quarta-feira, 11 de outubro de 2023

A linguagem e a beligerância


A linguagem e a beligerância

 

Por Alessandra Leles Rocha

 

Já que o momento é de beligerância global, nada mais oportuno do que dissecar o assunto sob aspectos, os quais, muitas vezes, acabam passando à margem. Um deles é a linguagem, ou seja, o modo como os eventos são trazidos à luz da humanidade e decodificados pelos indivíduos.

Temos que pensar que todos os conflitos e guerras têm no mínimo dois lados, que para se fortalecer e alcançar seus propósitos precisam angariar a simpatia e o apoio daqueles que não estão envolvidos na questão. De modo que as habilidades e as competências linguísticas se transformam sim, em armas ideológicas de guerra.

Durante a Segunda Guerra Mundial, por exemplo, os Estados Unidos da América publicaram a revista “Em Guarda” 1, voltada para o público de diversos países americanos, incluindo o Brasil, a qual “trouxe em seus mais de 720 artigos, elementos que contribuíram para uma análise de como os Estados Unidos tentavam impedir os países do ‘Eixo’ de tornar a América Latina sua zona de influência. [...] A imagem modelar da sociedade procurava ser disseminada por artistas, músicos e intelectuais e não por imposição militar” 2.

Nem preciso dizer, que já estavam, de certa forma, antevendo o que viria pela frente, a Guerra Fria. O maior conflito político-ideológico ocorrido no planeta, que fora travado entre os Estados Unidos da América (EUA) e a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), entre 1947 e 1991, utilizou maciçamente dos recursos linguísticos disponíveis na dinâmica dos seus enfrentamentos.

Bem, se o resultado é de conhecimento público, a bipolarização global, comumente designada como capitalistas e comunistas, os efeitos sociais também o são. A política do medo e da desconfiança presente nas suas respectivas armas ideológicas de guerra reverbera, ainda, em pleno século XXI. O que significa que as linguagens realmente cumpriram seu papel de moldar o inconsciente coletivo, segundo os interesses desse ou daquele lado.

E é aí que reside a grande ameaça. Nenhum conflito ou guerra produz verdadeiramente essa dicotomia de heróis e vilões. Não, não há mocinhos e bandidos! Imersos no caldo histórico das desavenças, dos interesses, dos poderes, do revanchismo mútuo, milhares de indivíduos são expostos ao confronto, muitas vezes, até o limite do sangue e da dignidade. Cada um tem a sua perspectiva modulada pela capacidade individual de análise; mas, também, daquela produzida pelo controle e manipulação governamental.

Acontece que a segunda é, geralmente, muito mais forte e impactante. Os recursos discursivos empregados são tão incríveis que conseguem transformar ideias frágeis em argumentos irrefutáveis, que tomam de assalto as almas vulnerabilizadas por realidades complexas e difíceis, dominando-as por completo, como se lhes trouxessem um oásis de esperança e felicidade. O melhor exemplo disso foi o discurso nazista de Hitler.

Portanto, não há ideário de paz que não enfrente esse cenário de turbulências ideológicas e que demande a abstenção das paixões mundanas para encontrar a isenção que é o caminho seguro para a resolução.

No entanto, a realidade contemporânea trouxe um novo elemento para compor esse desafio que são as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs). As mídias sociais, por exemplo, se tornaram um catalisador de alta potência para viabilizar a disseminação de notícias, especialmente, Fake News.

O que antes levava meses ou semanas para chegar ao conhecimento do grande público, agora, acontece em um piscar de olhos. De modo que as ameaças da desinformação adquiriram proporções inimagináveis e bem mais graves do que se pode calcular. Como se fossem estabelecidas diversas guerras dentro da guerra, gerando um nível de tensão e de instabilidade social fora de controle.

Entretanto, o que a uma certa distância parece ter contornos dinâmicos e intensos, na verdade, acaba sendo um propulsor da paralisia social. Atraídos pela natureza desse visgo ideológico, as pessoas param de se dedicar às prioridades e interesses cotidianos, para se nutrir das novidades que lhes chegam pelas tecnologias, as quais estão limitadas a esse recorte de assunto.

Isso faz com que, literalmente, os olhos do mundo se voltem para um ponto comum. Porém, esse movimento, também, causa prejuízos irreparáveis, considerando que o mundo padece de milhares de agruras históricas, as quais, nem de longe, encontraram uma solução e foram, de repente, sumariamente postergadas, mais uma vez. Afinal, a curiosidade sobre os acontecimentos, ainda que sob diferentes razões, é terrivelmente incontrolável.

Então, depois de tecer essa breve reflexão, lembrei-me das seguintes palavras de George Orwell: “A linguagem política – e com variações isto é verdade para todos os partidos políticos, dos Conservadores aos Anarquistas – é concebida para fazer com que mentiras pareçam verdadeiras e o homicídio respeitável, e para dar uma aparência de solidez ao vento puro”. O que significa que “se o pensamento corrompe a linguagem, a linguagem também pode corromper o pensamento” (Política e a Língua Inglesa, 1946). Pensemos a respeito.



1 A maior publicação do Department of Press and Publications, que era uma subdivisão do Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (OCIAA), em Washington, D.C. - file:///C:/Users/Usuario/Downloads/Dialnet-AsPromessasDaRevistaEmGuardaParaOBrasilNoPosguerra-5157915.pdf