As
letras, as linguagens, tudo em nome da diversidade
Por
Alessandra Leles Rocha
Ao saber da notícia de que Ailton
Krenak 1 havia sido eleito para ocupar uma
cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL), pensei imediatamente na canção
de Ivan Lins e Vitor Martins que diz: “Pra que nossa esperança / Seja mais
que vingança / Seja sempre um caminho / Que se deixa de herança” 2.
Não podemos negar que o Brasil
tem uma dificuldade imensa em reconhecer a verdadeira face da sua identidade
sociocultural. O que, de certa forma, nos ajuda a entender porque somente após
126 anos de existência é que a ABL se permitiu ser o espelho da diversidade
nacional.
Queiram ou não admitir, somos
carentes sim, de conhecer na devida profundidade o pluralismo das nossas
heranças culturais. E isso é inadmissível! Porque, segundo dados do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), atualmente, existem 266 povos
originários no território brasileiro, falantes de mais de 150 línguas
diferentes.
De modo que a presença de Ailton
Krenak, na ABL, é a oportunidade de tornar acessível uma parte fundamental da
nossa identidade sociocultural, que esteve invisibilizada ao longo desses pouco
mais de 500 anos de Brasil. Sim, porque uma imensa maioria da população
brasileira tem no seu imaginário uma ideia estereotipada dos povos originários,
decorrente de uma formação de base eurocêntrica, que se impôs ao país através
do colonialismo, entre os séculos XVI e XIX.
Portanto, Ailton krenak nos abre
as portas para mergulharmos na nossa ancestralidade indígena. Uma viagem que
começa pelas linguagens e transita por toda a expressão cultural das mais
diversas etnias, o que traz robustez para nos apropriarmos da nossa verdadeira cidadania.
Afinal, vira daqui e mexe dali todo brasileiro é fruto de uma expressão
miscigenada do país. Em maior ou em menor escala, corre em nossas veias esse
sangue plural da diversidade.
E aí, eis que uma outra lembrança
atravessou meu pensamento. Uma palestra da Monja Coen, que assisti,
recentemente, em que ela dizia que “O impossível demora um pouco mais”.
É que a reflexão sobre a demora em se ter um representante dos povos
originários em um espaço de cultura tão importante, não deixa de trazer um
gosto amargo de inconformismo, de tempo perdido.
Mas, é preciso entender que as
marcas deixadas pelo sistema colonial, no Brasil, foram demasiadamente
profundas. Em diversas direções e sentidos, o país ainda tenta digerir o ranço
de absurdos que maculam e obstaculizam o desenvolvimento e o progresso social. De modo que as palavras da Monja Coen chegam
para aquietar e pacificar a alma, na medida em que possibilitam nos fazer
entender que o mundo não para, que as metamorfoses estão aí, acontecendo
alheias ao frisson da nossa ansiedade.
Porque certas transformações
precisam ser fiadas dentro de conjunturas capazes de aceitá-las e recebê-las de
uma maneira verdadeiramente positiva. Caso contrário, tudo se transforma em
jogar pérolas aos porcos, sem nenhum sentido prático, produtivo. Aliás, isso deveria
fazer pensar sobre a floresta e o seu caminho de formação e de renovação. Cada
espécie tem seu tempo, sua ordem, seu biológico estado de ser. Devagar e
sempre. Nem mais. Nem menos. Até chegar ao ponto certo de maturação.
De repente, quem sabe nossos
olhos voltados para Ailton Krenak, na ABL, nos levem a olhar além das
linguagens, das palavras, para olhar para dentro de nós mesmos, da nossa
ancestralidade desenhada com urucum, açafrão, jenipapo e tabatinga? Como um
sopro de esperança de resgatar a humanidade perdida dentro de nós, a partir
daquilo que parece ser tão simples, tão natural.
Aliás, ele próprio escreveu que “’Você
não pode se esquecer de onde você é e nem de onde você veio, porque assim você
sabe quem você é e para onde você vai’. Isso não é importante só para a pessoa
do indivíduo, é importante para o coletivo, é importante para uma comunidade
humana saber quem ela é, saber para onde ela está indo...”.
Só posso dizer que me sinto muito
feliz, pela indicação de Ailton Krenak para a ABL. Não se trata de uma justiça
histórica, a presença de um representante dos povos originários nesse espaço,
porque ainda temos muito, enquanto país, para avançar nesse sentido. Mas se
trata de um presente para todos nós, no sentido de trazer alguém importante,
fundamental, com todo o seu lastro de conhecimento para compartilhar conosco o
seu olhar e as suas perspectivas sobre a vida.
Não é à toa, então, que decidi encerrar esse pequeno texto com a seguinte citação do novo membro da ABL, que diz “Definitivamente não somos iguais, e é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações. O fato de podermos compartilhar esse espaço, de estarmos juntos viajando não significa que somos iguais; significa exatamente que somos capazes de atrair uns aos outros pelas nossas diferenças, que deveriam guiar o nosso roteiro de vida. Ter diversidade, não isso de uma humanidade com o mesmo protocolo. Porque isso até agora foi só uma maneira de homogeneizar e tirar nossa alegria de estar vivos” (Ideias para adiar o fim do mundo, 2019).