terça-feira, 10 de outubro de 2023

Outra guerra. Outra perplexidade.


Outra guerra. Outra perplexidade.

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Uma nova guerra e a perplexidade, mais uma vez, cobre o rosto da humanidade. Acontece que ela não absolve o ser humano do processo que produziu a beligerância. Houve inação. Postergação. Negligência. Descaso. ... De modo que, inevitavelmente, em algum momento a situação sairia fora de controle e o desfecho seria mais uma batalha sangrenta.

Mais uma razão para se ter cuidado com a linguagem. Estou vendo diversos veículos de comunicação designando o conflito entre ISRAEL e HAMAS, e não é bem por aí. Primeiro, porque se o Hamas deflagrou o conflito, a sua radicalidade e extremismo não define e massifica a população palestina.

Eles têm um projeto de poder próprio e usaram da situação palestina, que se arrasta historicamente. Mas, depois de agirem assim, não foram seus representantes as únicas vítimas. Muito pelo contrário.

A maioria dos mortos e feridos palestinos são pessoas que não hasteiam a bandeira do radicalismo e do extremismo. Trata-se de gente comum. Que sofre e padece o infortúnio de não ter uma luz no fim do túnel que lhe garanta a dignidade e a cidadania.

Segundo, porque essa designação deixa clara a distinção social que é atribuída a Israel, ao colocá-lo como estado-nação consolidado, ou seja, naturalmente em uma posição muito mais privilegiada, diplomaticamente, do que os palestinos.

Algo que cria um tipo de blindagem discursiva para ofuscar a participação israelense nesse ciclo histórico de conflitos, o qual inevitavelmente propicia o revanchismo mútuo que culmina na exacerbação da intolerância e da violência na região.

E como em todas as guerras que o mundo já presenciou, antes que se consiga conclamar os envolvidos para o diálogo, a discrepância do poderio bélico-militar deixará o peso da desigualdade marcado através dos números de mortos, feridos e mutilados.

O que deveria nos fazer pensar sobre os motivos e as razões que nos levam a aceitar a constante reafirmação do irresoluto. Parece mórbido, mas não há como não comparar esse comportamento, ao que ocorria nas arenas romanas, com suas doses homeopáticas de barbárie explícita, de desprezo humano abjeto.  

Sim, porque as agruras do mundo, estão aí, bem diante dos nossos olhos. Diariamente, estampando as manchetes dos veículos de comunicação e de informação, nacionais e estrangeiros. Sujeitas as abstenções voluntárias, ou não, dos passantes, que não querem se incomodar além de suas próprias bolhas. Como se esse pensamento fosse mesmo a tradução da realidade. Como se, na verdade, não passasse de mera ilusão ou idealização oportunista.

Até que o primeiro míssil seja lançado, ou a primeira bomba deflagrada, ou o primeiro prédio se faça em ruínas, ou os primeiros corpos apareçam estendidos no chão, ... Aí o ser humano entende que a violência, a agressividade, a intransigência, ... permeiam todos os lugares do planeta.

Acontece na Ucrânia, em Israel, na Cisjordânia, na Faixa de Gaza, no Sudão, no Rio de Janeiro, na Bahia, na Baixada Santista, ... em qualquer lugar onde seres humanos estejam dispostos a medir força, a medir poder. Qualquer um pode ser a bola da vez. Porque o radicalismo e o extremismo não fazem análise de currículo antes de matar, de destruir, de aniquilar.

Pois é, está aí o preço da inação, da postergação, da negligência, do descaso, da omissão. É preciso entender que o fazer, ou o não fazer, é uma escolha; mas, tem consequências. Algumas, irremediavelmente, fatais e, além de reverberar pelos séculos, ultrapassam as fronteiras imaginárias da geografia global.

De modo que tudo isso me faz pensar que, talvez, seja hora de reapresentar a exposição “Caminhando em seus sapatos” 1, de 2017, que possibilitou a milhares de pessoas, no Brasil, perceberem o mundo pela perspectiva do outro. Uma tentativa ousada de conclamar o ser humano a romper certas correntes e resgatar a essência humana.

Aliás, há um texto, atribuído à Clarice Lispector, que completa bem essa reflexão: “Antes de julgar a minha vida ou o meu caráter ... calce os meus sapatos e percorra o caminho que eu percorri, viva as minhas tristezas, as minhas dúvidas e as minhas alegrias. Percorra os anos que eu percorri, tropece onde eu tropecei e levante-se assim como eu fiz. E então, só aí poderás julgar. Cada um tem a sua própria história. Não compare a sua vida com a dos outros. Você não sabe como foi o caminho que eles tiveram que trilhar na vida”.

Portanto, muita atenção! As guerras sempre chegam com o discurso de se fazer justiça. Porém, este acaba omitindo um conjunto de injustiças, as quais resultam em ações, tantas vezes, questionáveis, sem que ninguém perceba (ou queira perceber) que está transitando por uma crescente espiral de violência e barbárie.

Enquanto a lógica se mantém colocando pessoas na condição de ameaça às leis e à ordem social, a humanidade se esquece de colocar os problemas em si, no centro da discussão, como prioridade. Acontece que problemas jamais puderam ser contidos, o suficiente, para caberem resignados dentro dos muros que ela decidiu construir.