monetização. Algo que parece contribuir na materialização da necropolítica no país, tendo em vista que, tamanho absurdo, quase sempre, ocorre sob o guarda-chuva das políticas públicas.

De saída, então, já se percebe que a importância da vida de um cidadão é medida pelo seu status econômico. Fomentando um lamentável equívoco quanto ao pagamento pela prestação de um atendimento de saúde. Ora, seja na rede pública ou na rede privada, o cidadão brasileiro está pagando pelos serviços! No Sistema Único de Saúde (SUS), através dos seu impostos. Na rede privada, de forma particular ou via plano de saúde.

O que nos faz perceber que a saúde é um dos bens que já estão monetizados na contemporaneidade. De modo que a sua rapidez, eficiência e excelência, também, são diretamente proporcionais a essa monetização. O serviço prestado acaba por acontecer, inevitavelmente, de acordo com as possibilidades de recurso financeiro dos pacientes e seus familiares.

E aí, não há como negar, que a rede pública transita por muito mais desafios e obstáculos do que a rede privada. Não me refiro apenas ao gargalo de serviços, por carência de profissionais, infraestrutura, equipamentos e insumos; mas, pela insuficiência de investimentos públicos que sejam capazes de equacionar uma demanda de serviços que vem se ampliando, no país, nas últimas décadas.

Caro (a) leitor (a), não se pode esquecer, por exemplo, se não fomos capazes de tratar efetivamente doenças tropicais que assolam a população, desde os primórdios da colonização, o que dizer das novas patologias que exigem tratamentos, muitas vezes, multidisciplinares e medicações de elevadíssimo custo? Além disso, essa monetização da saúde está imersa, também, em uma teia burocrática que impõe, amiúde, a judicialização.

Erro em licitações e contratos. Superfaturamento de serviços e insumos. Desvios de verbas. Insuficiência de leitos; sobretudo, em unidades de tratamento intensivo.  Indisponibilidade de serviços. ... Obrigam os usuários da rede pública a buscarem solução junto ao judiciário, para suas demandas, em sua maioria, de urgência.  

E quando se pensa que já se chegou ao fundo do poço gerado pela monetização, nos deparamos com o mais absoluto grau de irresponsabilidade técnica, nos recentes casos de erros em exames de DNA e de pacientes infectados por HIV, após receberem um transplante de órgãos.

No cerne do problema, clínicas privadas prestadoras de serviço para a rede pública. Dois exemplos do que não poderia acontecer, em hipótese alguma. Mas, contrariando os artigos 196 e 197, da Constituição Federal de 1988, aconteceram.

Embora, não haja o que possa reparar os prejuízos das pessoas que tiveram suas vidas afetadas por um erro dessa dimensão, é preciso que haja não só a responsabilização de todos os envolvidos; mas, uma reformulação das práxis em saúde.  

É preciso deixar claro aos cidadãos o que pesa mais para a saúde brasileira: a humanização ou a monetização? Porque a dúvida tem levado a uma reafirmação, cada vez mais profunda, do viés necropolítico, o qual estabelece parâmetros em que a submissão da vida pela morte está legitimada, no país.

Há uma lógica conexão entre vida e saúde. Se há defesa para a vida, é fundamental que haja para a saúde, também. Segundo a própria Organização Mundial da Saúde (OMS), “Saúde é o estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente a ausência de doença”, portanto, a humanidade está bem mais doente do que imagina.

A continuar na sua obsessão em monetizar a vida, em seus mais diferentes vieses, ela tende a acabar sucumbindo pelo seu adoecimento físico, mental e social. Não nos esqueçamos, “O maior erro que um homem pode cometer é sacrificar a sua saúde a qualquer outra vantagem” (Arthur Schopenhauer).