domingo, 8 de outubro de 2023

As letras, as linguagens, tudo em nome da diversidade


As letras, as linguagens, tudo em nome da diversidade

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Ao saber da notícia de que Ailton Krenak 1 havia sido eleito para ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), pensei imediatamente na canção de Ivan Lins e Vitor Martins que diz: “Pra que nossa esperança / Seja mais que vingança / Seja sempre um caminho / Que se deixa de herança” 2.

Não podemos negar que o Brasil tem uma dificuldade imensa em reconhecer a verdadeira face da sua identidade sociocultural. O que, de certa forma, nos ajuda a entender porque somente após 126 anos de existência é que a ABL se permitiu ser o espelho da diversidade nacional.

Queiram ou não admitir, somos carentes sim, de conhecer na devida profundidade o pluralismo das nossas heranças culturais. E isso é inadmissível! Porque, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente, existem 266 povos originários no território brasileiro, falantes de mais de 150 línguas diferentes.

De modo que a presença de Ailton Krenak, na ABL, é a oportunidade de tornar acessível uma parte fundamental da nossa identidade sociocultural, que esteve invisibilizada ao longo desses pouco mais de 500 anos de Brasil. Sim, porque uma imensa maioria da população brasileira tem no seu imaginário uma ideia estereotipada dos povos originários, decorrente de uma formação de base eurocêntrica, que se impôs ao país através do colonialismo, entre os séculos XVI e XIX.

Portanto, Ailton krenak nos abre as portas para mergulharmos na nossa ancestralidade indígena. Uma viagem que começa pelas linguagens e transita por toda a expressão cultural das mais diversas etnias, o que traz robustez para nos apropriarmos da nossa verdadeira cidadania. Afinal, vira daqui e mexe dali todo brasileiro é fruto de uma expressão miscigenada do país. Em maior ou em menor escala, corre em nossas veias esse sangue plural da diversidade.

E aí, eis que uma outra lembrança atravessou meu pensamento. Uma palestra da Monja Coen, que assisti, recentemente, em que ela dizia que “O impossível demora um pouco mais”. É que a reflexão sobre a demora em se ter um representante dos povos originários em um espaço de cultura tão importante, não deixa de trazer um gosto amargo de inconformismo, de tempo perdido.

Mas, é preciso entender que as marcas deixadas pelo sistema colonial, no Brasil, foram demasiadamente profundas. Em diversas direções e sentidos, o país ainda tenta digerir o ranço de absurdos que maculam e obstaculizam o desenvolvimento e o progresso social.  De modo que as palavras da Monja Coen chegam para aquietar e pacificar a alma, na medida em que possibilitam nos fazer entender que o mundo não para, que as metamorfoses estão aí, acontecendo alheias ao frisson da nossa ansiedade.

Porque certas transformações precisam ser fiadas dentro de conjunturas capazes de aceitá-las e recebê-las de uma maneira verdadeiramente positiva. Caso contrário, tudo se transforma em jogar pérolas aos porcos, sem nenhum sentido prático, produtivo. Aliás, isso deveria fazer pensar sobre a floresta e o seu caminho de formação e de renovação. Cada espécie tem seu tempo, sua ordem, seu biológico estado de ser. Devagar e sempre. Nem mais. Nem menos. Até chegar ao ponto certo de maturação.

De repente, quem sabe nossos olhos voltados para Ailton Krenak, na ABL, nos levem a olhar além das linguagens, das palavras, para olhar para dentro de nós mesmos, da nossa ancestralidade desenhada com urucum, açafrão, jenipapo e tabatinga? Como um sopro de esperança de resgatar a humanidade perdida dentro de nós, a partir daquilo que parece ser tão simples, tão natural.

Aliás, ele próprio escreveu que “’Você não pode se esquecer de onde você é e nem de onde você veio, porque assim você sabe quem você é e para onde você vai’. Isso não é importante só para a pessoa do indivíduo, é importante para o coletivo, é importante para uma comunidade humana saber quem ela é, saber para onde ela está indo...”.

Só posso dizer que me sinto muito feliz, pela indicação de Ailton Krenak para a ABL. Não se trata de uma justiça histórica, a presença de um representante dos povos originários nesse espaço, porque ainda temos muito, enquanto país, para avançar nesse sentido. Mas se trata de um presente para todos nós, no sentido de trazer alguém importante, fundamental, com todo o seu lastro de conhecimento para compartilhar conosco o seu olhar e as suas perspectivas sobre a vida.

Não é à toa, então, que decidi encerrar esse pequeno texto com a seguinte citação do novo membro da ABL, que diz “Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos” (Ideias para adiar o fim do mundo, 2019)