Voltamos aos tempos do faroeste? Talvez.
Por Alessandra Leles Rocha
Não sou especialista na área de segurança; mas, enquanto
ser humano e cidadã, não tenho como não enxergar a realidade contemporânea brasileira,
sendo de uma terra sem lei. Não pelo fato de não existirem leis. Existem muitas.
Mas, as leis por si só jamais representaram um
freio efetivo para as investidas da criminalidade e da violência. Quando as
pessoas querem subverter as regras sociais, elas simplesmente o fazem. Por isso,
tenho tentado entender, com um pouco mais de reflexão, o que se apresenta
diante de nós.
Talvez, o momento manifeste exatamente o colapso
da situação brasileira, considerando o episódio em que três médicos foram brutalmente
executados e um outro ficou em estado grave, em plena orla da cidade do Rio de Janeiro. Os quatro participavam de um congresso de ortopedia.
Assim, me permito falar em colapso, porque esse
parece ser um ponto fundamental de análise, considerando que, até bem pouco
tempo, esse cenário de barbárie parecia estar restrito às áreas mais periféricas
e marginalizadas dos espaços urbanos.
A explicação para tal se dava pela construção histórica,
no inconsciente coletivo, de que a criminalidade e a violência são fenômenos presentes
majoritariamente nas camadas menos favorecidas e privilegiadas da sociedade.
Acontece que essa não é uma receita de bolo. Não
dá, portanto, para homogeneizar a insegurança sob um determinado viés, quando
se trata de um país desigual e multifacetado, como é o Brasil. Por isso, não
resolve exercer algum tipo de política de segurança para uns em detrimento de
outros.
Aliás, essa discrepância de acessibilidade a tais
políticas é, na verdade, fruto dos vazios sociais que o Estado se permite
fomentar. Quando o governo legitimamente constituído opta por uma política de
governança seletivizada se torna inevitável que elementos estranhos a ele vejam
uma oportunidade de se firmar como um poder paralelo nesses locais.
Mas, nem por isso, a situação está resolvida, como
querem fazer pensar. Simplesmente, porque o espaço urbano é fluido, é vivo, fazendo
com que a presença de fronteiras territoriais imaginárias, construídas a partir
das desigualdades históricas nacionais, seja inútil para explicar as delinquências
e os desvirtuamentos sociais, de modo preciso e objetivo.
No frigir dos ovos, a criminalidade e a violência acabam
escorrendo como areia entre os dedos das autoridades e se espalhando
rapidamente por toda a geografia da cidade. Afinal, diante da lei da oferta e da procura,
o número de interessados em ocupar os vazios e dar voz de comando ao poder paralelo
é muitas vezes superior à territorialidade disponível, dando início as disputas
de alto impacto beligerante no cenário da cidade.
Como o Estado se omitiu nas suas responsabilidades
institucionais, quando o problema ainda parecia restrito às áreas periféricas e
marginalizadas dos espaços urbanos, então, ele se vê acanhado e sem ação para
enfrentar a dimensão dos desdobramentos decorrentes das ações desse poder
paralelo ou Terceiro Poder.
Aí ele cai na tentação equivocada de aplicar a
velha práxis do punitivismo para resolver os desarranjos sociais que culminam
em toda a criminalidade e violência. Assim, ele se abstém de admitir que há presídios
lotados, cujas condições de total indignidade, não só dizem respeito a uma
plena inexistência de possibilidades de recuperação social para os detentos, como
procriam pontes de comunicação e de ação dentro e fora dos seus muros.
O que significa que esse modelo vigente fracassa
totalmente como um inibidor para a expansão da criminalidade e da violência no
país. Sem enxergar o cerne do mal que
produz a delinquência, elas permanecerão se alastrando pelos espaços urbanos.
Por isso, não basta punir o infrator sem combater a causa que o levou à
infração e à violência.
Fazer dos infratores verdadeiros bodes expiatórios
para exercer um tipo de domesticação social, não adianta absolutamente nada.
Sem determinar exatamente o que se entende por segurança não avançaremos um
milímetro na discussão. Pode até ser
clichê; mas, a verdade é que criminalidade gera criminalidade e violência gera
violência.
Basta ver como o país aceita a matança de seres
humanos nas comunidades periféricas. Aceita o encarceramento em massa, de
cidadãos das classes desprivilegiadas da sociedade, muitas vezes, sem o
cumprimento do rito penal adequado. Aceita que cidadãos andem armados por aí,
sabendo que o destino final desses artefatos é sempre na mão do crime
organizado.
O pior é saber que há pessoas acreditando e
defendendo que esse é o caminho para se resolver os desafios da segurança
pública. Envoltos por esse discurso punitivista, se esquecem de observar que a
criminalidade e a violência, no contexto contemporâneo, já saltaram de nível e
não dizem mais respeito somente à agressividade, ao ódio, à intolerância, à
barbárie ou ao tráfico de drogas, elas tratam das disputas intra e extraterritoriais
de poder.
O que significa que há disputas entre as facções
criminosas; mas, também, entre elas e o Estado. Algo que a ausência ou inexistência
de políticas de segurança bem-estruturadas permitiu se consolidar.
Diante de uma certeza de impunidade, as facções
criminosas que disputam o controle desse poder paralelo tiveram tempo
suficiente para entender como a criminalidade e a violência não só são
potencialmente rentáveis, como também podem tomar para si o poder legitimamente
constituído.
Graças ao volume de recursos circulantes nas
atividades ilegais desenvolvidas é que as facções criminosas se mantêm atuantes
e capazes de driblar quaisquer tentativas de punição. Infelizmente, esse
cenário significa que o Estado prova do próprio veneno das suas práxis corruptas
presentes, secularmente, na sua estrutura.
A força capital do poder paralelo já mostra a sua
importância quando apresenta suas ações políticas, jurídicas e comportamentais,
como no caso da notícia veiculada pela imprensa de que os “Suspeitos da
morte de médicos no Rio foram executados 12h após o crime”, ou seja, “os
assassinos dos médicos, supostamente, teriam sido submetidos a um ‘tribunal do
crime’ que lhes imputou a pena de morte” 1
.
Voltamos aos tempos do faroeste? Talvez. Um faroeste
contemporâneo; mas, não menos beligerante e mortal. Portanto, diante das
conjunturas, qualquer um de nós pode ser a bola da vez. Daí a necessidade de não
repetir velhos padrões que já se mostraram totalmente ineficazes.
Por isso, gosto sempre de lembrar as palavras de Zygmunt
Bauman, ao manifestar que “Há dois valores essenciais que são absolutamente indispensáveis
para uma vida satisfatória, recompensadora e relativamente feliz. Um é
segurança e o outro é a liberdade. Você não consegue ser feliz, você não
consegue ter uma vida digna na ausência de um deles, certo? Segurança sem
liberdade é escravidão e liberdade sem segurança é um completo caos,
incapacidade de fazer nada, planejar nada, nem mesmo sonhar com isso. Então, você
precisa dos dois”. Esse é o ponto de partida para se pensar numa solução a
respeito.