A linguagem
e a beligerância
Por Alessandra
Leles Rocha
Já que o momento é de beligerância
global, nada mais oportuno do que dissecar o assunto sob aspectos, os quais,
muitas vezes, acabam passando à margem. Um deles é a linguagem, ou seja, o modo
como os eventos são trazidos à luz da humanidade e decodificados pelos indivíduos.
Temos que pensar que todos os
conflitos e guerras têm no mínimo dois lados, que para se fortalecer e alcançar
seus propósitos precisam angariar a simpatia e o apoio daqueles que não estão
envolvidos na questão. De modo que as habilidades e as competências linguísticas
se transformam sim, em armas ideológicas de guerra.
Durante a Segunda Guerra Mundial,
por exemplo, os Estados Unidos da América publicaram a revista “Em Guarda” 1, voltada para o público de diversos
países americanos, incluindo o Brasil, a qual “trouxe em seus mais de 720
artigos, elementos que contribuíram para uma análise de como os Estados Unidos
tentavam impedir os países do ‘Eixo’ de tornar a América Latina sua zona de influência.
[...] A imagem modelar da sociedade procurava ser disseminada por artistas,
músicos e intelectuais e não por imposição militar” 2.
Nem preciso dizer, que já estavam,
de certa forma, antevendo o que viria pela frente, a Guerra Fria. O maior
conflito político-ideológico ocorrido no planeta, que fora travado entre os
Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS), entre 1947 e 1991, utilizou maciçamente dos recursos linguísticos disponíveis
na dinâmica dos seus enfrentamentos.
Bem, se o resultado é de
conhecimento público, a bipolarização global, comumente designada como
capitalistas e comunistas, os efeitos sociais também o são. A política do medo
e da desconfiança presente nas suas respectivas armas ideológicas de guerra
reverbera, ainda, em pleno século XXI. O que significa que as linguagens
realmente cumpriram seu papel de moldar o inconsciente coletivo, segundo os
interesses desse ou daquele lado.
E é aí que reside a grande
ameaça. Nenhum conflito ou guerra produz verdadeiramente essa dicotomia de heróis
e vilões. Não, não há mocinhos e bandidos! Imersos no caldo histórico das
desavenças, dos interesses, dos poderes, do revanchismo mútuo, milhares de indivíduos
são expostos ao confronto, muitas vezes, até o limite do sangue e da dignidade.
Cada um tem a sua perspectiva modulada pela capacidade individual de análise;
mas, também, daquela produzida pelo controle e manipulação governamental.
Acontece que a segunda é, geralmente,
muito mais forte e impactante. Os recursos discursivos empregados são tão incríveis
que conseguem transformar ideias frágeis em argumentos irrefutáveis, que tomam de
assalto as almas vulnerabilizadas por realidades complexas e difíceis,
dominando-as por completo, como se lhes trouxessem um oásis de esperança e
felicidade. O melhor exemplo disso foi o discurso nazista de Hitler.
Portanto, não há ideário de paz
que não enfrente esse cenário de turbulências ideológicas e que demande a
abstenção das paixões mundanas para encontrar a isenção que é o caminho seguro
para a resolução.
No entanto, a realidade contemporânea
trouxe um novo elemento para compor esse desafio que são as Tecnologias da
Informação e da Comunicação (TICs). As mídias sociais, por exemplo, se tornaram
um catalisador de alta potência para viabilizar a disseminação de notícias,
especialmente, Fake News.
O que antes levava meses ou
semanas para chegar ao conhecimento do grande público, agora, acontece em um
piscar de olhos. De modo que as ameaças da desinformação adquiriram proporções
inimagináveis e bem mais graves do que se pode calcular. Como se fossem
estabelecidas diversas guerras dentro da guerra, gerando um nível de tensão e
de instabilidade social fora de controle.
Entretanto, o que a uma certa
distância parece ter contornos dinâmicos e intensos, na verdade, acaba sendo um
propulsor da paralisia social. Atraídos pela natureza desse visgo ideológico, as
pessoas param de se dedicar às prioridades e interesses cotidianos, para se
nutrir das novidades que lhes chegam pelas tecnologias, as quais estão
limitadas a esse recorte de assunto.
Isso faz com que, literalmente,
os olhos do mundo se voltem para um ponto comum. Porém, esse movimento, também,
causa prejuízos irreparáveis, considerando que o mundo padece de milhares de
agruras históricas, as quais, nem de longe, encontraram uma solução e foram, de
repente, sumariamente postergadas, mais uma vez. Afinal, a curiosidade sobre os
acontecimentos, ainda que sob diferentes razões, é terrivelmente incontrolável.
Então, depois de tecer essa breve
reflexão, lembrei-me das seguintes palavras de George Orwell: “A linguagem
política – e com variações isto é verdade para todos os partidos políticos, dos
Conservadores aos Anarquistas – é concebida para fazer com que mentiras pareçam
verdadeiras e o homicídio respeitável, e para dar uma aparência de solidez ao
vento puro”. O que significa que “se o pensamento corrompe a linguagem,
a linguagem também pode corromper o pensamento” (Política e a Língua Inglesa,
1946). Pensemos a respeito.
1 A maior
publicação do Department of Press and Publications, que era uma
subdivisão do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs
(OCIAA), em Washington, D.C. - file:///C:/Users/Usuario/Downloads/Dialnet-AsPromessasDaRevistaEmGuardaParaOBrasilNoPosguerra-5157915.pdf