sábado, 7 de outubro de 2023

Voltamos aos tempos do faroeste? Talvez


Voltamos aos tempos do faroeste? Talvez.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Não sou especialista na área de segurança; mas, enquanto ser humano e cidadã, não tenho como não enxergar a realidade contemporânea brasileira, sendo de uma terra sem lei. Não pelo fato de não existirem leis. Existem muitas.

Mas, as leis por si só jamais representaram um freio efetivo para as investidas da criminalidade e da violência. Quando as pessoas querem subverter as regras sociais, elas simplesmente o fazem. Por isso, tenho tentado entender, com um pouco mais de reflexão, o que se apresenta diante de nós.

Talvez, o momento manifeste exatamente o colapso da situação brasileira, considerando o episódio em que três médicos foram brutalmente executados e um outro ficou em estado grave, em plena orla da cidade do Rio de Janeiro. Os quatro participavam de um congresso de ortopedia.

Assim, me permito falar em colapso, porque esse parece ser um ponto fundamental de análise, considerando que, até bem pouco tempo, esse cenário de barbárie parecia estar restrito às áreas mais periféricas e marginalizadas dos espaços urbanos.

A explicação para tal se dava pela construção histórica, no inconsciente coletivo, de que a criminalidade e a violência são fenômenos presentes majoritariamente nas camadas menos favorecidas e privilegiadas da sociedade.

Acontece que essa não é uma receita de bolo. Não dá, portanto, para homogeneizar a insegurança sob um determinado viés, quando se trata de um país desigual e multifacetado, como é o Brasil. Por isso, não resolve exercer algum tipo de política de segurança para uns em detrimento de outros.

Aliás, essa discrepância de acessibilidade a tais políticas é, na verdade, fruto dos vazios sociais que o Estado se permite fomentar. Quando o governo legitimamente constituído opta por uma política de governança seletivizada se torna inevitável que elementos estranhos a ele vejam uma oportunidade de se firmar como um poder paralelo nesses locais.

Mas, nem por isso, a situação está resolvida, como querem fazer pensar. Simplesmente, porque o espaço urbano é fluido, é vivo, fazendo com que a presença de fronteiras territoriais imaginárias, construídas a partir das desigualdades históricas nacionais, seja inútil para explicar as delinquências e os desvirtuamentos sociais, de modo preciso e objetivo.

No frigir dos ovos, a criminalidade e a violência acabam escorrendo como areia entre os dedos das autoridades e se espalhando rapidamente por toda a geografia da cidade.  Afinal, diante da lei da oferta e da procura, o número de interessados em ocupar os vazios e dar voz de comando ao poder paralelo é muitas vezes superior à territorialidade disponível, dando início as disputas de alto impacto beligerante no cenário da cidade.

Como o Estado se omitiu nas suas responsabilidades institucionais, quando o problema ainda parecia restrito às áreas periféricas e marginalizadas dos espaços urbanos, então, ele se vê acanhado e sem ação para enfrentar a dimensão dos desdobramentos decorrentes das ações desse poder paralelo ou Terceiro Poder.

Aí ele cai na tentação equivocada de aplicar a velha práxis do punitivismo para resolver os desarranjos sociais que culminam em toda a criminalidade e violência. Assim, ele se abstém de admitir que há presídios lotados, cujas condições de total indignidade, não só dizem respeito a uma plena inexistência de possibilidades de recuperação social para os detentos, como procriam pontes de comunicação e de ação dentro e fora dos seus muros.

O que significa que esse modelo vigente fracassa totalmente como um inibidor para a expansão da criminalidade e da violência no país.  Sem enxergar o cerne do mal que produz a delinquência, elas permanecerão se alastrando pelos espaços urbanos. Por isso, não basta punir o infrator sem combater a causa que o levou à infração e à violência.

Fazer dos infratores verdadeiros bodes expiatórios para exercer um tipo de domesticação social, não adianta absolutamente nada. Sem determinar exatamente o que se entende por segurança não avançaremos um milímetro na discussão.  Pode até ser clichê; mas, a verdade é que criminalidade gera criminalidade e violência gera violência.

Basta ver como o país aceita a matança de seres humanos nas comunidades periféricas. Aceita o encarceramento em massa, de cidadãos das classes desprivilegiadas da sociedade, muitas vezes, sem o cumprimento do rito penal adequado. Aceita que cidadãos andem armados por aí, sabendo que o destino final desses artefatos é sempre na mão do crime organizado.

O pior é saber que há pessoas acreditando e defendendo que esse é o caminho para se resolver os desafios da segurança pública. Envoltos por esse discurso punitivista, se esquecem de observar que a criminalidade e a violência, no contexto contemporâneo, já saltaram de nível e não dizem mais respeito somente à agressividade, ao ódio, à intolerância, à barbárie ou ao tráfico de drogas, elas tratam das disputas intra e extraterritoriais de poder.

O que significa que há disputas entre as facções criminosas; mas, também, entre elas e o Estado. Algo que a ausência ou inexistência de políticas de segurança bem-estruturadas permitiu se consolidar.

Diante de uma certeza de impunidade, as facções criminosas que disputam o controle desse poder paralelo tiveram tempo suficiente para entender como a criminalidade e a violência não só são potencialmente rentáveis, como também podem tomar para si o poder legitimamente constituído.

Graças ao volume de recursos circulantes nas atividades ilegais desenvolvidas é que as facções criminosas se mantêm atuantes e capazes de driblar quaisquer tentativas de punição. Infelizmente, esse cenário significa que o Estado prova do próprio veneno das suas práxis corruptas presentes, secularmente, na sua estrutura.

A força capital do poder paralelo já mostra a sua importância quando apresenta suas ações políticas, jurídicas e comportamentais, como no caso da notícia veiculada pela imprensa de que os “Suspeitos da morte de médicos no Rio foram executados 12h após o crime”, ou seja, “os assassinos dos médicos, supostamente, teriam sido submetidos a um ‘tribunal do crime’ que lhes imputou a pena de morte” 1 .

Voltamos aos tempos do faroeste? Talvez. Um faroeste contemporâneo; mas, não menos beligerante e mortal. Portanto, diante das conjunturas, qualquer um de nós pode ser a bola da vez. Daí a necessidade de não repetir velhos padrões que já se mostraram totalmente ineficazes.

Por isso, gosto sempre de lembrar as palavras de Zygmunt Bauman, ao manifestar que “Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um é segurança e o outro é a liberdade. Você não consegue ser feliz, você não consegue ter uma vida digna na ausência de um deles, certo? Segurança sem liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos, incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então, você precisa dos dois”. Esse é o ponto de partida para se pensar numa solução a respeito.